O PODER EPISCOPAL NO
ORIENTE PRÓXIMO DA PRIMEIRA IDADE MÉDIA. DEBATES A PARTIR DA VIDA DE MACRINA
(SÉC. IV)
Algumas primeiras
palavras sobre lideranças cristãs nos primeiros séculos
Desde
o século I da Era Comum que o exercício de poder episcopal, por homens e
mulheres que se entendiam como cristãos é um daqueles fatos históricos incontestes. Contudo, desde que os filósofos da
linguagem colocaram os significantes em suspensão, e privilegiaram os
diferentes significados, que muitos historiadores começaram a pensar as
diferentes concepções do que seria o exercício de poder do bispo ou da bispa ao
longo dos séculos.
José
Fernández Ubina, um dos grandes especialistas no assunto, argumenta que as
comunidades cristãs do final do primeiro e do início do segundo séculos da Era
Comum teriam sido lideradas por bispos carismáticos cuja autoridade derivaria
diretamente do divino. Neste contexto, no qual verifica-se o processo de
distanciamento gradual entre judaísmo e cristianismo se impõem dois fatos
cruciais para o que estamos tratando, a saber, que por volta do século II a
maioria das comunidades eclesiásticas espalhadas pelo Império Romano já se
estruturavam hierarquicamente no tripé bispos, presbíteros e diáconos; e que
não se conhece os pormenores do processo que conduziu uma organização
rudimentar a uma instituição como o episcopado monárquico [Ubina, 2016,
p. 40-41]. Embora o modo como indicamos o plural na língua portuguesa [e no
espanhol, idioma original do historiador] seja no masculino, e, por isso, não
podemos desconsiderar que nas assertivas de Ubina estariam incluídas as
mulheres, devemos reforçar que no conjunto de líderes das comunidades cristãs
dos primeiros séculos encontramos diaconisas, presbíteras, bispas e até mesmo
apóstolas. Acerca disso afirmou Rosa Mentxaka:
“[...],
são bastantes numerosas as mulheres que se comprometeram com o cristianismo
desde as suas origens, tomando parte ativa no movimento, do qual se destaca
especialmente a Ásia Menor como um dos lugares onde ocorreu um maior
protagonismo; algumas dessas mulheres gozaram de uma certa capacidade
econômica, a qual possibilitou que desde o princípio colaborassem com a expansão
da nova religião e, em algumas ocasiões, presidissem as comunidades domésticas.”
[Mentxaka, 2016, p. 560. Tradução livre de nossa autoria]
Um
dos testemunhos mais evocados sobre a organização das comunidades cristãs dos
primeiros séculos advém de uma epístola atribuída a Gaius Plinius Caecillius
Secundus [61-113 EC], mais
conhecido como Plínio, o Jovem. Tal epíteto se deu em referência ao seu tio e
pai adotivo Plínio, o Velho [23-79 EC]. Seguindo o cursus honorum próprio
de alguém ligado à ordem dos equestres, Plínio, o Jovem, embora não pertencesse
à nobilitas romana tradicional, desde o início da última década do
primeiro século integrou-se à burocracia imperial romana, sendo já no final
desse período e durante as duas primeiras décadas do século II EC o momento no
qual ocupou os mais importantes cargos, dentre eles o de governador da
província da Bitínia sob o governo de Trajano. [Stadler, 2018, p. 7]
É desse contexto a carta que nos interessa. Já no
início da correspondência endereçada ao imperador Trajano encontramos a
afirmação de que, quando em Roma, nunca havia participado de nenhum processo
contra os cristãos e que desconhecia o crime do qual os mesmos estariam sendo
acusados, daí recorrer ao imperador sobre a diligência devida. [Plínio, o
Jovem, Cartas, Livro X, Epístola 96, 1] Mais à frente, relata ter inquirido os
acusados se de fato seriam cristãos e, diante da assertiva, mesmo ante a ameaça
de punições, Plínio considerou os cristãos fanáticos, obstinados e intransigentes
[Plínio, o Jovem, Cartas, Livro X, Epístola 96, 3], de modo que teria sido
necessário maior cuidado com a questão:
“Por esta razão, considerei necessário investigar
quanto há de verdade em tudo isso e, assim, submeti à tortura duas escravas as quais os cristãos
denominam de ministras. Mas não encontrei nada além de uma tola e
extravagante superstição.” [Plínio, o Jovem, Cartas, Livro X, Epístola 96, 8.
Grifos nossos]
Nesse
texto nos valemos da tradução do historiador Thiago David Stadler, o qual optou por traduzir ministrae, a atribuição das duas ancillis, como ministras,
o que também defendemos ser a melhor escolha. No entanto, por exemplo, na
tradução para a língua inglesa publicada pela editora da Universidade de Oxford
[2006] a escolha foi pelo vocábulo deaconesses,
em língua portuguesa, diaconisas. Não se trata de um erro crasso, mas
defendemos não ser a melhor escolha, posto que Plínio traduzia a realidade
grega no qual se encontrava através do termo latino ministrae, o que provavelmente, deveria indicar algo como
diaconisa, mas que nos aponta para uma realidade que se impunha, a
instabilidade da semântica em torno dos cargos eclesiásticos nos primeiros
séculos.
Dos trechos da epístola pliniana que evocamos podemos
sustentar os argumentos de que na Ásia Menor do início do século II EC havia
pessoas que se reconheciam como cristãs; essas práticas causavam certa
estranheza ao ponto de gerarem denúncias ao governo local; as comunidades
cristãs ao redor do Império Romano e os seus assuntos não eram de conhecimento
generalizado, posto que um governador de província afirma cabalmente não ter
tal ciência; na Ásia Menor do início do século II EC havia comunidades cristãs
dirigidas por mulheres, inclusive aquelas escravizadas; neste período a
perseguição e potencial punição aos cristãos parece ser algo reativo e
localizado; e, por último, não havia clareza quanto às esferas de jurisdição
dos líderes das comunidades cristãs, de modo que as atribuições de
presbíteros/presbíteras, diáconos/diaconisas, bispos/bispas e apóstolos/apóstolas,
provavelmente eram imbricadas.
Ao que nos parece, portanto, as mulheres tinham
bastante agência no movimento de Jesus com Jesus e teriam continuado a ter nas
comunidades cristãs. Temos referência da existência de presbíteras, diaconisas,
bispas e até mesmo apóstolas ao longo dos séculos I e II EC especialmente, mas,
provavelmente, durante os séculos II e III EC, nos quais verificamos o
fortalecimento do poder dos bispos esse cargo foi paulatinamente coaptado pelas
elites romanas. Fato é que no século IV já encontramos bispos poderosos, esse
cargo já é prestigioso e quase que exclusivamente masculino tal qual uma
magistratura romana, embora não seja de fato uma magistratura romana. Ou seja,
os bispos fazem parte do espaço público, espaço esse que tradicionalmente se
confunde com o que nós denominamos de masculino, um espaço naturalizado como
pertencente aos animais humanos machos.
Mas então, as mulheres deixam de ter importância no
cristianismo dos séculos III e IV EC? Definitivamente não. As mulheres são
fundamentais em muitos aspectos. Temos evidências de que, considerando as
mulheres ricas, elas continuam a liderar grupos religiosos, ainda que de modo
informal, posto que as igrejas nesse período ainda se confundem com ambientes
domésticos; elas financiam a construção de templos públicos dedicados à fé
cristã, como basílicas; também financiam casas monásticas e, sobretudo,
financiam e assim possibilitam a vida material da elite eclesiástica, bispos e
monges. No entanto, considerando a alegada ortodoxia, elas não podem mais
exercer nenhum cargo de modo formal com exceção do diaconato, cada vez mais
afastado da jurisdição episcopal. Além disso, também não poderiam ser
creditadas, por exemplo, em algum debate teológico.
Então há o seguinte cenário. Ao longo dos séculos da
Era comum as mulheres sempre tiveram agência nas comunidades cristãs. O que os
indícios nos permitem aventar é que, em um primeiro momento essa agência era
mais igualitária, ou seja, mulheres e homens poderiam exercer funções
semelhantes no interior dessas comunidades e, ao passo que a burocracia romana
se aproximava de uma determinada facção do cristianismo, nesse caso a católica,
a agência das mulheres se tornou cada vez mais informal e sub-reptícia. Em
outras palavras, quando o cristianismo católico se estabeleceu no espaço
público, as mulheres, que já não podiam fazer parte desse mundo público antes,
também têm o seu espaço de ação diminuído, quando não são mesmo alijadas da
dinâmica formal do cristianismo. Esse assunto é tratado por estudiosos desde o
início do século passado, como, por exemplo, nos escritos de Adolf von Harnack
[1905], e continua em voga nos dias atuais. Dentre os trabalhos hodiernos
podemos destacar os estudos em língua espanhola de Amparo Pedregal [2005]; Mar
Marcos Sánchez [2005]; e Rosa Mentxaca [2016; 2018; 2019]. Na historiografia
brasileira o assunto também está longe de ser negligenciado, de modo que
destacamos a produção de Gilvan Ventura da Silva [2007]; João Carlos Furlani
[2012; 2013]; e Juliana Cavalcanti [2021].
Estabelecido esse processo histórico de
enfraquecimento da agência pública e formal das mulheres nas comunidades
cristãs dos quatro primeiros séculos da Era Comum, também devemos apontar que
partimos da compreensão de que a literatura hagiográfica, especialmente
característica dos séculos IV, V e VI, é um dispositivo de domesticação de
figuras femininas conhecidas e de santidade socialmente aceita. Sendo assim, nossa
proposta neste texto, é apontar as referências feitas na narrativa sobre
Macrina acerca da hierarquia eclesiástica, especialmente os bispos. Analisamos
a Vida de Macrina através da clássica
versão crítica e bilíngue de Pierre Maraval [1971].
A Vita Macrinae e as referências ao
episcopado
A
Vita Macrinae é uma hagiografia
datada do século IV EC, cuja autoria é atribuída ao bispo Gregório de Nissa. O
vocábulo hagiografia provém de duas palavras gregas, a saber, hagio, que significa santo, e grafia que significa escrita. Sendo
assim, o termo hagiografia é utilizado desde o século XVII para designar o
estudo crítico dos diferentes aspectos ligados ao culto aos santos e também os
textos que têm como temática central os próprios cultuados. Quanto à tipologia
desses escritos as possibilidades são plurais, pois a narrativa hagiográfica
pode, por exemplo, ser apresentada como uma paixão; um tratado de milagres;
relatos de viagens espirituais; e, o que nos interessa de modo mais objetivo
neste texto, uma vita, narrativa
sobre a vida do hagiografado em que são narradas suas virtudes a servirem de exempla [Silva, 2008, p. 7].
Izabel
Velázquez ressalta a grande pluralidade de textos do gênero hagiográfico e a
dificuldade em classificá-los dentro de subgêneros. Inicialmente, as narrativas
sobre os santos se aproximavam mais de um processo no qual “acontecimentos”
eram narrados de modo quase sempre cronológico, e quanto mais afastados no
tempo é o relatado da sua narrativa, mais literárias são as hagiografias. Esta
característica se apresenta, sobretudo, nos elementos maravilhosos dos textos.
[Velázquez, 2005, p. 42-45] De acordo com Antonio Manuel Rebelo, a hagiografia, enquanto gênero literário, faz
referência aos modelos clássicos daquilo que entendemos atualmente como uma biografia,
do panegírico, da saudação fúnebre e da apologia. Neste sentido:
“A hagiografia visa primordialmente glorificar a
Deus através da narração e enaltecimento da vida e obra do santo. A estes
juntam-se outros objectivos, que podem ser morais, catequéticos, parenéticos,
apologéticos, dogmáticos, eclesiásticos, pastorais, políticos... tanto numa
perspectiva pessoal ou individual, como num enquadramento social ou colectivo.”
[Rebelo, 2022]
Mais especificamente sobre a hagiografia de
mulheres, Clarissa Matanna de Oliveira pontuou:
“Inicialmente, devemos considerar que as
hagiografias femininas [...] foram, em sua maioria, escritas por homens e,
dessa forma, refletem suas visões e expectativas sobre as mulheres. Esses
homens pertenciam ao clero secular ou ao meio monástico e, por isso, essas
construções eram baseadas em ideias sobre o feminino procedentes das escrituras
e da teologia cristã, e estavam situadas historicamente em um dado contexto.
Assim, o hagiógrafo precisava fazer escolhas para elaborar um perfil de mulher
santa que, ao mesmo tempo, estivesse de acordo com fundamentos teológicos, com
o ideal de vida religiosa feminina vigente e com os objetivos de produção do
texto. A narrativa também deveria ser factível frente à memória da hagiografada
e aos referenciais culturais e sociais das audiências.” [Oliveira, 2022]
Sistematizando,
usamos hagiografia em seu sentido geral que é o de um escrito sobre algum ser
considerado santo e, no caso mais específico de nossa proposição, entendemos a Vita como uma narrativa sequencial e que
se pretende cronológica sobre alguém considerado santo ou santa. Com a
advertência crucial para nos atentarmos que, mesmo quando tais narrativas são dedicadas
às mulheres, esses textos são, em sua maioria, da autoria de homens e,
portanto, nos dão indícios de suas agendas.
Macrina viveu na Ásia Menor provavelmente entre 325/327
e 379/380 EC [Costa, Zierer, 2001, p. 345; Salisbury, 2001, p. 201], no seio de
uma família tradicional cristã em que variados integrantes ligam-se à História
do cristianismo católico. Para se ter uma ideia, se confiarmos na narrativa
hagiográfica dedicada à nossa personagem histórica, os avós de Macrina teriam
sofrido ante as perseguições imposta aos cristãos ao ponto de seu avô materno
ter mesmo sofrido o martírio. [Gregório de Nissa, Vida de Macrina, XX, 2] A
avó, Macrina, a Velha, é descrita como de suma importância para o
desenvolvimento religioso de seus irmãos. Inclusive, é em homenagem a ela que
Macrina é nomeada [Gregório de Nissa, Vida de Macrina, II, 1] e, por isso,
também conhecida como Macrina, a Jovem.
Os quatro irmãos de Macrina destacaram-se todos como
grandes religiosos. Os bispos, também conhecidos como Pais da Capadócia,
Basílio de Cesaréia, Gregório de Nissa e Pedro de Sebasta; e o monge
Naucratius. Junto ao bispo de Cesaréia Macrina é figura fundamental do
ascetismo oriental [Salisbury, 2001, p. 201]. Conhecemo-la a partir do penejar
de um homem, seu irmão Gregório, bispo de Nissa e autor da vida dedicada à sua irmã e redigida logo após a sua morte, entre
380 e 383 EC [Costa, Zierer, 2001, p. 346].
A partir desse momento passaremos a explorar os
dados acerca do episcopado na narrativa hagiográfica, mas, por conta do espaço,
não de modo exaustivo. Daremos especial atenção a alguns trechos, os quais
consideramos mais emblemáticos.
Basílio, bispo de Cesaréia em 370 EC, é descrito
como a glória da família [Gregório de Nissa, Vida de Macrina, XIV, 2]. Fato é
que Basílio fora o filho escolhido para trilhar os passos de seu pai na vida
pública como um orador e advogado, de modo que teria tido acesso ao melhor do
sistema educacional formal em Cesaréia, Antioquia, Constantinopla e Atenas
[Salisbury, 2001, p. 201]. Logo, o tom laudatório com o qual é tratado na
narrativa provavelmente não se deve apenas ao seu cargo episcopal, mas também
ao seu notável intelecto, ou ainda, pode ter tido como motivação o
reconhecimento de que alguém preparado para uma grande carreira na vida pública
abdicou da mesma em favor da vida
cristã, como é comum ao tópos
literário da humildade que caracteriza narrativas hagiográficas.
O discurso hagiográfico ainda aponta que o bispo
deve atender às reuniões e enfrentar heresias [Gregório de Nissa, Vida de
Macrina, XV, 1]; realizar ofícios fúnebres [Gregório de Nissa, Vida de Macrina,
XXV, 3]; além de ser sempre temperante e calmo, posto que o trecho em que
afirma ter se entregado à lamentação por sua irmã é descrito como “abandono de
suas funções” [Gregório de Nissa, Vida de Macrina, XXVI, 1].
Para além dessas referências, duas passagens nos
chamam especial atenção. Na primeira, quando dos últimos momentos de vida de
Macrina, seu irmão, o hagiógrafo, chega para visitá-la e ela é descrita como
ardendo em febre e sem forças, mas, ao ver o bispo de Nissa se esforça para
prestar reverência [Gregório de Nissa, Vida de Macrina, XVII, 1-2]. O outro
trecho narra o preparo do corpo de Macrina para o sepultamento, momento em que
é reafirmada a humildade da santa, a qual não possuiria adornos com os quais
ser sepultada. Neste momento a personagem Gregório diz que poderia adorná-la
com elementos familiares, mas se preocupava se isso seria contra a vontade de
Macrina, ao que a personagem que o ajudava diz que ela certamente não se
oporia, já que tinha muita reverência pelo sacerdócio de Gregório [Gregório de
Nissa, Vida de Macrina, XXIX].
Como já argumentamos, o texto hagiográfico, em
especial a vita, possui como um dos
seus principais objetivos a promoção da santidade de alguém, de modo que Macrina
é objetivamente descrita como uma pessoa distinta das demais. Ela teria
superado a sua natureza [Gregório de Nissa, Vida de Macrina, I, 1]; teria sido
propensa ao aprendizado [Gregório de Nissa, Vida de Macrina, III, 1], humilde,
equilibrada, resiliente [Gregório de Nissa, Vida de Macrina, X, 1] e continente
[Gregório de Nissa, Vida de Macrina, XI, 2]. A sua distinção também advém da
associação à uma popular personagem feminina de grande importância para os
cristianismos, a saber, Tecla [Gregório de Nissa, Vida de Macrina, II, 3].
Apóstola e seguidora de Paulo que, de acordo com o texto extra canônico Atos de
Paulo e Tecla, pregava e batizava [Salisbury, 2001, p. 348-350]. Salta aos
olhos que, embora referida como uma espécie de Tecla, Macrina é distanciada de
elementos apostólicos e/ou episcopais, tal como podemos inferir a partir dos
trechos das seções XVII e XXIX da hagiografia. A despeito de sua santidade,
Macrina devia deferência a Gregório. E isso não apenas devido ao laço familiar
que os unia, mas devido ao cargo que ele ocupava, tal como o texto afirma
categoricamente.
Algumas reflexões
finais
O
poder para Michel Foucault [2007] é um exercício, é uma possibilidade, posto
que é histórico e contextual, logo, só pode ser entendido no interior de uma
trama histórica. É por isso que é necessário identificar o disparate, a
tecnologia de poder específica de cada período. No caso da Primeira Idade
Média, os bispos se impõem como figuras de importante autoridade pública,
autoridade essa certamente disputada em diferentes esferas. Como podemos
verificar nos dados levantados na hagiografia, a personagem Macrina é associada
a elementos distintivos ao ser descrita como temperante, continente, humilde,
propensa ao aprendizado, etc. No entanto, diferente das personagens femininas
das narrativas cristãs dos séculos anteriores, Macrina não é associada de modo
objetivo ao epistolado ou episcopado. Ao contrário, sua santidade, advogada no
texto que analisamos, não a equipara ao status do bispo, de modo que a esses
deveria prestar reverência.
Deste
modo, nosso argumento é o de que o discurso hagiográfico foi parte fundamental
no processo de afirmação do episcopado monárquico ao afastar as mulheres, mesmo
as de santidade reconhecida, da possibilidade de agência formal na esfera
pública ao atuar na construção e manutenção do monopólio do exercício episcopal
para os homens, episcopado que a essa altura já congregava quase toda a carga
semântica das diferentes jurisdições eclesiásticas antes em processo de
estabilização.
Referências
Dr.
Wendell dos Reis Veloso é professor de História Medieval na UERJ, onde também
integra o Programa de Estudos Medievais (PEM-UERJ). Além disso é pesquisador
associado ao LabQueer
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BOA NOITE WENDEL. Seu artigo tem grandes referências do movimento das Mulheres dentro do Cristianismo do Século I, a sua referência de Plínio é um recorte da importância das mulheres nesse cristianismo Arcaico. Diante da influência feminina nesse movimento, Dentro de seu Ponto de vista qual seria o impedimento do poder das mulheres para assumir ter maior controle do movimento cristão nesse período, séculos IV e V?
ResponderExcluirATENCIOSAMENTE
ELOIS ALEXANDRE DE PAULA
Bom dia, Prezado Elois de Paula. Obrigado pela pergunta. Ao que nos parece o grande impeditivo é a cultura patriarcal que impedia mulheres de agirem de modo formal/institucional no espaço público. Ao passo que o cristianismo se torna um a questão de Estado e o cargo episcopal, inclusive, é colapsado pelas elites tradicionais, as mulheres “deveriam” ser afastadas da possibilidade de agencia nas comunidades cristãs. A questão seria considerar se elas, de fato, foram. Penso que menos do que esses textos nos permitem perceber, de modo que esses discursos, tal como A Vida de Macrina, seriam dispositivos de tentativa de conformação mais do que representações da realidade. Espero ter respondido. Abraços. Wendell Veloso.
ResponderExcluir*conotado e não colapsado. Wendell Veloso.
ResponderExcluirDesculpem, mas estou no celular. É coaptado! Rs
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