Renata Ary

 

IBN KHALDUN, A MUQADDIMAH E AS MADRASSAS: BREVES APONTAMENTOS SOBRE OS PRINCÍPIOS BÁSICOS PARA UMA INSTRUÇÃO DE QUALIDADE

 

1 - Ibn Khaldun e a muqaddimah

 

Ibn Khaldun [1332-1406] viveu durante o século XIV, no final da idade média ocidental, entre o mundo muçulmano dos Marínidas no Marrocos [1269-1430], dos Háfsidas na Tunísia [1228-1574], dos Násridas em Granada [até 1492], dos mamelucos no Egito [1250- 1517] e do Império mongol de Tamerlão [1331-1405]. [Lopes, 2021]

 

Nascido em Tunes, em 1332 [732 da Hégira], a vida de Khaldun foi marcada pelas viagens que vivenciou, inclusive antes mesmo de nascer, pois seus antepassados, durante o século VIII, emigraram do sul da Arábia [atual Iêmen] para Andaluzia [sul da Espanha], que na época já fazia parte do mundo muçulmano. O seu nome completo, Abd-ar-Raḥmân Abû Zayd ibn Muḥammad ibn Muḥammad ibn Khaldûn al-Ḥaḍramî, atesta as suas raízes, pois a nomenclatura al-Hadrami está associada a palavra Hadramu, região do Iêmen. [Lawrence, 2015]. Viveu em Fez, Granada, Búgia e no Egito [Cairo], onde faleceu, no ano de 1406. Foi sepultado no cemitério dos sufistas no Cairo. [Jaldun, 2005]

 

O autor deixou sua autobiografia intitulada at-Tarif bi-ibn Khaldun wa-Riḥlatih Gharban wa-Sharqan que significa “apresentando Ibn Khaldun e sua Jornada pelo Ocidente e Oriente”. Nela Khaldun percorre a história de sua família, desde a gênese na hispânia até a sua própria trajetória, um pouco antes da sua morte. Ele apresentou as suas raízes genealógicas de forma cronologicamente inversa: iniciou contando sobre a sua ancestralidade em al-Andalus e após, na Arábia, numa tentativa de ligar os dois mundos que representavam, com orgulho, a sua origem conquistadora. Narrou sobre as funções governamentais exercidas por seus ancestrais, bem como as que ele próprio operou durante os longos anos que serviu às dinastias do Norte da África e da hispânia. [Fromhertz, 2010]

 

No século XIV escreveu sua obra de maior destaque: a Muqaddimah, que é a introdução da Kitab al-Ibar [História Universal]. Etimologicamente muqaddimah [مقدمة] é uma palavra árabe que significa prólogo ou introdução de uma obra maior. Foi escrita entre 1374 e 1378 durante o período em que Ibn Khaldun esteve exilado no castelo fortificado de Calat Ibn Salama. No manuscrito, o autor nos apresenta conhecimentos históricos desde a cosmografia, a geografia do mundo até a retórica e a poética na qual ele sintetiza as ciências humanas [essência humana] entre os árabes. A obra é reflexiva e sem alegorias, sem grandes feitos ou ações heróicas. Ao contrário, apresenta o retrato da vida cotidiana da época, bem como a importância que o autor atribuiu às ciências intelectuais, ao conhecimento e à sua transmissão. [Jaldun, 2005]

 

2 - Breves apontamentos sobre os princípios básicos para uma instrução de qualidade

 

Al Muqaddimah foi dividida em 06 livros. No livro sexto, intitulado das diversas espécies de ciência e dos métodos e procedimentos de ensino, Khaldun reflete sobre o sistema de aprendizagem e sobre as mudanças desse sistema nos países árabes muçulmanos, desde a idade média até o século XIV, bem como sobre as formas de instrução e as condições para alcançá-la. [Jaldun, 2005]

 

A habilidade do indivíduo em aprender é uma arte e bem exercê-la dependerá dos bons ensinamentos que receberá e do talento de quem os instruirá. Nesse sentido, Khaldun [2005] na Muqaddimah, elenca quatro princípios básicos para a uma instrução científica de qualidade, eficaz e que ilustram o caráter pragmático da sua abordagem educacional.

 

O primeiro princípio é o gradualismo:  o ensino só será eficaz quando ocorrer pouco a pouco, gradualmente, pois a repetição e o cultivo de hábitos é a base para o aprendizado. O processo de repetição deve ser triplo, caso contrário, os alunos que não têm familiaridade prévia com as ciências, ficarão sobrecarregados, pois terão que compreender, de plano, conceitos desafiadores e que não fazem parte do seu dia-a-dia.

 

O segundo é a flexibilidade:  o instrutor deve ser flexível e ajustar o sua pedagogia de acordo com a receptividade dos estudantes. O verdadeiro mestre não deve exigir mais do que o aluno pode assimilar. O terceiro, é o diálogo:  os professores devem ensinar através de uma estrutura dialógica. Essa estrutura exige uma articulação original do estudante sobre o tema estudado. Os processos dialógicos medem não apenas a compreensão do aluno sobre o conteúdo ministrado, mas também a capacidade de avaliar criticamente a informação recebida através da discussão. Khaldun [2005, p. 557] narra que: “Alguns estudantes passam a maior parte da vida frequentando aulas acadêmicas. Ainda assim, encontramo-los em silêncio. Eles não falam e não discutem assuntos. Mais do que o necessário, preocupam-se em memorizar”. Sem a comunicação e o diálogo sobre o conhecimento adquirido “os estudantes não serão capazes de compreender plenamente os detalhes do que aprenderam. Assim, não desenvolverão firmemente hábitos científicos, mas pensarão que o hábito científico é idêntico ao conhecimento memorizado”. [Jaldun, 2005, p. 557].

 

O quarto princípio é a clemência: o professor deve ser capaz de entender as falhas dos alunos e evitar penas e castigos imoderados. Ele deve incentivar o estudante a ser empenhado e íntegro. No entanto, ao citar Al-Rashid, Khaldun [2005] adverte: “Não seja sempre muito tolerante com o aluno ou ele acabará gostando do lazer e se acostumará com ele. Tanto quanto possível, corrija-o com gentileza. Se ele não quiser que seja assim, você deve então usar a severidade e a aspereza.

 

O ensino público na sociedade muçulmana estava vinculado ao conhecimento e a divulgação do conjunto de normas Corânicas. Com o surgimento das madrassas [مَدْرَسَة] [século X], escolas muçulmanas ou casas de estudos islâmicos, a educação e o conhecimento foram difundidos a fim de garantir a ordem social. [Enamorado, 2006]

 

Em árabe a palavra madrassa significa “local de aprendizagem”. Elas desenvolveram-se, inicialmente, como uma escola religiosa. Foi durante os sultanatos de Seljuk [1037-1194] e do califado Abássida em Bagdá [750-1298], que as madrassas atingiram o seu apogeu e começaram a estabilizar-se como espaços de ensino especializados. A princípio elas eram elitizadas e tiveram sua gênese como escolas privadas, posteriormente passaram aos espaços públicos, sobretudo durante o reinado do vizir Nizam al-Muk [1018-1092]. Nesse período as madrassas passaram a ser chamadas de nizamiya e o estudo era voltado exclusivamente para a religião, especialmente sobre o combate ao xiismo e às cruzadas. [Semiond, 2021]

 

A primeira madrassa pública construída por Nizam, foi a de Bagdá, cujo objetivo era ampliar o conhecimento, combater o califado xiita fatimíada [909-1171] e fortalecer o sultanato seljúcida através da difusão dos ideais sunitas. Durante o século XI, com as conquistas do Sultão Al- Arslan [1064-1072], as nizamiya foram ampliadas, em especial nas regiões da mesopotâmia até o Grande Khorasan, passando pela Anatólia. [Semiond, 2021]

 

Ainda no século XI, durante o reinado dos seljúcidas e fatimíadas, as madrassas públicas passaram a ensinar, além da religião, disciplinas como a lógica, a geometria e astronomia.   Os professores eram eruditos renomados, a exemplo de Al-Ghazali, que lecionou na madrassa nizamiya de Bagdá. Essas madrassas: “tiveram certa influência no desenvolvimento das universidades européias” [Semiond, 2021, p. 3]

 

As madrassas, além de serem centros de educação e cultura, também abrigavam os mustahiqs [estudantes], que recebiam hospedagem e alimentação durante o perído de estudos e que acabavam compartilhando seus conhecimentos e experiências com as gerações futuras. Elas eram fundamentamentais para a difusão do conhecimento e da democratização da educação, tornando-as mais acessíveis às pessoas das classes sociais mais baixas. Com as invasões mongóis, durante o século XIII, as madrassas perderam o seu apogeu, não desapareceram por completo, mas tiveram que adaptar-se aos novos tempos e à nova realidade. [Semiond, 2021]

 

Durante a dinastia dos Marínidas [1269-1464], sobretudo no final do século XIII, época em que viveu Ibn Khaldun, as madrassas voltaram a se desenvolver e tinham sede no atual Marrocos. Elas tornaram-se um elemento importante da arte Marínida, pois eram uma instituição central de ensino e de poder político-religioso que sustentava a dinastia. Várias tribos da confederação Zinata Imazighen que, de acordo com Ibn Khaldun era uma das três grandes confederações Imazighen da Idade Média, juntamente com os Masmuda e Sanhaya, aproveitaram o enfraquecimento do Califado Almóada para ampliar o seu poder político em toda a região.

 

Os Marínidas são conhecidos como a “dinastia das madrassas” e deixaram um importante legado cultural e artístico, presente hodiernamente em muitas cidades do Marrocos. O poder Marínida também foi marcado pelo regresso ao Malikismo como doutrina religiosa, mas também como fonte de legitimidade para as novas elites religiosas e jurídicas. Através da construção de madrassas, Fez tornou-se, juntamente com o Cairo, um centro de conhecimento que acolhia diversos acadêmicos e juristas, como al-Wansharisi. [SEMIOND, 2021]

 

De acordo com Semiond [2021], sete madrassas do período Marínida resistem ao tempo. Notáveis ​​tanto pela sua beleza como pelo papel histórico que desempenharam, a mais antiga das sete madrassas é a de Saffarin, em Fez el-Bali, construída em 1271 por encomenda do Sultão Abu Ya'qub Yusuf. Seu layout e design mostram o modelo inicial das madrassas Marínidas, que se desenvolveram no final da primeira metade do século XIV. Ela foi construída perto da Universidade de Qarawiyyin, em 859 durante o reinado da dinastia Idrisid por Fátima al-Fihri.

 

A Attarin Madrassa, fundada em 1325, por ordem do Sultão Abu Sa’id Uthman II, também resiste ao tempo. Ela destinava-se à formação de altos funcionários Marínidas e é considerada uma das mais notáveis maravilhas de Fez. O seu exterior é liso, mas o seu interior apresenta uma decoração sofisticada, utilizando muitos dos materiais que representam a arte Marínida, como a madeira, o estuque e o bronze. Outras madrassas também foram construídas perto de grandes mesquitas, como a de Andaluzia e a Grande Mesquita de Meknes. Estas madrassas tinham seus próprios cursos e tornaram-se instituições conhecidas, não obstante tivessem currículos ou especializações restritas em comparação aos centros universitários. [Semiond, 2021]

 

Khaldun esclarece [2005] que o desenvolvimento da sociedade e a sua duração, estão intimamente relacionados com o conhecimento e a instrução que o seu povo tem. A falta de erudição dá ensejo a desintegração social e com ela, a decadência do império, desse modo, é dever do governo garantir a formação científica ao seu povo. O autor exemplifica o seu raciocínio ao afirmar que um dos motivos da queda do império muçulmano no Magreb, foi o desaparecimento do cultivo da tradição de educar, pois quando as boas tradições da transmissão do conhecimento são perdidas, fica difícil para uma sociedade restabelecer a cultura do saber. Uma das formas de reaviva-la seria desembaraçar a linguagem através de diálogos e discussões, no entanto, lamenta o autor, os estudantes perderam o hábito de estudar e silenciam quando, em uma conversa, temas científicos são debatidos. “Eles tentam mais do que o necessário carregar a mente [com noções diversas], mas não obtêm nada de útil em termos de capacidade de afirmar o seu conhecimento ou de ensiná-lo” [Khaldun, 2005, p. 732]. Há um vazio, um vácuo que deixa os estudantes sem alcançar a amplitude de seus conhecimentos, cuja causa é a má instrução e a interrupção da boa tradição acadêmica. A memória deixa de ser preenchida.

 

O autor exemplifica que, se na Tunísia um estudante precisa de 05 anos para alcançar o aprendizado científico, no Magreb, ele precisará de 16 anos. Esse fato decorre da imperfeição do sistema didático. Na Espanha muçulmana “os vestígios da formação acadêmica desapareceram e os habitantes já não exercem profissões científicas. Isto deve-se ao declínio da civilização muçulmana, que, neste país, floresceu durante vários séculos. Não há vestígios de estudos ali, exceto a língua árabe e as belas letras”. [Khaldun, 2005, p. 733]

 

Afim de ilustrar a sua preocupação com o desenvolvimento do conhecimento científico, em tom crítico, Khaldun narra, uma passagem entre o califa ‘Umar Ibn al-Khattab e seu general que,  durante a conquista muçulmana sobre os persas, encontrou alguns livros. Sob o argumento de que os livros continham ensinamento e somente Allah poderia ensinar e proteger, o general sob ordem do califa, destruiu os livros, jogando-os ao mar. [Khaldun, 2015]

 

Ibn Khaldun é pragmático em aceitar a realidade como ela é, embora ele apresente um espírito imutável de normas educacionais que servem como orientação e modelo pedagógico, adaptável às diversas situações e com base nas diferenças entre os alunos, nos costumes locais e nas condições acidentais e adversas que possam surgir no ambiente acadêmico.

 

O bem mais precioso para o povo é o desenvolvimento do intelecto. Em diversas iterações, o autor magrebino alude ao aperfeiçoamento da intelecção nas suas dimensões racional e espiritual para alcançar uma “existência completa”, ou seja, para obter uma superioridade sobre as outras coisas mundanas. O intelecto é a faculdade que define e constitui a essência humana.

 

3 – Referências 

 

Renata Ary é doutora em educação, mestre em direitos difusos e coletivos e pós graduada em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo [PUC-SP].  É docente universitária em direito processual civil e direito civil da Universidade São Francisco [USF] - SP.

 

FROMHERTZ, Allen James. Ibn Khaldun Life and Times. Edinburgh University Press. 2010.

 

JALDUN. Ibn. Introducción a la historia universal (Al-Muqaddimah). Introducción y Libro primero de Kitab al-’ibar. Tradução: Juan Feres. México: Fondo de Cultura Económica. 2005.

 

LAWRENCE, Bruce B. Introduction: The muqaddimah: an introduction to history. Tradução de Franz Rosenthal. Princeton: Princeton Classics edition. 2015.

 

LOPES, Jahan. Circulação árabe do medievo: para uma geograficidade decolonial. Juiz de Fora: Revista de Geografia da UFJF. v. 11. n. 1. 2021.

 

SEMIOND. Tristan. Madrasas in history: beyond clichés. Fundación de Cultura Islâmica.

5 comentários:

  1. Prezada Renata Ary,

    desde já gostaria de deixar aqui meus cumprimentos pela comunicação. Ibn Khaldūn é um assunto que me apaixona, apesar de eu não ter nem leitura mínima sobre, mas estar de posse de várias fontes...

    Um aspecto de teu texto despertou em mim uma curiosidade técnica: você discorre sobre condutas pedagógicas do professor através, principalmente, dos quatro princípios básicos apontados por Ibn Khaldūn, certo? Nesse sentido, nosso filósofo tunisiano desenvolve teorias cognitivas no sentido psicológico a partir do estudante, aos moldes de um behaviorismo, Gestalt, Montessori, Piaget, Vygotsky ou Wallon, para além da conduta do instrutor em si?

    Desde já agradeço pela atenção.

    Atenciosamente,

    Matheus Landau de Carvalho.

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    1. Oi Matheus, obrigada pela pergunta. Acredito que a figura do instrutor e do estudante são, igualmente, fundamentais para o sucesso do sistema pedagógico proposto por Ibn Khaldun. Nas obras que pesquisei, não li e também não me aprofundei sobre eventuais comparações entre o modelo proposto por Ibn Khaldun e o behaviorismo, Gestalt, Montessori, Piaget, Vygotsky ou Wallon.

      RENATA ARY

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    2. Muito obrigado pela resposta e atenção, prezada Renata Ary ;)

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  2. Boa tarde, Renata Ary. É um prazer revê-la novamente no Simporiente. Gostei muito do seu texto e considero fundamental abordar essa dimensão de Ibn Khaldun. Como um polímata, ele refletiu criticamente sobre as formas de ensino e sua relação com as dinâmicas sociais e religiosas de seu tempo. Gostaria de fazer uma pergunta:

    Por que um intelectual tunisiano do século XIV dedicaria uma parte significativa de sua obra a reflexões sobre educação? Quais fatores contextuais poderiam ter motivado Ibn Khaldun a pensar e escrever sobre a transmissão do conhecimento? Nesse sentido, seria possível interpretar os esforços de Ibn Khaldun em simplificar e sistematizar o ensino nas madrasas como parte de uma estratégia para consolidar o modelo sunita em detrimento de outras doutrinas presentes no norte a África como o Xiismo e o Kharijsmo?

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    1. Oi Pietro, é um prazer revê-lo! Obrigada pela pergunta. Acredito que as experiências pessoais e o contexto social e político vivenciado pelo autor, como por exemplo pragas, guerras e quedas de dinastias, tenham colaborado para ele inserir um capítulo sobre a educação na obra. A título de exemplo, em diversas passagens Ibn Khaldun narra que a instrução científica é fundamental para garantir o prolongamento da vida dinástica. Nas obras que consultei, não li sobre qualquer relação entre estratégias político-religiosas com a muqaddimah.

      RENATA ARY

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