RELIGIÃO NO ANTIGO ORIENTE MÉDIO: CRENÇAS
FUNERÁRIAS MESOPOTÂMICAS NO ÉPICO DE GILGAMESH
Introdução:
Mito, religião e crenças funerárias
Desde
suas origens, os seres humanos anseiam por explicações que sanem suas dúvidas
acerca da realidade: como a chuva desce sobre a terra? Qual a razão das
doenças, como as coisas ao redor surgiram? O que acontece após a morte? Para
compreender questões tão importantes como essas, a humanidade desenvolveu o
mito: “Da busca de compreender os fenômenos e as causas, surgiram as primeiras
narrativas mitológicas. Os mitos foram a forma de explicar o princípio das
coisas e os mistérios da vida e da natureza.” [Paiva, 2020, p. 17].
Yuval
Harari entende a religião como uma das principais invenções do homem, uma
resposta às necessidades humanas de cooperação social, identidade coletiva e
significado, destacando seu papel histórico na evolução da humanidade [Harari,
2020]. A busca por sentido e significado é inerente à natureza humana, e a
religião oferece um quadro de referência que ajuda os indivíduos a
compreenderem-se e a compreender o mundo em que vivem [Eliade, 1972].
Entre
essas necessidades de identidade coletiva e de significado, que apresentam
Harari e Eliade, podemos visualizar a necessidade de viver. Os seres humanos
são os únicos animais que possuem a capacidade de abstrair-se da realidade
visual, e imaginar além da materialidade. Com essa habilidade, os seres humanos
criaram as mais variadas invenções, sejam elas para solucionar problemas
físicos ou para trazer respostas às suas angústias.
Paul
Kriwaczek vai observar que “a religião é tão velha quanto a humanidade
[...] remontando à época em que nossos
ancestrais pré-humanos começaram a sepultar seus mortos com uma cerimônia.”
[Kriwaczek, 2018, p. 43]. Ou seja, o surgimento da religiosidade está
fortemente entrelaçado à noção da vida após a morte. E não poderia ser
diferente, afinal, a religião, como uma manifestação do pensamento humano,
busca, entre outras coisas, resolver aquilo que foge às explicações naturais.
Portanto, não é estranho a nós que alguns dos mais antigos registros
arqueológicos de práticas religiosas estejam relacionados à crença na vida após
a morte.
Harari
nos informa que:
“Em
Sungir, na Rússia, os arqueólogos descobriram em 1995 um sítio com túmulos de
30 mil anos atrás [...] Num deles encontraram o esqueleto de um homem de
cinquenta anos coberto com colares de contas feitas de marfim de mamute, num total
de cerca de 3 mil contas. Na cabeça havia um chapéu decorado com dentes de
raposa e, nos punhos, 25 braceletes de marfim. Outros túmulos do mesmo sítio
tinham muito menos objetos.” [Harari, 2020, p. 68, 69].
Isso
pode significar que hierarquias sociais estavam diretamente ligadas às noções e
práticas religiosas, e isso nos ajuda a compreender que a religião e as crenças
religiosas estão ligadas às estruturas sociais em que estão inseridas. Afinal, “a religião é coisa iminentemente
social. As representações religiosas são representações coletivas que exprimem
realidades coletivas” [Durkheim, 2008, p. 38]. E ainda “a religião é uma
representação de toda e qualquer forma de organização social. Sem coesão social
não existiria religião.” [Silva, 2019, p. 227]. Em nossa análise, portanto,
buscaremos enxergar a religião a partir da História Cultural das Religiões,
Compreendendo que “religião é um sistema comum de crenças e práticas relativas
a seres sobre-humanos Dentro de universos históricos e culturais específicos.”
[Belloti; Campos; Silva; 2010, p. 13].
Os
adereços indicam que esse indivíduo ocupava uma alta posição na hierarquia
daquele grupo de caçadores, porém não sabemos qual a crença que eles tinham
sobre o que aconteceria após a morte. Para que isso fosse possível, seria
necessário que tivéssemos textos escritos ou, pelo menos, pinturas ou mais
artefatos que trouxessem alguma indicação sobre suas crenças – coisa que não
temos.
No
entanto, algumas sociedades do Bronze já possuíam sistemas de escrita e
sistemas teológicos estabelecidos. Com
isso, não haviam textos apenas de ordem administrativa, mas também textos
sagrados, contendo as crenças e práticas religiosas de determinado povo. Esses
textos podiam apresentar poemas, relatos históricos, instruções, normas e
outras modalidades. A Bíblia, por exemplo, apresenta textos mitológicos,
relatos de memória coletiva sobre a história da formação política e religiosa
dos judeus, conjuntos legislativos, hinos e textos poéticos. A existência de
documentos assim auxiliam nosso trabalho de análise das crenças de determinada
sociedade.
Um
olhar inicial acerca da religião mesopotâmica
Na
Mesopotâmia, foram fundadas algumas das primeiras cidades da antiguidade, e
suas origens seriam especialmente importantes para a tradição da região “o
mitógrafo sumério conservará, nos seus escritos, a recordação das origens
longínquas da sua história.” [Glassner, 2020, p. 220]. Essa tradição de
lembrança das origens era também religiosa: “Enquanto durasse a civilização
mesopotâmica, eles se lembrariam que cada cidade tinha sido inspirada e fundada
por uma divindade particular que tinha nela sua morada terrena.” [Kriwaczek,
2018, p. 42].
A
Mesopotâmia, inicialmente, não correspondia a um reino unificado, mas era
formada por cidades-estados, independentes umas das outras, mas compartilhando
elementos culturais e religiosos [Souza Neto, 2012, p. 202]. Antes da ascenção
do Império Acádio, a região não havia passado por nenhuma experiência bem
sucedida de unificação política, apesar de em alguns momentos haverem existido
cidades que impuseram sua força sobre outras cidades, como foi o caso da cidade
de Umma, liderada por Lugal-Zagesi, por volta do século XXIV A.E.C.
Ao
olharmos de maneira mais precisa para os aspectos religiosos dessa região,
Francisco Caramelo nos diz que:
“A
religião mesopotâmica é certamente uma designação demasiado genérica para
traduzir o caráter heterogêneo das suas práticas, das crenças e das concepções
teológicas que a definem. Não devemos desprezar a amplitude geográfica e
cronológica que suporta a realidade cultural mesopotâmica. Mau grado as
convergências e similitudes que podemos observar, as generalizações devem ser
evitadas.” [Caramelo, 2007, p. 165]
Essa
definição é fundamental para iniciarmos nossa análise. Nesse sentido, grande
parte dos comentários que apresentaremos acerca da religião mesopotâmica não
devem ser aplicados a todos os períodos da história mesopotâmica, mas
entendidos dentro do contexto temporal e espacial da fonte analisada: O Épico
de Gilgamesh. Porém, alguns aspectos comuns nas diferentes temporalidades devem
ser destacadas.
Os
mesopotâmicos tinham diferentes deuses antropomórficos, constituindo uma
religião politeísta. Cada cidade possuía um panteão dominante, mas apresentando
receptividade para com os deuses
estrangeiros. Como os mesopotâmicos enxergavam o universo como o espaço de
dominação dos deuses, “os primeiros deuses dos sumérios se confundiam com os
grandes elementos cósmicos: o céu, a terra, o ar e água.” [Giordani, 1972, p.
140].
Por
essa razão, entre as principais divindades mesopotâmicos estavam os sumérios
Enlil, Enki e An – deuses, respectivamente, da atmosfera, das águas e da terra,
e do céu. Outras divindades passariam a ter mais representatividade através do
tempo. A partir da ascensão do Império Acádio, a deusa Ishtar (divindade semita
que corresponde à Inana dos sumérios) passou a ter mais relevância, como deusa
protetora de Sargão I, e como principal personalidade dos textos da sacerdotisa
Enheduana.
A
religião mesopotâmica também chama a atenção por suas crenças funerárias. Isto
é, a forma como os mesopotâmicos enxergavam a realidade após a morte, e como se
relacionavam com os mortos. Esse será o foco principal em nosso olhar ao Épico
de Gilgamesh.
Gilgamesh e a busca pela imortalidade
O
Épico de Gilgamesh conta a aventura do rei da cidade de Uruk em sua incessante
busca pela imortalidade. A maior parte dos poemas escritos sobre Gilgamesh são
dos primeiros séculos do segundo milênio A.E.C., e que, provavelmente, são o
registro textual de tradições orais mais recuadas no tempo, “ao passo que o
texto definitivo e a edição mais completa da Epopéia vêm do século VII, da
biblioteca de Assurbanipal, antiquário e último dos grandes reis do Império
Assírio” [Oliveira, 1995, p. 4]. O texto foi copiado e adaptado em diferentes
localidades, tanto na Mesopotâmia, quanto na Síria-Palestina, em língua acádia
[Liverani, 2016, p. 471, 507], mas também em línguas hitita e hurrita
[Carreira, 2002, p. 145, 146].
O
texto foi encontrada nas ruínas da antiga biblioteca do rei assírio
Assurbanipal, na cidade de Nínive, atual Iraque, através de escavações
realizadas no ano de 1853. O texto, redigido em escrita cuneiforme, foi
traduzido por volta da década de 1890. A grande atenção ao texto se deu pela
narrativa mítica do dilúvio presente no texto, que muito se assemelha ao dilúvio
bíblico de Noé. [Carreira, 2002, p. 145].
Gilgamesh,
evidentemente, não foi tão longevo quanto “A lista dos Reis Sumérios” nos
informa, nem vivenciou tais aventuras míticas. Todavia, não é impossível que
estejamos tratando de uma personagem que realmente tenha existido. Afinal, a
arqueologia do Oriente Médio conseguiu comprovar que alguns reis mesopotâmicos
que antes eram tidos como figuras puramente mitológicas, como Enmebaraguesi, de
Kish, realmente existiram. [Kriwaczek, 2018, p. 55]. Nossa análise busca
encontrar nesse texto bases para entendermos a compreensão mesopotâmica sobre a
vida após a morte. No decorrer da narrativa, isso começa a ficar evidente
quando Gilgamesh perde seu amigo Enkidu, após dias enfermo. O texto Épico nos
diz que:
“Gilgamesh
chorou amargamente por seu amigo Enkidu. Ele errou pelas matas como um caçador
e vagueou pelas planícies. Em sua tristeza ele gritou: ‘Como posso descansar,
como posso ficar em paz? O desespero se instalou em meu coração. Isso que meu
irmão é agora, o mesmo serei eu quando morrer.” [Anônimo, 1995, p. 91]
A
morte de seu amigo fez com que Gilgamesh atentasse para a precariedade da
existência humana, e que em algum momento ele também deveria enfrentar a morte.
É diante disso que Gilgamesh resolve ir até o encontro do único humano que
recebeu a imortalidade pela mão dos deuses. O texto segue dizendo:
“Por
medo da morte farei o possível para encontrar Utnapishtim, a quem chamam o
Longínquo, pois ele se juntou à assembleia dos deuses.’ Gilgamesh então correu
o mundo selvagem; vagou pelos campos e pastos numa longa jornada em busca de
Utnapishtim, a quem os deuses acolheram após O dilúvio e instalaram na terra de
Dilmum, no jardim do sol; e somente a ele, entre todos os homens, os deuses
concederam a vida eterna” [Anônimo, 1995, p. 91].
Depois
de longa viagem, ocorre o encontro entre Gilgamesh e Utnapishtim, o Longínquo,
que “parece ter como objetivo reconciliar o homem com o seu destino na terra,
embora tenha um tom pessimista.” (Oliveira, 1995, p. 39). Utnapishtim traz o
relato da destruição enviada pelos deuses através de um dilúvio: “Muito antes
de se redigir o Genesis, os antigos mesopotâmicos haviam contado a história de
um dilúvio universal, enviado por determinado divino para destruir a
humanidade.” [Kriwaczek, 2018, p. 95].
Utnapishtim,
recebeu dos deuses a honra da imortalidade, porém alertou a Gilgamesh que ele
não receberia a mesma honraria, por se tratar de um homem comum. Foi posto à
prova, onde teve, por exemplo, que lutar contra o sono por seis dias e sete
noites, sem obter sucesso [Anônimo, 1995, p. 105]. Mesmo diante da fonte da
juventude, não se alimenta do fruto e permanece com os traços do
envelhecimento. O texto é finalizado com a morte do herói Gilgamesh:
“Oh,
Gilgamesh, era este o significado de teu sonho. Foi-te dado um trono, reinar
era teu destino; a vida eterna não era teu destino [...] Ele te concedeu
supremacia sem paralelo sobre o povo, vitória nas batalhas de onde não escapam
fugitivos; o sucesso é teu nas incursões militares e nos implacáveis assaltos.
Mas não abuses deste poder. [Anônimo, 1995, p.109].
O
herói Gilgamesh não conseguiu aquilo que mais ansiava: a imortalidade, fugir da
morte, pois a imortalidade não foi confiada para os seres humanos. Assim o herói
ouvira, quando em sua procura por Utnapishtim, de Siduri:
“Gilgamesh,
onde vais com tanta pressa? Jamais encontrarás a vida que procuras. Quando os
deuses criaram o homem, eles lhe destinaram a morte, mas a vida eles mantiveram
em seu próprio poder. Quanto a ti, Gilgamesh, enche tua barriga de iguarias;
dia e noite, noite e dia, dança e sê feliz, aproveita e deleita-te. Veste
sempre roupas novas, banha-te em água, trata com carinho a criança que te tomar
as mãos e faze tua mulher feliz com teu abraço; pois isto também é o destino do
homem. [Anônimo, 1995, p. 95, 96].
Crenças
funerárias da Mesopotâmia
Jean
Bottéro, ao analisar a fracassada busca pela imortalidade do herói Gilgamesh,
diz que: “A morte era, portanto, um mal cruel e terrível, uma vez que Gilgamesh
tinha, inutilmente, afrontado provas tão formidáveis para tentar evitá-la; mas
era inelutável para todos: era o ‘destino’ dos homens.” [Bottéro, 2011, p. 74]
Para
o ideário mesopotâmico, os prazeres da vida devem ser aproveitados, pois são
únicos e efêmeros, tais prazeres não seguirão o morto. A morte para o mundo
mesopotâmico é um caminho sem volta, sem recompensas e sombrio, pois “segundo o
Épico de Gilgamesh, nenhuma recompensa aguarda aquele que partiu” [Soares,
2006, p. 11]. A concepção de vida após a morte na Mesopotâmia muito nos lembra
o pensamento judaico, expresso nas reflexões do livro de Eclesiastes, no
capítulo 9 e versículos 1 ao 10, que observa a vida humana estando limitada às
práticas feitas em vida, pois não há nada no além.
Os
mesopotâmicos possuíam a prática da inumação: “punham-no na terra, nu, em
grandes jarros ou caixotes de argila, em fossas ou em sarcófagos de pedra. O
local tradicional do enterro era a casa paterna.” [Bottéro, 2011, p. 78]. Dessa
forma, nem sempre os mortos eram postos dentro de esquifes, mas diretamente na
terra, envoltos com tecidos. Segundo Marcelo Rede, a inumação no subsolo das
casas constituiu uma prática comum entre os mesopotâmicos desde o VI milênio
até o fim do I milênio A.E.C. [Rede, 2004, p. 125].
Quanto à alma dos mortos: “falecido o homem,
o seu espírito descia ao lúgubre e desolado mundo das profundezas [...] Para
chegar ao submundo, as almas tinham que atravessar um rio de barco.” [Kramer,
1969, p. 104, 105]. No submundo, as almas dependiam de oferendas para serem
mantidos na cidade dos mortos. Eram alimentados, e em troca disso auxiliavam o
mundo dos vivos com chuva, proteção contra a feitiçaria, fertilidade dos campos
e etc. Em alguns casos, os mortos poderiam se tornar demônios malfeitores.
Portanto, o medo fazia com que os vivos buscassem estabelecer uma relação
amigável com os mortos. [Soares, 2006, p. 12].
Ainda
segundo Kramer, após sua morte Gilgamesh tornou-se uma divindade, e estabeleceu
regras para o submundo – governado por Nergal e Ereshkigal. Uma dessas regras
era que a escuridão tomaria conta do mundo dos mortos durante o dia terrestre,
mas, com o pôr-do-sol, a luz chegaria ao submundo. [Kramer, 1969, p. 106]. A
partir do mito de Gilgamesh, a relação entre rei-herói adquire novas
prerrogativas, com o rei podendo assumir a deidade após sua morte, descendo aos
infernos. Essa relação tomará novos parâmetros na dinastia sargônida.
As
relações de poder não estão ausentes do imaginário mesopotâmico. Os reis e
cidadãos importantes tinham primazia mesmo em um submundo vazio e escuro
[Kramer, 1969, p. 105]. Haviam outras pessoas que escapavam das mais tristes
realidades do submundo: aqueles que tiravam a própria vida e os que morriam
antes de seu nascimento. A insalubridade e dura realidade de vida das cidades
mesopotâmicas certamente moldou a imagem triste e amarga acerca do mundo dos
mortos da terra entre rios.
O
épica narrativa de Gilgamesh em busca da imortalidade apresenta o imaginário
pessimista do mundo mesopotâmico em relação à morte. Entre deuses e seres
humanos, a imortalidade era uma das principais diferenças, e a morte era um
ponto natural no clico da vida humana. Na religião egípcia, os mortais não
demonstravam preocupação com o fim de sua vida terrena, dada a esperança
existente na vida futura. Por outro lado, a religião mesopotâmica apresentava
uma visão muito mais pessimista em relação à morte. Gilgamesh é um exemplo, ele
anseia pela imortalidade – não aquela que vem após a morte, mas a ausência
dela. Ele não mede esforços em sua tentativa de tornar-se imortal, em
semelhança dos deuses.
Considerações
Finais
Portanto,
podemos perceber que o entendimento de vida após a morte mesopotâmico é sombrio
e apático. A morte é temida e busca ser evitada, pois não há recompensa ou
bem-aventuranças para aqueles que deixam o mundo dos vivos. Enkidu, por punição
divina, perdeu sua vida. Seu amigo Gilgamesh tentou receber a dádiva da
imortalidade, mas fracassou. Apenas Utnapishtim, o longevo, foi agraciado pelos
deuses por haver sobrevivido ao dilúvio. A imortalidade é uma benção no mundo
mesopotâmico, pois não há algo pior que o destino após a morte.
Conhecer
literatura mesopotâmica nos auxilia a enxergar a Mesopotâmia como um espaço de
riqueza artística e cultural, percebendo que essas características não estão
limitadas ao mundo ocidental. Através do estudo das fontes do Médio Oriente,
podemos desconstruir os conceitos bases do pensamento eurocêntrico, que produz
uma visão orientalista acerca do mundo oriental. Segundo o historiador Edward
Sair, o orientalismo é:
“[...]
um estilo de pensamento baseado em uma distinção ontológica e epistemológica
feita entre ‘o Oriente’ e (a maior parte do tempo) ‘o Ocidente’ [...] O
orientalismo é um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade
sobre o Oriente” [Said, 1990, p. 14, 15].
Ou
seja, a representação que possuímos acerca do Oriente não é uma retratação
fidedigna desse espaço, mas uma construção ideológica construída pelo
pensamento ocidental, que toma para si os títulos de civilizado, democrático e
intelectual, e impõe ao Oriente os estereótipos de bárbaro, déspota e místico.
Esse olhar preconceituoso que possuímos acerca do Oriente deve ser
desconstruído a partir do contato com a arte e a cultura oriental. Ao estudarmos
a literatura mesopotâmica, por exemplo, enxergamos claramente sua riqueza
artística, expressando sua religiosidade, sua cultura, seus anseios, seus medos
e sua criatividade:
“Como
se nota, o tema central no Épico de Gilgamesh vai além da narração de viagens,
lutas e aventuras, temores e sonhos do protagonista: fala de amizade, amor,
sentimentos de vingança, opressão, arrependimento e, acima de tudo, do temor à
desaparição final e ao esquecimento após a morte.” [Soares, 2006, p. 10].
Fonte:
ANÔNIMO.
O Épico de Gilgamesh. Tradução: Carlos Daudt de Oliveira. São Paulo: Martins
Fontes, 1995.
Referências
Ryckel
Mynackson Farias Barbosa é graduando no curso de Licenciatura em História pela
Universidade de Pernambuco – Campus Mata Norte (UPE/CMN) – e membro do
Leitorado Antiguo – Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão em História
Antiga.
BELLOTTI,
Karina Kosicki; CAMPOS, Leonildo Silveira; SILVA, Eliane da. Religião e
Sociedade na América Latina. São Bernardo do Campo: UMESP, 2010.
BOTTÉRO,
Jean. No começo eram os deuses. Tradução: Marcelo Jacques de Morais.
Civilização Brasileira, 2011.
DURKHEIM,
Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na
Austrália. São Paulo: Editora Paulus, 2008.
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milênio. In.: LÉVÊQUE, Pierre (dir.). As primeiras civilizações: da idade da
pedra aos poucos semitas. São Paulo: Edições 70, 2020.
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Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Tradução: Jorio Dauster.
1° edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
KRAMER,
Samuel Noah. Mesopotâmia: o berço da civilização. Rio de Janeiro: Livraria José
Olímpio Editora, 1969.
KRIWACZEK,
Paul. Babilônia: a Mesopotâmia e o nascimento da civilização. Tradução: Vera
Ribeiro. 1° edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
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SOUZA
NETO, José Maria Gomes de. Ensaio “Aquilo que criei, ninguém jamais criou”.
In.: SOUZA NETO, José Maria Gomes de. (org.) Antigas Leituras: diálogos entre a
literatura e a história. Recife: Edupe, 2012, p. 201 – 208.
Olá!
ResponderExcluirTexto bem interessante.
No final dos anos 1980, a DC Comics, através do famoso ilustrador/roteirista Jim Starlin, publicou "Gilgamesh II", uma minissérie história em quadrinhos de ficção científica bem humorada, baseada na epopeia original.
A premissa básica é mantida, apesar dos vários pontos apresentarem uma nova perspectiva. Tudo começa em 1988, com a chegada à Terra de dois alienígenas recém-nascidos. Gilgamesh é adotado por um casal de hippies e o “Outro” (como Enkidu é chamado na série) cresce sozinho no meio da floresta amazônica. Outros personagens também foram incorporados á série, só que disfarçados por nomes e formas diferentes.
Você por acaso chegou a ler ou pesquisar tal versão?
Grato pela atenção.
Saudações!
Willian Spengler
Olá, Willian. Agradeço muito por seus comentários e sua pergunta. Ao ler seu comentário, acreditei que já havia ouvido falar acerca dessa minissérie, mas ao pesquisar percebi que não a conhecia. De início, já achei interessante a utilização de uma epopeia tão antiga pela DC, além do uso da temática alienígena. De fato, me parece bastante interessante analisar essa publicação, uma vez que é uma apropriação do passado mesopotâmico na construção de uma narrativa de ficção científica. Irei em busca dessa publicação e espero incorporá-la em minhas pesquisas em breve, seja através da análise da relação presente-passado, seja na utilização didática desse material. Mais uma vez, agradeço muitíssimo pela leitura e pela indicação.
ExcluirAtenciosamente,
Ryckel Mynackson.
Achei o texto muito interessante e rico mostrando como na Mesopotâmia antiga a visão de vida após a morte não era algo esperançoso. No texto tem uma parte que fala que isso é devido as dificuldades que se havia vivendo nas cidades e a insalubridade, eu gostaria de saber melhor como que eram essas cidades e como aproximadamente o cotidiano se desenvolvia, a organização no interior das cidades, se havia uma diferenciação de classes nessa organização.
ResponderExcluirOlá, Rafaella. Muito obrigado pelos comentários e pelas perguntas.
ExcluirAntes de mais nada, a realidade de vida nas cidades mesopotâmicas e a estratificação social delas têm alterações visíveis através do tempo. Conforme as sociedades que se formaram na Mesopotâmia meridional passam pela Revolução Urbana, a divisão do trabalho se evidencia. Com isso, temos a formação de estados, baseados na divisão social, com o surgimento de "en", "ensis" e/ou "lugals" (variando de cada cidade). Eles passam a centralizar o poder econômico, religioso e militar, e mais tarde seriam chamados de reis. Esse processo de formação de elites e de classes socias, juntamente com as formas de trabalho e controle da propriedade privada são analisados por Mario Liverani (2016), enquanto a formação de elites que centralizam o poder e formariam as monarquias locais é analisada por Paul Kriwaczek (2018). Portanto, eram sociedades estatais, onde a divisão social era baseada na posição econômica.
Em relação às cidades e sua organização, podemos ver que elas possuíam centros religiosos e administrativos. Os templos eram esse centro também político, perdendo espaço para os palácios principalmente a partir do II milênio A.E.C. Além desse centro burocrático, estavam os subúrbios, onde a maioria das pessoas viviam (João, 2013). A insalubridade das cidades, dada a falta de saneamento básico traziam doenças e morte para as pessoas mais pobres das cidades, e na religiosidade mesopotâmica, tudo o que ocorria na vida material era reflexo da cólera ou da satisfação dos deuses. Sem dúvidas, muitas sociedades enfrentavam problemas parecidos e não apresentavam pessimismo frente à morte, e sendo assim, os aspectos da vida cotidiana (baseados no cultivo e nas produções artesanais) e as dificuldades da vida urbana não são suficientes para explicar como se constroem crenças e valores. A história não se fundamenta em teleologias ou em caminhos definidos. Pensar a vida urbana na Mesopotâmia é um passo, mas não o único nessa busca.
Espero ter, mesmo que minimante, conseguido responder suas perguntas. A partir delas, pensarei e pesquisarei mais para dar maior coesão e maior abrangência nos resultados de minhas pesquisas. Mais uma vez, agradeço imensamente por seus comentários e perguntas.
Atensiosamente,
Ryckel Mynackson.
Parabéns pela excelente explicação sobre o Épico de Gilgamesh e os aspectos da religião mesopotâmica! Com base nas informações apresentadas, como as crenças funerárias e a busca pela imortalidade refletem a visão mesopotâmica sobre a vida e a morte, e quais elementos dessas crenças podem ser observados na construção social e cultural daquela época? Desde já, agradeço pela atenção e por compartilhar seu conhecimento.
ResponderExcluirFabiana Fernandes Firmo
Olá, Fabiana. Muito obrigado por seu comentário e suas perguntas.
ExcluirA busca pela imortalidade é reflexo de uma visão da morte sem glórias. Nas palavras de Siduri a Gilgamesh, é necessário aproveitar os momentos da vida, pois ela é única e efêmera. A vida "vivida" é mais valorizada que a vida que sucede a morte, pois no submundo não há recompensas. Pensando nisso, entendemos o porquê Gilgamesh não quer morrer. Que pode haver de bom no esquecimento, na escuridão e no vazio? Assim era moldada a forma de enxergar a vida e a morte no mundo mesopotâmico: aproveite a vida, pois depois da morte não há recompensas. Imortalidade é limitada aos deuses. Os homens e mulheres mesopotâmicas precisam enfrentar os dilemas humanos acerca do viver e morrer.
Em relação às implicações dessas crenças na sociedade e cultura mesopotâmica, precisamos ter em mente que nas religiões que precedem o mundo secularizado, não há separação nítida entre as esferas religiosas e políticas. As pessoas faziam rituais e ofereciam oferendas aos mortos, para que eles não passassem fome ou sede, faziam preces para que eles os auxiliassem. Isso ocorria porque os mesopotâmicos acreditavam que os mortos podiam interferir diretamente na vida deles. Por isso, enchentes, doenças, fomes e outras mazelas eram associadas à ira dos deuses ou dos mortos. Também por isso, eram utilizados preces e objetos apotropaicos. Objetos ligados a Pazuzu, por exemplo, era muito utilizados pelas mulheres assírias grávidas, pois ele as livrava do aborto. Ainda acerca das práticas funerárias, Marcelo Rede (2007) tem um artigo onde analisa como a inumação se relacionava com as questões familiares de primogenitura, herança e propriedade privada na Mesopotâmia. Vale muito a leitura. Esses são alguns exemplos de como crenças e práticas culturais se entrelaçavam na sociedade mesopotâmica, mas que obviamente não encerram a discussão.
Mais uma vez, muito obrigado pelos comentários e perguntas.
atenciosamente,
Ryckel Mynackson.
O seu texto traz uma análise muito rica e bem estruturada sobre o papel da religião nas antigas civilizações. Considerando a diversidade de crenças na Mesopotâmia, você acredita que houve alguma mudança significativa ao longo dos períodos históricos em relação à visão da vida após a morte?
ResponderExcluirMaria Vanusa Sousa Melo
Olá, Vanusa. Agradeço muitíssimo por seus comentários e pergunta. Algumas características da religião mesopotâmica tiveram alterações significativas ao longo do tempo. Por exemplo, no período sargônico as divindades principais não eram mais Enlil, Enki e An (deuses, respectivamente, da atmosfera, da terra e das águas, e do céu), mas as divindades astrais (Utu, Nana e Inana). As relações entre realeza e divindade também se alteram. No período paleobabilônico temos Marduk como divindade central... São vários exemplos. Porém, a questão das crenças funerárias apresentam certa continuidade. Por exemplo, os textos mais antigos sobre Gilgamesh são do IV milênio A.E.C., porém os judeus expressam uma visão muito parecida em seus textos, escritos (muito provavelmente) depois do século VII A.E.C. Ou seja, após o exílio em Babilônia, onde tiveram contato com as crenças mesopotâmicas. O pessimismo acerca da morte não desapareceu na região, e ainda influenciou o imaginário de outros povos. Portanto, parece que as crenças funerárias sofreram alterações mínimas, que não alteram drasticamente o conjunto religioso de crenças na vida após a morte. Não conheço evidências de alterações significativas nas crenças mortuárias deles. Em alguns momentos, a prática da inumação foi mais intensa, e o local onde isso acontecia também variou (Rede, 2007). Porém, se as práticas funerárias apresentaram essas poucas alterações, as crenças se mantiverem.
ExcluirEssa é a resposta que consigo lhe oferecer no momento, com base no meu conhecimento atual do assunto. Mais uma vez agradeço imensamente por sua participação.
Atenciosamente,
Ryckel Mynackson
Olá, Ryckel. Interessante o tema explorado em seu artigo. Pretendo explorar mais a Epopéia de Gilgamesh e a cultura (e especialmente a religião) mesopotâmica nos meus estudos posteriores. A partir dos seus estudos, qual caminho (livros, videos, palestras, etc.) você me indicaria para começar?
ResponderExcluirAlém disso, fiquei curioso com o destino dos que tiravam a própria vida e dos que morriam antes do nascimento? O que acontecia com eles?
Dean Tarik Silva Araújo
Olá, Dean. Agradeço imensamente por seus comentários e perguntas.
ExcluirBom, de início é essencial a leituras dos textos. A tradução que usei para esse texto é da Martins Fontes, final dos anos 90. Porém, há uma tradução excelente, feita pelo Brandão, da uma versão assíria do Épico. Além disso, eu indico as bibliografias do texto, com ênfase no Kriwaczek (2018), no Bottéro (2011), e no livro "Literaturas da Mesopotâmia" de 2002. Em relação aos aspectos religiosos, a professora Kátia Pozzer tem ótimos artigos publicados. Caso queira pode entrar em contato com o e-mail; ryckelmynackson.12@gmail.com que eu te passo esses e outros textos.
Acerca do destino dos suicidas e daqueles que morriam antes de nascer, não encontrei ainda estudos mais precisos a esse respeito. Porém, como os mesopotâmicos não criam em reencarnação ou em um outro local para onde poderiam ir os mortes além do próprio submundo, é possível que essas pessoas tivessem uma estadia não dolorosa no mundo dos mortos. Essa é uma hipótese. Em meus estudos futuros, buscarei aprofundar isso. No entanto, por enquanto essa é a resposta que tenho a te oferecer: não há outro lugar para onde eles poderiam ir. Então ou eles não iam a lugar algum ou iam ao submundo, mas não passavam pelo sofrimento dos demais (enxergo essa última como mais provável).
Peço perdão por não ter comentários precisos sobre essa temática. E agradeço por levantá-la, pois irei me atentar a isso com mais ênfase daqui em diante.
Atenciosamente,
Ryckel Mynackskon
Oi, Ryckel! Parabéns pelo seu texto. Certa vez li um livro do Ciro Cardoso ("Deuses, múmias e ziggurats") em que o autor fez uma história comparada entre as crenças funerárias egípcias e mesopotâmicas, achei muito interessante. Você sabe dizer se é possível traçar paralelos entre a religião mesopotâmica e outros sistemas de crença da Ásia ocidental, como o zoroastrismo?
ResponderExcluirOlá, Guilherme. Muito obrigado pelo comentário e pela pergunta. Olhando especificamente para o zoroastrismo, vejo dificuldade em traçar paralelos entre suas crenças e as mesopotâmicas. Por exemplo, o zoroastrismo crê na existência de dois deuses equivalentes, um bom e um mau. A forma de enxergar a dinâmica do conflito cósmico, o bem e o mal na religião mesopotâmica é bem diferente. No zoroastrismo, há mais de um destino para os mortos, há ressurreição, anjos... Sem dúvidas, é possível encontrar influência persa no mundo grego, e, principalmente nas religiões abraâmicas, mas não vejo proximidade com a religiosidade mesopotâmica. Posso estudar mais sobre isso, pois meus conhecimentos sobre o zoroastrismo são limitados, mas é isso que tenho a dizer por hora.
ResponderExcluirMais uma vez, muito obrigado por seus comentários e sua pergunta.
atenciosamente,
Ryckel Mynackson.