A CONVERSÃO DA RUS DE
KYIV POR BIZÂNCIO: CRISTIANISMO E RITO ORIENTAL
Este
trabalho apresenta a influência bizantina na conversão da Rus de Kyiv ao
cristianismo, característica esta que persiste até a contemporaneidade, mais
conhecida como rito oriental. O artigo estrutura-se em três tópicos, A Rus de
Kyiv, A conversão, e, O florescimento, respectivamente. Como referenciais
utilizam-se Subtelny [2009] e Yekelchyk [2007] que tratam da história da Ucrânia;
e dois autores, Sevcenko [1984] e Szewciw [1988], que abordam especificamente
sobre a conversão do Estado Kyivano, mudança esta que já completou mais de um
milênio.
A Rus de Kyiv
As
origens sobre a Rus de Kyiv são controvérsias e não possuem apenas uma versão,
e por isso, dividem os historiadores quanto a veracidade de cada vertente. O
que se pode afirmar, entretanto, é que devido à ela, os contornos da atual
Ucrânia foram estabelecidos.
Inúmeras
culturas viveram nessa localidade, tendo a Tripiliana como expoente, por ser a
civilização agrícola primitiva mais conhecida, datando entre 4.000 e 2.500 a.
C. Depois vieram os cimérios, citas, godos, hunos, búlgaros, ávaros e cazares
[YEKELCHYK, 2007].
Toda
essa diversidade através dos tempos formava as tribos eslavas que viviam nessa
região até a chegada de vikings no século IX, segundo uma das versões de
fundação, liderados por Rurik ou Rurikovytch, que unificou todas através da
diplomacia e da força, e formou o primeiro Estado – a Rus de Kyiv [BURKO,
1963].
Outra
vertente, retirada da obra As Crônicas de Nestor, afirma que quatro irmãos –
três homens, Kyi, Shchek, Khoriv e uma mulher, Lybid – já viviam neste local,
sendo liderados pelo primeiro que exercia um papel de governante perante tribos
organizadas. E só depois de alguns anos dessa convivência, o viking Rurik
chegou e tomou o poder [YEKELCHYK, 2007].
Independente
de como realmente ocorrera a constituição do primeiro governo kyivano, sabe-se
que seu solo extremamente fértil, o chernossolo, e sua localização estratégica
– rota de passagem entre Oriente e Ocidente – [BURKO, 1963] sempre foram motivo
de cobiça pelos vizinhos e algumas de suas características mais marcantes até o
Medievo.
Em 882,
Oleh [também conhecido como Helgi, Oleg] chegou até a Rus e não se sabe ao
certo como ascendeu ao trono, substituindo Rurik que havia falecido e deixara
um filho pequeno ainda, Ihor [Ingvar, Igor], que não podia assumir. Enquanto
isso, foi o responsável por em 907 firmar o primeiro acordo comercial com o
Império Bizantino [YEKELCHYK, 2007].
Em
condições de gerir a Rus de Kyiv herdada de seu pai, Ihor governou entre 913 e
945. Um ano antes de morrer, assinou um tratado colocando seus soldados à
disposição de Bizâncio, e todos os guerreiros fizeram um juramento cristão na
Igreja de Santo Elias em Kyiv [SZEWCIW, 1988].
Embora,
historicamente o cristianismo tenha sido considerado a religião oficial do
Estado Kyivano, quarenta e quatro anos depois de tal acordo, ou seja, em 988;
vale ressaltar que o juramento acima descrito demonstra que essa religião já
havia dado os primeiros passos numa sociedade tradicionalmente pagã.
A
Igreja de Santo Elias, foi uma das pioneiras nesse quesito. Construída no
centro da vida da Rus, teve seu padroeiro escolhido especialmente devido aos
seus atributos e ser comparado ao deus pagão do trovão, chamado de Perun pela
população [SEVCENKO, 1984].
E há
outro fato ainda que merece destaque: em 863 os religiosos cristãos – Cirilo e
Metódio – adentraram em comunidades kyivanas com livros litúrgicos traduzidos e
ainda criaram o alfabeto eslavo, facilitando o trabalho de conversão dos
moradores [SZEWCIW, 1988].
Durante
o governo de Ihor, em 941, ele investiu contra Constantinopla e foi derrotado.
Três anos depois, foi obrigado a assinar um documento desfavorável ao seu
governo, que colocava suas riquezas nas mãos dos bizantinos. Para reverter o
cenário, investiu contra os muçulmanos com o objetivo de saquear riquezas, mas
foi assassinado.
Sua
esposa, Olha [Helga, Olga], governou entre 945 e 962, enquanto seu filho não
tinha idade suficiente para ascender ao trono; convertendo-se ao cristianismo
nesse período. Sviatoslav, reinou durante 962 e 972, ora aproximou-se do
Império Bizantino ora declarou-se inimigo, e não se converteu como sua mãe.
A conversão
Foi
apenas na dinastia de Volodymyr, o Grande que a Rus de Kyiv foi convertida ao
cristianismo em sua totalidade. Seu governo se estendeu entre 978 e 1015, sendo
marcado por várias mudanças. Ele era filho de Sviatoslav e neto de Olha.
Embora
sua avó tenha sido batizada pelo próprio patriarca bizantino em Constantinopla
em 955, e seu avô e pai jamais terem sido convertidos, Volodymyr fez uma
análise bastante profunda dos benefícios da religião cristã, não apenas para
ele, mas para o reino.
Pagão
desde o nascimento, como era o costume eslavo há tempos, ele pode ter percebido
no cristianismo uma estratégia política. Seu desejo era consolidar-se como
acontecia com o Império Bizantino e por isso analisou as possibilidades que lhe
foram apresentadas considerando sua utilidade para o Estado [SZEWCIW, 1988].
Em 987
conquistou a colônia bizantina de Khersones, na Crimeia e pediu a mão da
princesa Anna, ninguém menos que a irmã dos imperadores Basílio e Constantino.
A única condição para a efetivação do casamento era de que Volodymyr se
convertesse à religião da futura esposa.
Sua
soberania, unificada e sem rivais dentro do território já se estendia do
Báltico ao Mar Negro, e dos rios Sian e Vístula até o Volga, o que demonstrava
sua maestria em governar. A conversão seria um ato de diplomacia e aceitação
perante a realidade circundante.
“O
Estado de Kyiv mantinha relações, em condições de igualdade política e militar,
com outros Estados poderosos da época, que já eram cristãos, e Volodymyr
entendeu, então, que para ser completamente aceito pelo restante do mundo
civilizado e não ser tido em conta de um país bárbaro e retrógrado, a Rus –
Ucrânia deveria tornar-se um Estado cristão.” [SZEWCIW, 1988, pp. 40 e 41]
Nesse
sentido, não houve um trabalho missionário externo de conversão dos súditos da
Rus e do seu líder, mas o desejo dele próprio de aceitar o cristianismo para si
e para seu povo. Depois da tomada de decisão, o processo de mudança do
paganismo para a nova religião ocorreu de forma rápida.
Para cristianizar a nação kyivana, sacerdotes
oriundos de Khersones, além do apoio do clero da Bulgária e Panônia-Morávia, o
povo foi batizado nos rios Pochajna e Dnipró pelo rito bizantino na sua forma
búlgara [SZEWCIW,
1988]. Todo esse processo ocorreu no ano de 988 e registrado pelo escritor
Nestor no século XI.
Além da
devoção da população em relação ao seu líder máximo – Volodymyr, o Grande – é
preciso ressaltar que outro fator pode ter estimulado também essa conversão com
pouca resistência. Trata-se da difusão do cristianismo nos reinados vizinhos na
mesma época, como na Galícia oriental, na Bukovyna e na Transcarpátia [SZEWCIW,
1988].
Os
mesmos missionários – Cirilo e Metódio – já haviam estado nesses locais
anteriormente e difundido a liturgia no idioma eslavo, o que facilitou a adesão
da população. Entretanto, no momento do batismo da Rus, a dupla religiosa já
era considerada santa pela igreja.
Embora
a conversão tenha sido obrigatória e oficial, vindo de cima para baixo, o povo
aceitou a nova religião, mas manteve alguns costumes pagãos que ou eram adaptados
ao novo contexto, ou realizados em simultâneo, criando um sincretismo
religioso, cuja herança se estende até a contemporaneidade, a exemplo da
confecção das pêssankas [ovos escritos].
Como
consequência, foram construídas inúmeras igrejas e dioceses em todo o
território kyivano, até nos mais longínquos; além de escolas, que não só
evangelizavam, mas ensinavam uma educação básica, sendo obrigatória para os
filhos dos guerreiros.
Nesse
período, a igreja latina tentou evangelizar alguns ucranianos que residiam no
lado ocidental da Rus, mas tal empreita se mostrou infrutífera. O rito
bizantino já estava enraizado e a população encontrava nele um formato mais
original e em conformidade com aquilo que pregavam como uma espiritualidade
mais próxima de Cristo.
Volodymyr, o Grande, manteve relações diplomáticas
muito mais exitosas com líderes de outros locais como Alemanha, Polônia,
Noruega, França, Hungria, entre outros; correspondeu-se com os papas João XVI e
Silvestre II depois de se tornar cristão.
Ressalta-se que sua conversão aconteceu sessenta
anos antes do Grande Cisma do Oriente em 1054, quando o patriarca Miguel
Cerulário foi excomungado pelo papa. O rei kyivano, ficou conhecido pelo seu
apreço religioso e seus esforços em propagar a nova fé.
Alguns escritores do período como o metropolita
Ilarion, comparavam a conversão de Volodymyr, o Grande como a do imperador
romano Constantino em 312 [SEVCENKO, 1984]. Seu apego e zelo apostólico logo
lhe fizeram ser venerado como santo, bem como a sua avó, tendo os dois recebido
o título de “rivnoapostolny” [рівноапостольний – como apóstolos], ou seja,
dignos de veneração semelhante à dos apóstolos [SZEWCIW, 1988].
Entretanto, foi seu filho – Yaroslav, o Sábio – que
foi considerado o verdadeiro organizador do cristianismo na Ucrânia. Se seu pai
converteu a população e não poupou esforços para a implantação da nova
religião, fora o sucessor que fez história nesse sentido.
O
florescimento
Yaroslav, o Sábio governou entre 1019 e 1054. Foi
através dele que a igreja alcançou uma consolidação realmente efetiva sob o
território kyivano. Responsabilizou-se pela construção de inúmeros mosteiros e
bibliotecas que além de ampararem o espírito, foram essenciais em tempos de
crises.
A principal obra, a Igreja de Santa Sofia, foi
erigida em 1037 segundo Szewciw [1988] e serviu como referência da santa sé
bizantina. Logo, tornou-se a catedral metropolita de Kyiv e resiste até hoje
como uma das principais construções do período. Foi assim chamada para
homenagear a grande catedral de Constantinopla [YEKELCHYK, 2007].
A referida igreja abriga, desde o mesmo ano, o ícone
da “Bohorodytsia” [Богородиця – Mãe de Deus], que foi proclamada por ele como
Rainha da Ucrânia, ganhando reproduções que estampavam praticamente todos os
lares, dos mais ricos aos mais pobres [SZEWCIW, 1988].
Outros dois ícones sagrados que estão expostos na
Catedral de Santa Sofia desde essa época são o “Pokrov” [Покров – Padroeira da
Ucrânia] e o mais antigo de todos, “Odighitria” [Одигітрія – Nossa Senhora de
Odighitria, Nossa Senhora da Guia ou ainda Nossa Senhora de Constantinopla]
trazido pela princesa Anna, quando casou com Volodymyr.
Anexo à ela, em 1051 foi construído o mosteiro de
Pecherska-Lavra ou Mosteiro de Kyiv-Petchersk que é conhecido também como
Mosteiro das Cavernas de Kyiv. Trata-se do mosteiro mais antigo da Ucrânia e um
dos lugares sagrados para o cristianismo ortodoxo.
Embora sua finalização arquitetônica tenha ocorrido
depois do governo de Yaroslav, sua importância religiosa já era aceita quando
ainda era um singelo mosteiro. Em 1990 foi declarado Patrimônio da Humanidade e
desde 2007 ele é considerado pela UNESCO uma das sete maravilhas da Ucrânia.
O rei também escreveu um código de leis para o
reino, o “Ruska Pravda” [Руська Правда – Lei da Rus] que apesar de estabelecer
regras e normas civis dentro do território, baseado no sistema consuetudinário,
demonstra inegáveis referências aos princípios cristãos [SZEWCIW, 1988].
Outra mudança administrativa importante no governo
dele foi em relação aos metropolitas. Era comum que os patriarcas bizantinos
escolhessem seus missionários para as novas igrejas que se construíam e por
isso, desfrutavam de muito poder, em todos os sentidos.
Yaroslav, o Sábio, propôs que os bispos bizantinos
elegessem um metropolita ucraniano, que se preocupasse com as necessidades do
povo. Dessa forma, o primeiro foi Ilarion, que se tornou o metropolita de Kyiv
e representou melhor os anseios do povo e do próprio governante.
O metropolita respondia pela igreja cristã e
influenciava questões da vida das pessoas, passando pelas decisões do Estado,
da criação e execução de leis – tanto civis quanto religiosas – além de deter
grande poder econômico também ao administrar as finanças religiosas.
Outra ação que contribuiu bastante com o
florescimento religioso além das edificações, foi o incentivo às artes
literárias e difusão das ciências. O rei impulsionou traduções de diversas
obras para o eslavo eclesiástico, bem como a criação de novas por parte dos
padres kyivanos.
E como a igreja seguia o rito bizantino, conhecido
também como rito oriental, pertencia ao patriarcado de Constantinopla. E devido
a uma certa autonomia que possuía, constituindo uma igreja particular, nas
palavras de Szewciw [1988], transformou-se numa espécie de igreja nacional,
tendo o metropolita de Kyiv direitos e privilégios de um arcebispo maior.
Yaroslav, fez tudo que estava ao seu alcance como
rei para o cristianismo na Rus; ao todo, construiu aproximadamente quatrocentas
igrejas [SUBTELNY, 2009]. Morreu em fevereiro de 1054 acreditando que a
religião ganharia mais notoriedade a cada governante que ascendesse ao trono.
Meses mais tarde, mas no mesmo ano, o cristianismo se opôs em dois através do
Grande Cisma do Oriente.
Se a maior conquista de Volodymyr, o Grande é ter
cristianizado seu vasto império, segundo Subtelny [2009]; o próprio escritor Ilarion
no período, descreveu que foi seu filho – Yaroslav, o Sábio – o imperador
imbuído de “realizar o irrealizável” quando se tratava da religião [SEVCENKO,
1984].
Para Sevcenko [1984], não é de se admirar que a Rus
de Kyiv, em seus primórdios, tenha sido uma grande extensão do Império
Bizantino. Até porque, segundo os ensinamentos da própria igreja, o monarca
tinha o direito de governar, encontrando para sua legitimação um poder
centralizado, ideológico e religioso, que antes não dispunha [SUBTELNY, 2009].
A escolha dessa religião alinhou a Rus de Kyiv com o
Ocidente cristão e não com o Oriente islâmico. Depois de 1054, o Estado Kyivano
ficaria do lado do cristianismo de Bizâncio em oposição ao catolicismo de Roma
[SUBTELNY, 2009], marcando para sempre os ucranianos em todos os sentidos
políticos, sociais e culturais.
Considerações
A Rus
de Kyiv até o século IX adotava uma religião predominantemente pagã e
converteu-se ao cristianismo gradativamente entre o X e o XI. Essa
transformação não veio como o resultado de uma ação missionária estrangeira em
seu solo, mas como desejo do próprio governante, pautado em motivos religiosos
e políticos.
O
legado bizantino no Estado Kyivano e na atual Ucrânia extrapolam o período em
questão e chegam até a contemporaneidade em diferentes formatos que não
alcançam apenas a religião. Entretanto, é nesse campo que melhor pode se notar
a herança – seja na proibição das estátuas ou de música instrumental, ou com a
iconóstase que mantêm os ícones dos santos e separa o sagrado do profano dentro
das igrejas do rito oriental.
Referências
Talita
Seniuk é licenciada em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, em
Ciências Sociais pela Universidade Metodista de São Paulo e em Filosofia pela
Universidade Metropolitana de Santos; pós-graduada em Metodologia do Ensino de
História e Geografia pelo Centro Universitário de Maringá e em Ensino de
Sociologia pela Universidade Cândido Mendes. Coautora do livro As Ucrânias do
Brasil: 130 anos de cultura e tradição ucraniana pela Editora Máquina de
Escrever. Atualmente é Professora de História efetiva na Secretaria de Estado
de Educação de Mato Grosso e colunista do Jornal Ucraniano Pracia - Праця.
BURKO,
Valdomiro. A Imigração Ucraniana no Brasil. Curitiba: [s. n.], 1963.
SEVCENKO, Ihor. Byzantine
Roots of Ukrainian Christianity 988 - 1988. Cambridge: Harvard University,
1984.
SUBTELNY, Orest. Ukraine:
a history. Toronto: University of Toronto Press, 2009.
SZEWCIW,
Ivan. O milênio do cristianismo na
Ucrânia. Curitiba: Vicentina, 1988.
YEKELCHYK, Serhy. Ukraine: Birth of a Modern Nation.
New York: Oxford University Press, 2007. [Livro]
UNESCO.
Kyiv: Saint-Sophia Cathedral and Related Monastic
Buildings, Kyiv-Pechersk Lavra, 2024. Disponível em: https://whc.unesco.org/en/list/527/
Talita gostei muito do seu texto, principalmente porque é um tema muito atual. Parabéns!!!!!
ResponderExcluirA partir da leitura do seu texto, percebe-se que tanto a cultura russa quanto a ucraniana tem como ancestral cultural o Antigo Rus de Kiev.
Assim, no tempo atual (com o desenrolar do conflito) como ambas as autoridades das igrejas russa e ucraniana veem a invasão russa ao território ucraniano? Há uma condenação geral de ambas as partes? Ou alguns dos líderes apoiam seus respectivos lados nacionais?
José Raimundo Neto.
Olá, José Raimundo.
ExcluirObrigada pela sua pergunta.
A Ucrânia, assim como você comentou, tem sido um tema atual para o globo. Antes do conflito, apenas o pessoal das comunidades de descendentes sabiam da existência desse país. Ambos povos são extremamente religiosos e seguem, com fervor os preceitos doutrinários e seus líderes.
Os católicos ucranianos, que são minoria, seguem ao Papa Francisco, que condena a guerra. Os demais ucranianos ortodoxos, seguem ao Metropolita Onúfrio, o Metropolita de Kyiv, que também é contrário a guerra. Entretanto, ele está numa posição um pouco mais delicada ao falar disso, pois além da proximidade territorial, há também algumas religiosas com o comandante da Igreja Ortodoxa Russa, o patriarca Kirill; que em diversos momentos têm aparecido ao lado de Putin, num sinal de apoio ao líder e a guerra. Até teve uma passagem dos dois alegando que o conflito é uma “Guerra Santa” fazendo uma analogia ao termo cristão contra os muçulmanos durante a Idade Média. Penso, e agora falo na minha opinião, embora eu seja bastante parcial pois sou descendente de ucranianos, que do lado ucraniano e até como forma de apoio, as igrejas presentes condenam o conflito ao lado do presidente Zelensky e para os russos, considerando a postura do presidente, a igreja apoia a guerra, com medo de represálias caso se posicione de modo diferente. Você consegue achar várias notícias de jornais renomados afirmando a quantidade de padres que estão “deserdando” do lado russo, justamente por não concordar com isso, tendo também algumas desistências silenciosas, onde se usa outra justificativa para alegar a saída do sacerdócio, porque o real motivo pode causar problemas maiores.
Obrigada pela sua pergunta.
Espero ter respondido e contribuído com o debate.
Talita Seniuk
Ajudou muito, obrigado pela explicação e acho incrível você, como descendente de ucranianos, trabalhar esse fato. Parabéns pelo desenvolvimento da pesquisa.
ExcluirNa sua opinião há a possibilidade de um rompimento "real" entre a liderança da igreja ortodoxa ucraniana com a líderes da igreja ortodoxa russa (dependendo dos rumos que o conflito terá daqui em diante, já que a eleição de Donald Trump está trazendo muitas incertezas no âmbito geopolítico mundial e especificamente na invasão russa da Ucrânia, nos conflitos do Oriente Médio e na questão de Taiwan)?
José Raimundo Neto.
Olá, José Raimundo.
ExcluirObrigada pela sua pergunta.
Penso que possa haver sim um rompimento total entre elas. A ucraniana já era considerada autocéfala muito antes do conflito, então não vejo porque não, cortar ainda mais os laços. Talvez algumas mudanças doutrinárias que são discutidas possam agora, efetivamente, serem implantadas. E ainda, pode ser que a ucraniana se torne mais “ocidentalizada” e a russa se mantenha mais “oriental”. Mas tudo isso é minha opinião, não consigo acompanhar as notícias religiosas com frequência e temos também os elementos surpresas que podem surgir nesse contexto. Mas como você disse, também acredito que a guerra tenha novos rumos com a eleição de Trump.
Obrigada mais uma vez pela sua pergunta.
Espero ter respondido e contribuído com o debate.
Talita Seniuk
Essa origem cultural e religiosa comum é também usada como justificativa da invasão (por parte dos russos)? Pergunto isso por causa da entrevista que Vladimir Putin deu ao jornalista americano em fevereiro desse ano. Poderia falar mais dessa origem religiosa comum entre russos e ucranianos?
ResponderExcluirJosé Raimundo Neto.
Olá, José Raimundo.
ExcluirObrigada pela sua pergunta.
A origem cultural entre os povos eslavos; em especial ucranianos, russos e bielo-russos; é histórica. Há várias histórias, mas entre as mais aceitas é de que descendem de Rurik, um viking que se estabeleceu na região de Kyiv e depois de brigas familiares os territórios foram divididos e assim, estavam colocadas as sementes dos três países citados. Por isso, em algumas entrevistas, Putin enfatiza a questão de “pseudo” ajuda aos ucranianos como justificativa do conflito, porque todos descendem de um mesmo ancestral. É como se fossem “irmãos” por causa disso. Entretanto, até para aqueles que se consideram uma irmandade, uma guerra não teria justificativa. Ambos povos usam o alfabeto cirílico, possuem mitos parecidos, artefatos culturais semelhantes, entre outras coisas. Há bastante traços que unem esses povos, mas também muitos elementos que os distanciam.
A questão religiosa também permeia esse contexto. Uma aproximação significativa é o uso do calendário juliano, onde o Natal, por exemplo, é comemorado em 7 de janeiro, enquanto pra nós ainda é no ano anterior em dezembro. O calendário civil é o gregoriano, ou seja, para negócios e questões ocidentais eles seguem o gregoriano.
Embora sejam ortodoxos, há uma ruptura entre as lideranças e as igrejas que representam cada nação. Um bom exemplo desse distanciamento pode ser sentido na formalização da separação e proibição da presença da Igreja Ortodoxa vinculada ao Patriarcado de Moscou em solo ucraniano. Se já havia uma tendência separatista desde a dissolução da União Soviética entre elas, a guerra (iniciada com a invasão da Crimeia) apenas acelerou esse processo.
Obrigada mais uma vez pela sua pergunta.
Espero ter respondido e contribuído com o debate.
Talita Seniuk
Agradeço pelas explicações!
ExcluirJosé Raimundo Neto.
Olá, Talita! Parabéns pelo seu excelente trabalho. Concordo com o colega acima sobre sua importância para a atualidade, o que torna o olhar para o passado ainda mais necessário. Gosto muito de pensar sobre o papel das imagens em diferentes contextos históricos e fiquei curiosa para ter sua visão sobre a relação entre elas e diplomacia. Penso muito no papel da diplomacia para bizâncio, sempre fundamental ao longo da sua história, assim como as imagens, inclusive imperiais. Será que as duas, imagens e diplomacia, poderiam ser pensadas juntas em alguma dimensão? Obrigada pelas ricas interlocuções!
ResponderExcluirKerolayne Correia de Oliveira
ResponderExcluirOlá, Kerolayne.
Obrigada por sua pergunta.
Bizâncio sempre precisou de planejamento estratégico para se manter/desenvolver e a diplomacia foi uma das ferramentas para isso, ao meu ver. Penso que as imagens podem ser um dos subsídios de selar acordos diplomáticos de maneira educada. Por exemplo, um líder ao visitar outro numa reunião, cujos frutos podem ser benéficos bilateralmente e ou unilateralmente pode, a título de etiqueta, porque não, utilizar de um artefato cultural para não chegar de mãos vazias? Inclusive, na Ucrânia tem uma regra social de que você jamais visita alguém sem levar algo, nem que seja super simples. O costume ucraniano quando alguém te visita é receber com pão e sal, porque tem toda uma simbologia por trás, mas nas visitas costumeiras, até balinhas fazem o papel de presentinhos, mas com as mãos vazias não se vai a lugar algum.
Os ícones, além de especiais no sentido cultural e religioso, eram e são super caros; então também pode ser uma forma de realmente presentear ou até de singelo menosprezo com aquele que recebe (eu sou tão abastado, que posso te dar um presente desse tipo); vai depender do contexto. Podemos a grosso modo, sugerir que todo presente recebido hoje pode se tornar um recebido no futuro (quase um potlach).
Obrigada mais uma vez pela sua pergunta.
Espero ter respondido e contribuído com o debate.
Talita Seniuk
Este comentário foi removido pelo autor.
ExcluirOlá, Talita! Super interessantes essas questões que você levantou! É muito rico pensar nesses lugares em que as imagens são movimentadas e como elas se inserem em redes muito mais amplas de relações. Mais uma vez, muito obrigada pelas trocas!
ExcluirKerolayne Correia de Oliveira
Ei Talita, que texto ótimo!! Como você acha que a conversão da Rus de Kyiv ao cristianismo, influenciada pelo Império Bizantino, refletiu em sua estrutura política e cultural? Quais elementos dessa transformação podem ser observados até os dias de hoje?
ResponderExcluirOlá, Maria Carolina.
ExcluirObrigada por sua pergunta.
A conversão da Rus de Kyiv ao cristianismo impactou praticamente em sua totalidade todos os campos da sociedade daquela época e a contemporânea. Durante o processo de conversão, muitos dos costumes e ritos pagãos foram “cristianizados”. Por exemplo, os cultos ao deus Kupalo, promovido no solstício de verão, que eram associados ao amor, fertilidade e fartura, foram transformados na comemoração a São João Batista; os ovos escritos à mão, as famosas pêssankas, inicialmente associados aos festejos da primavera na Era Pagã, depois transformados em símbolo do renascimento de Cristo na Páscoa.
As camisas bordadas, as vyshyvankas, traje típico ucraniano, além de atenderem as demandas do cotidiano (elas são mais compridas e largas que uma camisa normal) possuem bordados que além de refletir a aldeia (como se fossem comunidades) em que são feitos e usados, possuem símbolos cristãos, muitas vezes parecidos com os das pêssankas; a camisa bordada possui até um dia nacional na Ucrânia e no Brasil (3°quinta-feira de maio), onde todos usam essa peça normalmente.
O calendário utilizado por eles também, difere do nosso, como já mencionei acima numa das respostas, numa herança direta à Bizâncio e a esse período. O que citei são apenas alguns dos elementos culturais-religiosos que ecoam na sociedade ucraniana, mas existem muitos outros. Então, penso que podemos afirmar que ainda se mantém uma tradição bastante forte em relação às origens do Cristianismo nessas comunidades.
Obrigada mais uma vez pela sua pergunta.
Espero ter respondido e contribuído com o debate.
Talita Seniuk