Rogério Akiti Dezem

 

O TROPISMO ORIENTAL NA OBRA DO FOTÓGRAFO FRANCÊS MARC RIBOUD (1923-2016): UMA PROPOSTA CONCEITUAL


Nesta breve apresentação, gostaria de propor um conceito relativo aos estudos sobre o espaço nocional e imagético que se costuma denominar “Oriente”, o mesmo que terá como eixo simbólico a fotografia produzida por não-asiáticos durante as décadas de 1950-1970. O termo inédito aqui introduzido, receberá a denominação de “Tropismo Oriental”. Historicamente, a partir de uma vasta literatura de viagem e uma produção iconográfica rica e complexa, o espaço imaginado que geograficamente começa ainda em terras africanas, no Egito e segue para o leste em direção ao nascer do sol – muitas vezes guiado pelo apotegma latino Ex oriente lux -, até chegar ao arquipélago japonês, foi visto a partir de diversos prismas. Não necessariamente buscando o domínio de A sobre B, mas também movido pelo conhecimento de novas tecnologias e diferentes elementos estéticos na arquitetura, música e nas artes, como afirma o historiador da Universidade de Lancaster e crítico da teoria saidiana, John M. Mackenzie (1995, p.210):

“[...] a ‘obsessão Oriental’ é um fenômeno em transformação contínuo e constante, repetidamente adaptado as necessidades da época e na busca por inovação.”[Tradução nossa]

 Desse modo, para além da dominação e invenção[Said, 1978], exotização [Segalen, 1955] ou idealização [Reis, 1999] presente nos discursos ocidentais sobre o Oriente, haveria também momentos de reinvenção e sublimação das narrativas em diferentes contextos históricos. Acredito que a palavra admiração pelo ‘outro’ oriental – na forma de um “Orientalismo relacional” [Monserrati, 2020] - represente uma parcela importante do imaginário sobre o Oriente que se materializou, principalmente através do aparato fotográfico. No segundo milênio, podemos considerar a afirmação do sociólogo português Boaventura de Souza Santos, o “ Oriente é, antes de mais nada, a civilização alternativa ao Ocidente”[Santos, 2002 apud Bueno, 2021, p.10] como um ponto de chegada para refletirmos sobre a atração pelas coisas do Oriente ao longo do século passado.   Considero que as décadas de 1940-1970, seriam um momento histórico específico, no qual se conformou um olhar particular sobre o Oriente em processo de reinvenção que vou denominar como “Tropismo Oriental”.

1.    O Tropismo Oriental

As décadas imediatas após 1945, representam um momento histórico convulsivo em terras orientais a partir dos movimentos de descolonização e de independência. Como por exemplo as independências do Marrocos, Argélia, Indochina, Índia, Paquistão, Indonésia ou da consolidação do Estado de Israel (1948), de mudanças políticas (Revolução Chinesa), de conflitos regionais (Guerra da Coréia e Guerra do Vietnã), da recuperação socioeconômica espetacular como o Japão nos anos de 1957-1968. Esses movimentos ocorridos no contexto da Guerra-Fria (1947-1991) contribuíram para que os olhares sobre estas nações - algumas nascentes - fossem repensados, reescritos e reconfigurados em muitos aspectos. A atração pelo ‘outro’ oriental nunca cessou e o seu dinamismo, principalmente no campo da representação fotográfica, desde meados do século 19, tem produzido um corpus documental que democratizou o acesso a representação do ‘outro ‘oriental a partir de uma “fotografia Orientalista”. Fotografia definida pelo pesquisador e professor de estudos pós-coloniais da UCLA Ali Behdad [2013, p. 11] como:

“[...] uma construção imaginária, embora sempre histórica e esteticamente contingente; marcada por fraturas icônicas e fissuras ideológicas, entretanto, regulada por um regime visual que naturaliza o seu modo particular de representação. ” [Tradução nossa]

Partindo dessa definição, as décadas de 1940-1970 representariam uma espécie de fratura exposta de um imaginário sobre o Oriente, produto de uma reinvenção dos olhares europeus e estadunidenses sobre o ‘outro’ oriental. Olhares, em muitos casos, alimentados pelo binômio fascinação/atração por um universo não (tão) mais distante, menos misterioso e em convulsão. Foi a partir de narrativas visuais produzidas pela fotojornalismo (revistas Life, Look, National Geographic, Paris Match) e pelas narrativas de viajantes (ou residentes) não-asiáticos como Nicolas Bouvier, Paul Theroux, Donald Richie entre outros, que novos discursos, fora dos espaços acadêmicos e “orientalistas” por tradição, se materializaram.

Defino como “Tropismo Oriental” a atração para além das terras do Levante, gestada ainda na década de 1940 e  que capturou os olhares (e almas) de escritores, jornalistas, intelectuais e fotógrafos de diferentes nacionalidades como Fosco Maraini [Dezem, 2021], Werner Bischoff, Ed van der Elsken, Eugene W. Smith e Marc Riboud. O termo “tropismo” pode ser definido como um fenômeno foto-sensorial presente no campo das ciências biológicas de “atração pela luz” que pode ocorrer também a partir de estímulos físicos ou químicos. Nesse caso, o Oriente seria um estímulo - principalmente imagético - para os autores/fotógrafos citados anteriormente. Fotógrafos que se deixaram guiar não por uma “missão civilizatória e libertadora” como preconizada na ocupação estadunidense do Japão (1945-1952), mas direcionando seus olhares (e imaginação) com o objetivo de capturar uma miríade de fenômenos – sociais, sensoriais, estéticos, culturais - em um vasto território que sofria os efeitos da Guerra-Fria. Aqui o papel da Fotografia é ímpar. Algumas imagens se tornaram icônicas como a “Reunião de Fotógrafos em Kuruizawa (1958) de Marc Riboud e “Tomoko Uemura em seu banho” (1971) de W. Eugene Smith ao serem veiculadas em jornais, revistas ilustradas e fotolivros na época. Muitas dessas imagens fizeram parte de documentários que rodaram o mundo antes da hegemonia da linguagem televisiva, abrindo espaços para novas narrativas de cunho pós-orientalista de forma pioneira.

Como poderíamos caracterizar esses “tropistas orientais”? No caso de nossa proposta de um conceito, partimos da escolha de fotógrafos estrangeiros que transitaram por terras chinesas e japonesas nas décadas de 1950-1970, ou seja, que vivenciaram esse universo em transformação, (re)criando a partir da fotografia discursos imagéticos pós-orientalistas e dessa forma, contribuindo para reinvenção dos discursos sobre o ‘Outro’ chinês e japonês.

 Nosso objetivo aqui, seria apresentar de forma sucinta alguns elementos que a priori definiriam a figura humana que personificaria o “tropista oriental”:

·         “Olhar tropista”: Oriente como espaço voltado para atração/contemplação;

·         Viajantes experientes;

·         Voltaram mais vezes ao país (identificação);

·         Comparação com o país de origem de forma crítica;

·         Criaram uma “identidade” com o país (esteticamente e culturalmente);

·         São reconhecidos (publicações/exposições) e respeitados pelo país que visitaram;

·         Atração pelo feminino;

·         Não necessariamente eram especialistas ou profissionais (i.e. acadêmicos) no universo estrangeiro que estavam inseridos;

·         A Fotografia, o Fotojornalismo e a Literatura de viagem se tornaram as principais referências sobre os seus trabalhos;

·         Os principais canais disseminadores dessas narrativas foram diários de viagem, periódicos ilustrados de grande circulação, fotolivros e exposições.

2.Olhares sobre o ‘Outro’ Oriental em transformação:  Japão e China (1940-1970)

Uma parcela considerável desses escritores e fotógrafos “tropistas orientais”, buscava alternativas para uma Europa castigada pela guerra ou para uma América que se tornava “um poema triste” [Kerouac, 1959, apud Frank, 2008] nas palavras do escritor Jack Kerouac na Introdução do seminal fotolivro “Os Americanos” (1958) do fotógrafo suíço Robert Frank. Por exemplo, no caso estadunidense, após 1945 o Oriente passou a ter uma importância estratégica, diplomática, acadêmica e econômica nunca antes vista. Este interesse multifacetado na forma de “poder”, segundo a professora de Literatura Comparada do MIT, Christina Klein, “[...] não ocorreu de forma tranquila e incontestável” [Klein, 2003, p.5] ao coincidir com o processo de descolonização. Os discursos pós-orientalistas produzidos a partir dessa nova geopolítica asiática (pós-1945), se desenvolvem a partir de paradigmas diferentes daqueles produzidos a partir na segunda metade do século 19 por europeus, principalmente britânicos, franceses e alemães. Segundo Klein [2003, p.11]:

“Enquanto muitas representações da Ásia produzidas pelos americanos antes da Segunda Guerra se encaixam muito bem na concepção saidiana de Orientalismo, muitas representações do pós-guerra sobre a Ásia não-comunista não mais, embora elas não se contradigam inteiramente. A razão para isso se encontra na evolução da capacidade dos americanos compreenderem o conceito de raça”. [Tradução nossa]

O conceito de “raça” foi por muito tempo a base do pensamento racialista científico europeu do século 19, criticado e desmantelado pelo do antropólogo germano-americano Franz Boas e sua teoria sobre o relativismo cultural no início do século 20. Foi a partir desse novo paradigma que surgiram obras seminais no pós-guerra como o livro O Crisântemo e a Espada -Padrões da Cultura Japonesa (1946) da antropóloga estadunidense Ruth Benedict ex-aluna de Franz Boas na Universidade de Columbia.

Para além das (novas) pesquisas acadêmicas sobre ‘outro’ oriental, existem as narrativas produzidas por não especialistas. Pessoas “comuns’, ávidas observadoras in loco, sensíveis ao transitório contexto histórico e questionadoras da possibilidade de reinvenção das narrativas sobre o Japão e os japoneses por exemplo. Como foi o caso do relato da escritora Lucy Herndon Crockett, na época (1945-46) voluntária da Cruz Vermelha norte-americana em terras japonesas sobre a ocupação estadunidense:

“Antes de Pearl Harbor o americano médio, eu inclusive, imaginava o Japão em termos do monte Fuji, Madame Butterfly, cerejeiras, e aquela figura decorativa e levemente silenciosa, a gueixa. Durante os tempos de guerra, sobrepuseram-se a isso a noção de uma nação traiçoeira, com homens-macaco cometendo atrocidades, como monstros na selva de olhos puxados e uma faca entre os dentes. Hoje, ouvimos que os japoneses sinceramente lamentam tudo isso, que eles amam o General MacArthur e todos os americanos, e estão aderindo alegremente com todo coração a “democracia”. Desde o meu retorno do Oriente, eu constantemente me pergunto: “Como realmente é o povo japonês? “A democracia realmente funcionou? ” Os japoneses (no original em inglês: Japs) estariam jogando um jogo de espera (no original em inglês: playing a waiting game)? ” e “Você pode confiar neles?””. [Crockett, 1949, p. IX-X, Tradução nossa]

No caso chinês, a escritora estadunidense e prêmio Nobel de Literatura (1938), Pearl S. Buck publicou a obra The Good Earth (1931) que veio a ser a mais influente representação da China na época [Klein, 2003, p. 4]. Livro que vendeu mais de dois milhões de cópias, vindo a se tornar uma peça na Broadway e depois, filme de grande sucesso de bilheteria em 1937. A imagem simpática de uma bucólica, tenaz e nacionalista China, que resistia ao imperialismo japonês, também era propagandeada pela revista ilustrada Life para o público estadunidense.

 A partir do início da década de 1950, os discursos acerca do Japão e China em terras yankees tomam outros rumos. No caso japonês - uma nação derrotada e ocupada (1945-1952) - as narrativas baseadas em referências que remetem ao exotismo da segunda metade do século 19, foram reformatadas e novamente veiculadas a partir de revistas ilustradas, artigos e imagens. Enquanto que a China comunista, passou a ser vista de forma hostil como uma ameaça militar e ideológica por boa parte da opinião pública estadunidense [Littlewood, 1996, p. 74].

Por seu turno, historicamente as relações francesas com o Japão tiveram um tom diferente daquelas com outras nações orientais, apesar de ser uma nação imperialista diretamente envolvida com o processo de descolonização na guerra com a Indochina (1946-1954) na época.   Logo após o processo de reabertura do Japão ao Ocidente (1850-1860) e a difusão do Japonismo (1872) a partir da França, as relações entre as duas nações tiveram como leitmotiv principalmente, aspectos culturais e estéticos. E três momentos distintos podem ser distinguidos ao longo do século 20 [Sabre,2012, p. 83]: o primeiro deles vai até os anos de 1960, quando o Japão ainda era visto como uma nação distante e misteriosa pela maioria dos franceses, mas que fascinava, como notamos na obra o Império dos Signos (1970) do filósofo Roland Barthes. Foi a partir dos anos de 1970 que os olhares franceses sobre o Japão [Sabre, 2012, p. 84] assinalaram para um caminho de competição e desconfiança. Muito graças a concorrência comercial dos baratos produtos “Made in Japan”, mas que se mantiveram positivos em relação ao universo estético e cultural japonês.

Com relação a China, as relações franco-chinesas seguiram um roteiro diferente das relações com o vizinho japonês ao longo do século 20. Por um longo período, movidas muito mais por desconfiança mútua e tensões geopolíticas, principalmente na região da ex-Indochina francesa e da ascensão do regime comunista na China a partir de 1949. Fatores que esfriaram as relações sino-francesas, levando ao não reconhecimento do governo da República Popular da China pelos franceses por cerca de 15 anos.

 

 

3.Marc Riboud (1923-2016): um tropista oriental par excellence

Em abril de 2023, como parte das celebrações dos 60 anos de amizade franco-chinesa (1964-2024), em visita de Estado à China o presidente francês Emmanuel Macron presenteou o presidente chinês Xi Jinping com duas fotografias icônicas do fotógrafo francês Marc Riboud: “Rua Dashalan vista de uma loja de antiguidades” (1965) (Figura 1) tirada em Pequim e “Duas Baguettes, Paris” (1953), presentes que simbolizariam a amizade entre as duas nações. A França representaria a matriarca e pioneira da Sinologia no Ocidente e a China, por seu turno, uma civilização axial [Eisenstadt, 1986], milenar referência no Oriente, mas muitas vezes incompreendida.

Figura 1


Fonte: Riboud, 2019, p. 86-87

A escolha de duas fotografias produzidas por Riboud como símbolos de amizade e diálogo sino-francês, podem ser consideradas para além de um ato diplomático, mas também como uma celebração estética e transcultural do olhar tropista oriental de um fotógrafo que entre 1957 e 2010, viajou dezenas de vezes para a China e testemunhou com suas lentes – enamoradas e impressionadas pelo ‘outro’ chinês - um universo em transição. Suas palavras no prefácio do fotolivro Chines (2019) podem ser consideradas como uma espécie de cânone tropista oriental:

“Sou fotógrafo, não sou sinólogo. Na China andei muito, observei muito, fotografei muito. Também tomei muito chá enquanto ouvia as longas apresentações que seguiam sempre o protocolo da época. Li livros, ouvi as histórias dos viajantes, compartilhei seus entusiasmos, suas decepções, suas dúvidas. Deveríamos acrescentar mais palavras a todas aquelas que foram escritas por pessoas mais competentes do que eu? [...] A melhor maneira de descobrir a China não é olhando para ela? A observação diligente dos detalhes e do momento pode, aqui ainda mais do que qualquer outro lugar, ajudar-nos a conhecer e compreender. [...] Em todos os lugares vi, amei, a beleza dos rostos, a pátina das ferramentas a imensidão e a estranheza das paisagens e em todos os lugares uma certa dignidade que, para quase um povo inteiro substituiu a humilhação. ” [2019, p. 11. Tradução nossa] Segundo o fotógrafo e curador britânico Martin Parr, Riboud seria “um dos poucos fotógrafos cuja obra reúne os mundos da fotojornalismo e da arte” [Jones, 2023. Tradução nossa].

Marc Riboud nasceu em 1923 em Saint-Genis-Laval, perto de Lyon no seio de uma família burguesa de seis irmãos. Em 1937, na Exposition Universelle de Paris, o jovem tímido e quieto fez suas primeiras fotos, usando uma pequena Kodak Vest Pocket que o pai – um homem erudito, viajado e entusiasta da fotografia - lhe deu em seu aniversário de 14 anos. Segundo o próprio Riboud, seu pai lhe teria dito: “Marc, você não sabe falar, talvez saiba olhar ...”. [Riboud, 2012, p. 11. Tradução nossa]

 Durante a segunda guerra, ele aderiu à resistência francesa. Estudou engenharia na Ecole Centrale de Lyon e começou a trabalhar como engenheiro. No entanto, três anos após formado (1951), ele decidiu abandonar o emprego e se tornar um fotógrafo freelance. Decisão tomada após ter contato com os fundadores da agência Magnum Photos, Henry Cartier-Bresson, Robert Capa e David ‘Chim’ Seymour em Paris.

Em 1953, sua fotografia “Zazou, o pintor na Torre Eiffel” foi vendida por Robert Capa e publicada na revista ilustrada Life e logo depois, Riboud foi indicado por Cartier-Bresson e Capa para juntar-se à agência Magnum, tornando-se membro efetivo em 1955.

No mesmo ano, tem início a formação do seu olhar tropista, quando Riboud viajou por estradas através do Oriente Médio, do Afeganistão até a Índia, onde permaneceu por um ano. Em 1957, ele viajou de Calcutá para a China – sendo um dos primeiros fotógrafos ocidentais a viajar para o país após 1949 - fazendo a primeira de muitas viagens. Seu périplo oriental terminou no Japão, onde ele encontrou um dos seus temas favoritos, que se tornará seu primeiro livro, Mulheres do Japão (1959).

Muitas vezes, munido de sua Leica e fotografando para “si mesmo”, como um andarilho silencioso por estradas, vilarejos, cidades chinesas sob o impacto da Revolução Chinesa (1949) e depois da Revolução Cultural (1966), o fotógrafo francês documentava de forma precisa, mas ao mesmo tempo poética e intimista, realidades em transformação.

Na introdução do fotolivro de Riboud Olhares da China (1980), o historiador estadunidense e diretor do Centro de Relações EUA-China da Asian Society, Orville Schell define o que vem a ser um dos pilares da obra riboudiana:

“Riboud mostrou as inconsistências e os pontos de tensão da Revolução Chinesa, não para manchá-la, mas para restaurar a humanidade extirpada pela longa monotonia da propaganda política” [Jones, 2023. Tradução nossa]

Em 1960, após uma estada de três meses na URSS, cobriu as lutas pela independência na Argélia e na África Subsaariana. Entre 1968 e 1969 ele fotografou no Vietnã do Sul e do Norte, um dos raros fotógrafos autorizados a entrar essas regiões em conflito.

Em 2010, aos 87 anos fez sua última viagem à China (Xangai) para uma exposição sua e aproveitou para fotografar pela última vez em terras chinesas.

Marc Riboud faleceu em Paris, aos 93 anos, no dia 30 de agosto de 2016. O núcleo do seu arquivo foi doado ao Museu Nacional de Artes Asiáticas Guimet, Paris, em 2019.

Palavras finais

As leituras da realidade chinesa ao longo de 50 anos, através de imagens produzidas pelo tropista oriental Marc Riboud são admiradas não só na Europa, mas na própria China. Por exemplo, com várias homenagens e exposições ao longo dos anos, - a mais recente (2024/2025) “O Ocidente Encontra o Oriente” – Exposição Retrospectiva de Marc Riboud no Museu de Hunan  (https://www.hnmuseum.com/en/content/west-meets-eastretrospective-exhibition-marc-riboud%E2%80%99s-photography ) - podem ser consideradas obras mediadoras do olhar entre culturas diversas, complexas, mas historicamente interligadas e que dialogam. Nesta breve apresentação, minha proposta de um conceito (“Tropismo Oriental”), a partir de um contexto histórico especifico (1940-1970) e de uma produção iconográfica, cuja matriz foi a fotografia Orientalista, produzida entre meados do século 19 e início do 20, objetiva repensar a dualidade “nós x eles” preconizada por E. Said (1978). A obra fotojornalística e de fotografia de rua de Riboud como a de outros fotógrafos, escritores e viajantes contribuiu para redefinir os olhares sobre o Oriente ao escapar do estigma monolítico do “fotojornalista ocidental que retratou o Oriente”, a partir de olhares que subjugam, estereotipam ou depreciam o ‘outro’ oriental, seja ele chinês, japonês, vietnamita, afegão, turco, entre outras nações orientais.

 Referências

Rogério Akiti Dezem é Historiador e Professor de Cultura e História do Brasil no Departamento de Estudos Luso-Brasileiros da Universidade de Osaka (Japão). Autor das obras Shindô-Renmei: Terrorismo e Repressão (AESP, 2000), Matizes do Amarelo. A gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil 1878-1908 (Humanitas-USP/FAPESP, 2005) e de mais de duas dezenas de artigos relacionados à História da Imigração Japonesa no Brasil. Desde 2015 se dedica a pesquisar aspectos culturais e sociais da História Contemporânea Japonesa (1868-1968) a partir da iconografia e fotografia sobre o Japão/japoneses produzida por olhares nativos e estrangeiros. É membro do GEFJK (Grupo de Estudos de Fotografia Japonesa Kaigen). Email: dezemsensei@gmail.com.

 

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CROCKETT, Lucy Herdon. Popcorn on the Ginza. An Informal Portrait of Postwar Japan. New York: William Sloane Associates, Inc., 1949.

DEZEM, Rogério Akiti. “Fosco Maraini (1912-2004) e o Japão”. In: Studies in Language and Culture 47 – Osaka: Osaka University, 2021. p.169-196.

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KLEIN, Christina. Cold War Orientalism. Asia in the middlebrow imagination, 1945-1961. Berkley: University of California Press, 2003.

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SEGALEN, Victor. Essai sur l’exotisme. Une esthétique du divers. Paris: Éditions Mércure de France, 1955.

 

6 comentários:

  1. Parabéns pelo artigo, Dezem!

    Gostei muito da sua proposta de pensar para além da categoria de “Orientalismo”, saindo dessa dicotomia de nós e outro.

    Você poderia explorar melhor o “olhar tropista”? Gostaria se saber principalmente como esse olhar de contemplação/admiração pelo Oriente difere de uma visão orientalista do “Outro”?

    Por fim, é interessante como a feminilidade atraem os estrangeiros. Você tem alguma hipótese para tal?

    Obrigada!
    Luana Martina Magalhães Ueno

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  2. Boa noite, Luana

    Agradeço a leitura do texto e as perguntas.

    Situando historicamente os discursos a partir dos “olhares” produzidos pela literatura de viagem e fotografia sobre o Oriente (ou Leste Asiático), a priori, podemos dividir em três grandes momentos: meados do século XIX e início do XX; imediato pós-segunda guerra e meados da década de 1960 e do inicio dos anos 2000 para os dias de hoje. Tomei como referência a produção de narrativas (principalmente visuais) sobre o Japão e a China. Minha hipótese é de que o “olhar tropista” se formou no segundo momento histórico(1940-1960). Ao fazer contraponto a um olhar que denomino como “revivalista”, resquício de um imaginário sobre o ‘outro’ Oriental produzido na segunda metade do século XIX. Essa maneira de ver o ‘outro’ partia de uma necessidade de domesticação (não dominação!) do Japão e dos japoneses, por exemplo. A tríade clássica, “Samurai, Gueixa e Monte Fuji” seria a essência desse discurso “revivalista” (presente até hoje) e neste caso, a fotografia (omiyage shashin) tem um papel fundamental. Esse olhar “contemplativo” sobre o Japão, percebido nas imagens produzidas por fotógrafos estrangeiros e japoneses da época (1870-1890), buscava menos compreender o país narrado/retratado do que afirmar o caráter “misterioso”, “exótico”, “belo” e “nostálgico”. E nesse contexto, as imagens produzidas sobre a China e os chineses seguem padrões técnicos similares aos do Japão , mas diferem nos temas e realidades retratadas, construindo narrativas visuais que muitas vezes flertam com o Orientalismo saidiano. Décadas depois, ainda temos a permanência desse “olhar revivalista”. O “olhar tropista” seria uma forma de olhar/narrar o ‘outro’ oriental que segue um caminho diferente do “olhar revivalista”. Como se trata ainda de uma hipótese minha, não tenho elementos efetivos para definir até que ponto esse caminho seria diferente… No entanto, posso afirmar que os “tropistas orientais” (na fotografia) não buscavam uma leitura do outro a partir da contemplação como um souvenir exótico, uma nostalgia oriental, para demonstrar as diferenças entre “nós x eles” ou mesmo a “domesticação”, “dominação” do ‘outro’ etc etc. Mas a partir de observações, curiosidade, muitas vezes de admiração em relação a cultura (e não mais de um “objeto”) retratada, buscando elementos não só estéticos, mas históricos, socioculturais que pudessem explicar e, principalmente, responder a questões (muitas vezes pessoais) desses tropistas sobre o ‘outro’ Oriental. Riboud e outros fotógrafos (e experientes viajantes) na época como Maraini, Bischoff e Van der Elsken em sua produção fotográfica sobre nações como Índia, China, Coreia e Japão neste período (1950-1960) representariam essa admiração pelo ‘outro’ oriental em transformação, a partir de uma contemplação/admiração que fugia de um olhar “revivalista” comum aos outros fotógrafos da época como Horace Bristol, por exemplo. Desse modo, se partirmos do Orientalismo saidiano (“dominação”/“erotização”/“exotização”) como referencial, notamos que o olhar tropista buscava outras maneiras de traduzir o ‘outro’ Oriental.


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  3. Já sobre o feminino asiático, posso discorrer sobre o que pesquisei, o feminino japonês. Não tenho cabedal teórico para discorrer sobre essa questão na China ou Índia por exemplo, mas os olhares e narrativas estrangeiras sobre esse tema variam de acordo com a cultura observada, narrada e retrata muuuito provavelmente. Por isso, acredito que há diferenças em representar o feminino japonês darepresentação do feminino chinês, por exemplo. Os tropistas orientais que pretendo pesquisar tiveram uma admiração, atração pelo feminino japonês, principalmente pelas diferenças culturais, físicas e de representatividade na sociedade com relação ao feminino não-asiático (no caso europeu). As narrativas e imagens produzidas na época (1950-1960) do feminino japonês retratam muitas vezes a versatilidade da mulher japonesa em uma nova realidade social. Mulheres que ao mesmo tempo se “modernizavam”, mantendo a elegância tradicional da mulher japonesa nos hábitos e vestimentas. Isso fascinou fotógrafos como Riboud que com seu olhar perspicaz de fotojornalista buscou apresentar essas nuances (sem objetificar o feminino) em seu primeiro fotolivro “Women of Japan” (1959), publicado em holandês e inglês. O texto introdutório do fotolivro é de autoria da escritora franco-húngara Christine Arnothy. Ela traduz de forma equilibrada, bem humorada e elucidativa em texto a obra imagética de Riboud sobre a mulher japonesa. Já o feminino chinês também está muito presente na obra de Riboud, acredito que até de forma mais complexa, pois ele visitou o país mais de uma dezena de vezes entre os anos de 1950 e 2000. Pretendo explorar este tema mais cuidadosamente em um futuro artigo. Um fato interessante, enquanto os tropistas orientais (Riboud e cia.) buscavam retratar o feminino japonês como representação de um “novo Japão”, fotógrafos japoneses tendiam a retratar a mulher japonesa de forma nostálgica (i.e. conservadora) ou como “vítimas” do pós-guerra ou como “flores venenosas e estéreis” (Kiken na Adabana) como no pioneiro fotolivro da fotógrafa Toyoko Tokiwa. Para finalizar, acredito que fotógrafos como Riboud buscavam narrar o ‘outro’ oriental fugindo dos padrões da fotografia “revivalista”, direcionando os olhares para narrativas visuais mais autorais, partindo de vivências e de um conhecimento empírico (e menos, bem menos teórico) sobre o Oriente. Diferente dos estudiosos ou “especialistas sobre o Oriente” (ou Leste Asiático) de gabinete (i.e. conhecimento teórico, livresco…apenas). Desse modo, o olhar tropista agrega elementos mais críticos, como também estéticos mais singulares e provocativos sobre as narrativas sobre o ‘outro’ Oriental.
    Espero ter respondido as suas ótimas questões Luana!

    Um abraço,

    Dezem


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  4. Olá, Rogério!

    Primeiramente gostaria de parabenizá-lo pelo excelente texto!

    De fato, como a Luana colocou acima, é extremamente interessante pensar o Orientalismo além da dicotomia de nós e do outro. Me recordo de sua apresentação no LAPECO algum tempo atrás, onde você já buscava pensar a temática para além da obra de Said, que também não deixa de ser uma abordagem interessante.

    Parece-me muito significativa essa mudança de olhar e entendimento sobre o outro (japoneses no caso), principalmente pensando no pós-guerra imediato, onde as relações entre Estados Unidos e Japão se invertem completamente, tornando necessária a construção de uma narrativa de cumplicidade, que muitas vezes era vista em termos sexuais, como aponta o historiador Yoshikuni Igarashi, onde EUA era visto em termos masculinos, e o Japão, devastado, e fragilizado, dependente de outra nação, tomava para si o feminino.

    Fico me perguntando, o olhar Ocidental (principalmente americano), pode ter influenciado em alguma medida a construção da própria identidade japonesa do pós-guerra?

    Enfim, um pensamento que surgiu durante a leitura de seu texto. Vou considerar as referências para leituras sobre a temática em um futuro breve, visto que domino muito pouco o assunto, mas que me interessa bastante.

    Muito obrigado!
    Lucas Ciamariconi Munhóz.

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    Respostas
    1. Olá, Lucas.

      Agradeço a leitura e a pergunta que faz todo sentido a partir do contexto apresentado no meu breve texto.

      O imediato pós-guerra - e aqui falo de setembro de 1945 como baliza histórica - marca o início de uma produção imagética e discursiva sobre o Japão sob a perspectiva de um “neorientalismo” (cujo ponto de partida são os EUA e a revista Life) e que flerta com o olhar “revivalista” que mencionei anteriormente (resposta à Luana). Esse olhar tem como matrizes os desejos de políticos e intelectuais estadunidenses e japoneses de ressignificar o papel (e a representatividade) do Japão (derrotado e humilhado) na nova geopolítica mundial que se conformava.No campo intelectual existem debates (dentro e fora do Japão) que ficaram mais explícitos no período após a ocupação (1952~), por exemplo, a
      dicotomia feminino (Ásia - Japão) x masculino (Europa-Estados Unidos) foi retomada (já fazia parte do imaginário sobre o ‘outro’ japonês desde meados do século XIX). No entanto, no contexto de 1945-1965 principalmente, além de um processo americanização (de forma desigual) do arquipélago japonês, podemos notar aberturas (fissuras?) no espaço discursivo que criam a possibilidade do surgimento de contra-discursos.

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    2. E foi nos interstícios desses diálogos, não só no campo intelectual, mas também na fotografia, que surgiram alguns dos princípios elementos (“novos” e não tão “novos”…) que alimentaram as s debates sobre o “ser japonês” , ou seja, a influência estadunidense (ocupação/democratizacao) catalisou esses debates (o Igarashi explora isso, mas nao profundamente). No caso da fotografia, citando aqui as cidades de Hiroshima e Nagasaki, ocorreu uma disputa (silenciosa) sobre como, quando e quem, teria o direito de materializar em forma de imagens o sofrimento humano e a destruição dessas cidades: vencedores ou derrotados? É nesse ponto que podemos situar o olhar tropista oriental do fotógrafo suíço Werner Bischoff que fotografou Hiroshima em 1951. As imagens produzidas por ele são (até onde eu sei) as primeiras de um fotógrafo ocidental (não estadunidense) a ir além dos discursos “vitimizantes” ou “moralizantes” E causaram impacto na maneira de enxergar o trágico acontecimento (diferente dos olhares estadunidenses e japoneses). A partir daí, fotógrafos de renome estrangeiros e, principalmente, japoneses, passaram a produzir narrativas imagéticas pessoais (alguns buscando uma “fuga” dos discursos oficiosos) até por volta de meados da década de 1960 com a obra “Hiroshima 1965” do fotógrafo japonês Ken Ishiguro.

      Como vc bem sabe a temática é vasta e pode nos levar para diferentes caminhos, mas espero ter respondido minimamente.

      Obrigado e um abraço,

      Rogério A. Dezem

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