Nelson Rocha Neto

 A BALADA DE JOHN WARD, O PIRATA QUE VIROU TURCO (1552-1622)


 

No Ocidente, os piratas do Caribe sempre suscitaram um fascínio romantizado, vistos como figuras míticas, anarquistas ou até democratas, precursores de ideias marxistas ou capitalistas, defensores dos direitos das minorias e da igualdade racial. Em contraste, os piratas da Costa da Barbária do século XVII (Argel, Túnis, Trípoli, e região de Rabat e Salé, no Marrocos) e seus equivalentes africanos não receberam a mesma admiração. O Norte da África era composto por um intrincado mosaico de Estados e sociedades feudais, caracterizado por um elevado índice de pirataria. A região também testemunhava confrontos constantes entre os estados islâmicos pertencentes ao Império Otomano e os principados cristãos localizados no sul da Europa [The Tale of John Ward, 2024, 00:08:50]. Logo, o Ocidente os vê não como rebeldes contra a autoridade, mas como criminosos comuns, não como corajosos “Robin Hoods”, mas como ladrões covardes. Essa distinção reflete não apenas diferenças nas narrativas históricas, mas também preconceitos culturais profundamente enraizados no Ocidente, como o racismo e a islamofobia que dificultam a ideia de imaginar um Capitão Jack Sparrow muçulmano norte-africano, desafiando as marinhas imperialistas e conquistando espaço na cultura popular contemporânea [TINNISWOOD, 2010].

 

No entanto, dentre os exemplos de renegados que prosperaram na pirataria da Costa da Barbária, figuras como John Ward (1552-1622), refletem a complexidade e as contradições dessa prática no Mediterrâneo. No início do século XVII, o pescador da região de Kent, integrou-se a uma tripulação de corsários berberes, galgando posições até atingir o posto de capitão e conquistar o seu próprio espaço na cultura popular [LEHR, 2019]. As representações literárias da pirataria no período moderno frequentemente dramatizavam figuras como Ward, ampliando o impacto cultural de suas histórias. O livreiro Nathaniel Butter, editor da primeira edição de Rei Lear, de William Shakespeare, contratou o escritor Anthony Nixon para criar “Newes from Sea, of Two Notorious Pirates, Ward the Englishman and Danseker the Dutchman, with a True Relation of All or the Most Piracies by Them Committed until the 6th of April 1609”. Paralelamente, o nome de Ward esteve frequentemente associado ao do holandês Simon Danseker, outro notório pirata da Costa da Barbária. O panfleto vendeu mais do que Rei Lear, e logo foi reimpresso com o título alterado, “Ward and Danseker, Two Notorious Pirates. The Seaman’s Song of Captain Ward”, e no final de 1609 foi publicada a versão dos fatos na ótica do escritor de folhetos, Andrew Barker em “True and Certain Report” [TINNISWOOD, 2010]. A popularidade de Ward e Danseker foi tamanha que ambos foram representados na peça teatral “A Christian Turn’d Turk”, do dramaturgo Robert Daborne, em 1612, bem como na obra de Thomas Dekker, “If This Be Not a Good Play, the Devil is in It”, no mesmo ano [WILSON, 2001]. Estas são algumas produções que exploram abordagens ambíguas, alternando entre a condenação dos atos criminosos dos piratas, a admiração por sua audácia e o fascínio despertado por suas atrocidades nas terras dos berberes.

 

Em 1603, ao assumir o trono inglês, Jaime I implementou uma política voltada a restringir as atividades dos corsários e a combater a concessão de anistia aos piratas. Na Inglaterra do final do século XVI, um marinheiro experiente a serviço de um navio de guerra da Marinha Real recebia, após três meses de trabalho, cerca de uma libra e dez shillings, enquanto um corsário poderia acumular uma soma superior a quinze libras. Essas condições socioeconômicas, associadas à repressão oficial, ajudam a explicar por que figuras como Ward abraçaram a pirataria, buscando melhores oportunidades em um cenário de marginalização, não surpreendendo que a subclasse dos marinheiros veteranos formasse a maior parte dos recrutas entre corsários e piratas [LEHR, 2019]. Assim, o marinheiro constituía a figura mais desprezada e desvalorizada na economia dos governos europeus: mal remunerado, tratado com brutalidade, exposto às doenças e às intempéries, um escravizado dos proprietários das embarcações, de reis mesquinhos e dos príncipes gananciosos [WILSON, 2001]. Uma das declarações de Jaime I contra a pirataria, instruía que os oficiais navais ingleses, prefeitos e agentes de justiça empregassem todos os esforços para capturar Ward e seu bando. A mesma declaração ameaçava com pena de morte qualquer súdito que fornecesse armamentos a Ward e outros piratas [TINNISWOOD, 2010].

 

Por volta de 1610, com a negativa do indulto real devido à pressão diplomática dos venezianos que comerciavam num próspero centro conectado as cidades como Veneza, Gênova, Alepo e Izmir [BLAKEMORE, The Tale of John Ward, 2024, 00:09:25], John Ward converteu-se ao islamismo, ou “virou turco”, conforme o jargão jacobino da época. Além da busca por riqueza e status, a conversão de Ward ao islamismo revela um aspecto estratégico da pirataria na região: a adoção de identidades híbridas para navegar entre diferentes mundos culturais e políticos. Essa apostasia resultava na possibilidade de um renegado ascender socialmente e alcançar o cobiçado título de Reis, capitão corsário, sendo avaliado por um conselho e passando a integrar a elite turca [SENIOR, 1976, p. 94]. No Islã, a postura em relação à conversão pode ser descrita como mais receptiva. A religião islâmica preservava a imagem de si mesma como uma nova fé, com o objetivo de expandir-se de todas as formas viáveis, principalmente por meio de conversões [WILSON, 2001]. A cerimônia de adesão ao islamismo por um cristão ocorria na presença do sultão em Istambul, onde o escriba imperial registrava o evento, polvilhando pó de ouro sobre a tinta preta. Após recitar a shahada, o novo muçulmano recebia uma bolsa de moedas, um pedaço de musselina branca para confeccionar um turbante e uma capa que, no caso dos convertidos mais ilustres, podia ser forrada com zibelina e adornada de prata e ouro. As mulheres convertidas recebiam sandálias em vez de turbantes. Em seguida, os homens eram levados ao cirurgião imperial para a realização da circuncisão. Era comum, especialmente entre europeus, reafirmar a conversão ao islamismo adotando um nome islâmico. Ainda que desprovido de pó de ouro, zibelina e tecidos adornados, alguns elementos permaneceram inalterados na conversão de piratas: a declaração de fé; uma nova vida na comunidade islâmica; e a circuncisão. Ward adotou o nome Yusuf Reis, uma homenagem ao genro e sucessor de Uthman Dey ou Kara Osman, líder dos janízaros e governador de Túnis desde 1594 [TINNISWOOD, 2010].

 

Em um cenário marcado por rivalidades econômicas e políticas, alianças frequentemente transcenderam barreiras culturais e religiosas. Embora renunciar à religião e ao próprio país para se tornar um pirata no Mediterrâneo a serviço dos governantes dos Estados Barbáricos não fosse adequado, não era exatamente o que faziam que os tornava inaceitáveis, mas sim para quem o faziam, afinal, outrora Ward combateu muçulmanos, considerados inimigos declarados da cristandade e, muitas vezes, outros adversários da Inglaterra. Para esses “piratas renegados”, não havia qualquer indulgência, nem mesmo perdão, caso resolvessem voltar às suas terras natais, pois haviam abandonado suas raízes e sua fé [LEHR, 2019]. Os cristãos europeus usavam o termo “renegado” para referir-se aos apóstatas, traidores e desertores, visto que a Europa cristã ainda enfrentava o islamismo desde as Cruzadas. Granada, o último reino muçulmano na Espanha, foi incorporado à Reconquista apenas em 1492, e o último levante mourisco no país ocorreu em 1610. O Império Otomano direcionou sua ofensiva contra a Europa em duas frentes: por terra, em direção a Viena, e por mar, avançando ao oeste pelo Mediterrâneo [WILSON, 2001, p. 15-16]. Os navios empregados no Mediterrâneo eram embarcações velozes, como os xebecs, que possuíam velas triangulares e contavam com a força de remadores [ESRA, The Tale of John Ward, 2024, 00:11:43]. Como resultado, a pirataria berbere tornou-se uma grande preocupação para os interesses ingleses. Em 1609, a situação havia piorado, com corsários do norte da África atacando navios ingleses e invadindo comunidades no sul da Inglaterra para capturar reféns. Calculava-se que milhares de ingleses estavam aprisionados em Argel e Túnis, aguardando o resgate. A demanda por informações sobre os turco-otomanos capturados nas galés espanholas e nas Índias Ocidentais visava negociar vantagens por meio da troca de prisioneiros. A repatriação dos cativos ingleses e "sarracenos" proporcionava certos benefícios diplomáticos e econômicos para as partes envolvidas [BROTTON, 2016].

 

O governador, Uthman Dey, era o patrono de John Ward em Túnis, e ambos provavelmente agiam conforme um acordo no qual Dey tinha a exclusividade de selecionar as mercadorias que os piratas levavam para os depósitos de Túnis, com o objetivo de revendê-las ao mercado cristão, garantindo um lucro expressivo. Assim, os piratas dependiam das concessões oferecidas pelos governantes da Barbária [WILSON, 2001]. Além disso, os Estados barbarescos ofereciam mercados seguros para a circulação de produtos saqueados e portos para o reabastecimento e reparo de embarcações [FUCHS, 2000]. Após a condenação generalizada da pirataria pelos estados europeus, os estados berberes passaram a recrutar piratas que não estavam amparados pelas cartas de corso emitidas pelo governo inglês. Assim, muitos europeus de outras regiões uniram-se aos muçulmanos e "tornaram-se turcos", buscando quitar dívidas e sobreviver às rígidas normas. Considerados “de pouca serventia para a igreja cristã", esses indivíduos aproveitavam "os benefícios que essa aliança poderia trazer em locais como Argel, que rapidamente se tornava tão rica, próspera e desenvolvida quanto qualquer cidade da Europa" [BRADFORD, 2013, p. 107-108].

 

Essa flexibilidade cultural moldou as dinâmicas sociais e políticas em locais como Túnis, onde figuras como John Ward desafiaram as convenções da época: corsários oriundos de regiões como a Inglaterra, partidários do islamismo que saqueavam embarcações das nações de onde se originavam. Contudo, interpretar essas ações sob um embate maniqueísta seria um simplismo: havia também os interesses econômicos. No que tange às alianças políticas, frequentemente ultrapassavam as divisões religiosas. Essa postura flexível em relação à religião e à nacionalidade era perceptível nos principados muçulmanos da Costa barbaresca. Assim como renegados cristãos e judeus provenientes de várias regiões do Império Otomano, esses locais também recrutavam estrangeiros como capitães de suas embarcações, independentemente de sua conversão ao islamismo. Como a prática da pirataria na Costa da Barbária era frequentemente vista como uma espécie de versão marítima da jihad, que deveria ser conduzida pelos muçulmanos contra os cristãos, o fato de confiarem essa tarefa justamente a esses "infiéis" é intrigante [LEHR, 2019]. Outrossim, os “inimigos” variavam entre as diversas nações e ao longo do tempo. A partir da década de 1620, as vítimas dos corsários podiam ser removidas da lista de inimigos através de tratados firmados com os estados berberes, nos quais estes se comprometiam a interromper ataques ao comércio dos primeiros em troca do pagamento de tributos de proteção, frequentemente sob a forma de suprimentos e armamentos [THOMPSON, 1994, p. 44].

 

Havia uma admiração pelo pragmatismo dos piratas em contraste com o dogmatismo da época. Os contemporâneos ingleses de Ward referiam-se aos seus compatriotas renegados de forma pejorativa e intolerante, especialmente em relação às suas conversões ao islamismo. No entanto, a riqueza que esses piratas ingleses levavam para Túnis lhes permitia comportamentos que não seriam tolerados aos “turcos”. O viajante francês Laurent d'Arvieux notou que em Túnis “a religião não incomoda ninguém; reza-se quando se quer, jejua-se quando necessário e embriaga-se com vinho quando se tem dinheiro”. Em 1606, outro francês, Le Sieur de Breves, escreveu: “os lucros trazidos pelos ingleses, sua generosidade e os excessos com que gastam seu dinheiro antes de voltar à guerra os tornam estimados e apoiados pelos janízaros” [SENIOR, 1976, p. 95-96]. Na cidade de Túnis, a elite era dominada pelos janízaros turcos, que restringiam o acesso de árabes, berberes, mouros, judeus e negros às camadas superiores da sociedade. No entanto, os cristãos renegados enfrentavam poucas barreiras para se integrarem [SENIOR, 1976]. Embora muitas conversões ocorressem para evitar a morte ou o aprisionamento, soldados cristãos podiam ser incorporados aos exércitos. Além disso, os escravizados tinham a possibilidade de comprar sua liberdade e se unir aos corsários berberes. Judeus, tanto marranos quanto sefarditas, eram frequentemente aceitos para atuar no comércio, servindo como financistas ou conselheiros do Estado Berbere [WILSON, 2001].

 

Relatos variados nos dão diferentes visões sobre os modos de John Ward. Em 1608, um compatriota inglês que o visitou descreveu-o como um homem calvo, simplório e ignorante, de poucas palavras e que passava grande parte do tempo praguejando e embriagado [LEHR, 2019]. Por outro lado, temos o testemunho do escocês William Lithgow, que chegou a Túnis em 1615, e foi convidado por Ward para um banquete. Durante o encontro, conversou com o pirata, que estava cercado por sua comitiva de quinze renegados ingleses. Diferente do exemplo anterior, Ward mostrou-se cortês e afável: durante os dez dias em que Lithgow permaneceu em Túnis, ao saber que o visitante desejava seguir por terra até Argel, Ward providenciou-lhe um salvo-conduto [TINNISWOOD, 2010]. Embora Lithgow caracterizasse Ward como um destacado pirata e comandante experiente, a verdade é que, em 1615, Ward contava com cerca de setenta anos, e sua trajetória estava próxima do fim. Por volta de 1622, John Ward faleceu de peste em sua cama e foi sepultado no mar. Décadas depois, Ward foi mencionado em uma fonte tunisiana como Wardiyya, o corsário que se converteu ao islamismo e serviu aos governantes de Túnis [FUCHS, 2000].

 

Assim como as baladas refletiam as tensões sociais e culturais da Inglaterra, as narrativas sobre piratas como Ward moldavam e eram moldadas pelas visões europeias sobre o mundo islâmico, oferecendo aos ouvintes e leitores uma variedade de jornadas imaginárias: da terra ao mar, da Inglaterra à Turquia, da legalidade ao crime, da religião à heresia, da pobreza à riqueza e a uma sociedade estereotipada majoritariamente masculina. No início do período moderno, a sociedade inglesa era fortemente hierarquizada, e as baladas exaltavam os rebeldes, ainda que os condenasse. No entanto, para a mentalidade inglesa da época, "tornar-se turco" era uma traição considerada ainda mais grave do que o roubo ou assassinato. Entregar deliberadamente a alma ao inimigo representava algo mais assustador do que qualquer ato criminoso. A intensidade da indignação causada pela conversão de Ward pode ser sentida no poema de Samuel Rowlands, “To a Reprobate Pirate That Hath Renounced Christ and Is Turn’d Turk”, datado de 1612, onde Ward é retratado como pior que Judas, uma besta infernal, um ladrão amaldiçoado e um monstro devorador, acusado de servir tanto ao Turco quanto ao Diabo [TINNISWOOD, 2010].

 

Essa trajetória de ascensão e queda ecoa simbolismos encontrados em diversas tradições culturais e literárias, onde o mar figura como um espaço de transição entre mundos e destinos. Na balada, de autoria desconhecida, “The Seaman's Song of Captain Ward, the Famous Pirate of the World, and an Englishman Born”, Ward é representado como um homem destemido, que desafiava as potências marítimas, enfrentando desde as galés turcas na costa da Barbária até os navios venezianos que subjugava em violentos embates. Contudo, o pirata esbanjou sua fortuna em extravagâncias, entregando-se ao álcool e à libertinagem. O poema sugere que, apesar de ter acumulado uma vasta riqueza, a vida de pirataria era moralmente decadente e autodestrutiva. A opulência do palácio em Túnis, onde Ward se comporta como se fosse um príncipe, aparece como um presságio de sua ruína. A mensagem final da obra transmite a ideia de que a vida dedicada ao crime e à pirataria leva, inevitavelmente, à destruição e ao juízo divino, pois os piratas desdenham tanto de deus quanto do Diabo, recusando qualquer compromisso ou responsabilidade [ANONYMOUS, 1609].

 

Trecho original:

These Pyrates thus divided

By God is sure provided,

in secret sort to work each others woe,

Such wicked courses cannot stand,

The Divel thus puts in his hand,

and God will soon give them an overthrrw.

 

Tradução livre:

Estes piratas, assim divididos

Por Deus bem providos,

em segredo a obra do mal a cada um,

Tais caminhos ímpios não podem durar,

o Diabo neles põe a mão,

e Deus logo lhes dará a destruição.

 

Por fim, conforme as tradições das culturas orais dos povos germânicos e escandinavos, o Inferno era descrito como um lugar ermo, alcançado apenas após uma longa jornada marítima. Essa travessia encontra eco na obra literária A Divina Comédia, de Dante Alighieri. No poema, o acesso ao Inferno envolve uma passagem simbólica: as almas dos pecadores são conduzidas pelo barqueiro Caronte através do Rio Aqueronte, representando a transição definitiva rumo à condenação eterna. Enquanto as tradições orais apresentavam uma visão genérica, Dante detalha os castigos que aguardam as almas em cada círculo infernal, como a punição de Maomé entre os instigadores de discórdia [MINOIS, 2023]. Esses simbolismos de condenação e alteridade refletem-se na maneira como os europeus do século XVII concebiam figuras associadas ao mundo islâmico e ao contexto marítimo da Barbária. Para os europeus, tais indivíduos eram considerados criminosos e transgressores das normas, apesar de, sob uma ótica local, serem vistos como figuras comparáveis aos corsários ou mesmo oficiais navais a serviço de seus respectivos governantes [LEHR, 2019]. Esse choque de percepções tornava-se ainda mais intenso quando antigos piratas da Barbária passaram a se identificar como mujahideen, engajados em uma jihad marítima contra o avanço cristão, o que os fez serem retratados pela cristandade como figuras demoníacas. A falta de familiaridade com o islamismo entre os ingleses do século XVII contribuiu para uma percepção distorcida e hostil em relação aos muçulmanos e seus costumes. Na Inglaterra, onde não havia mesquitas e o alcorão só teve sua primeira tradução para o inglês em 1649, o termo "muçulmano" era praticamente desconhecido, sendo "turco" a expressão utilizada entre os anglófonos. Nesse contexto, o islamismo era visto como uma praga, uma ameaça moral, e qualquer afinidade com a cultura turca era considerada um ato de traição. Além disso, os mouros, identificados como "bárbaros", eram vistos como estrangeiros à civilização cristã, uma visão que não só os caracterizava como oriundos da Barbária, mas que também carregava uma conotação pejorativa, reforçando a visão de alteridade e de oposição cultural por estarem além das fronteiras da “civilização cristã” [TINNISWOOD, 2010].

 

REFERÊNCIAS

 

Nelson Rocha Neto é Mestre em História pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). E-mail: nelsonrochaneto@gmail.com.

 

Anonymous. The seamans song of captain Ward the famous pyrate of the world, and an english man born. Disponível em: https://www.100ballads.org/show/104. Acesso em: 18 set. 2024.

 

BRADFORD, Ernle Dusgate Selby. Barbarossa, o almirante do Sultão: pirata e construtor de um Império. São Paulo: Grua, 2013.

 

BROTTON, Jerry. The Sultan and the queen: the untold story of Elizabeth and Islam. New York: Viking, 2016.

 

FUCHS, Barbara. Faithless Empires: Pirates, Renegadoes, and the English Nation. ELH, V. 67, n. 1, 2000. p. 45-69.

 

LEHR, Peter. Pirates: A New History, from Vikings to Somali Raiders. New Haven: Yale University Press, 2019.

 

MINOIS, Georges. História do Inferno. São Paulo: UNESP, 2023.

 

SENIOR, Clive Malcolm. A nation of pirates: English piracy in its heyday. New York: David & Charles, 1976.

 

The Tale of John Ward. In: Pirates: Behind the Legends. Dir: Daniel Sharp. London: Dash Pictures (Holdings). Documentary, National Geographic, 2024. Streaming. 44 min.

 

THOMPSON, Janice E. Mercenaries, pirates and sovereigns: state-building and extraterritorial violence in early Modern Europe. Princeton: Princeton University Press, 1994.

 

TINNISWOOD, Adrian. Pirates of Barbary: corsairs, conquests, and captivity in the seventeenth-century Mediterranean. New York: Riverhead Books, 2010.

 

WILSON, Peter Lamborn. Utopias piratas: mouros, hereges e renegados. São Paulo: Conrad, 2001.

2 comentários:

  1. Arthur Feller Rigaud Cardoso5 de dezembro de 2024 às 18:11

    Olá, Nelson! Primeiramente, gostaria de parabenizá-lo pelo texto, o qual achei muito instigante e interessantíssimo, principalmente pelas afinidades com a minha pesquisa. Atualmente, tenho estudado a produção discursiva e literária sobre a presença portuguesa no Norte de África e, como você bem apresentou, a pirataria e sua representação literatura europeia é um tema muito rico e multifacetado. Apesar de Portugal não possuir uma produção literária sobre o tema mourisco e pirata tão vasto quanto a Espanha, Países Baixos ou Inglaterra, algumas aproximações se mostram evidentes, como a forma de representar os povos norte-africanos. Ser um berbere muçulmano seria ruim, mas um cristão convertido, "traidor", seria pior mas, como você apontou, há um certo entendimento que o europeu ex-cristão tornaria-se "contaminado" e "corrompido" pela religião e costumes desses povos. Sobre essa caracterização moral pejorativa dos piratas muçulmanos e, em especial, aos europeus cristãos convertidos ao islamismo (os "renegados"), você acha que seria possível dizer ser essa caracterização uma forma de "racismo" que tem como base a religião islâmica? Ou seria um fenômeno distinto sem relação direta?
    Atenciosamente, Arthur Feller Rigaud Cardoso

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    1. Saudações Arthur, obrigado pela pergunta e pelo interesse neste assunto.

      A resposta pode diferir conforme a perspectiva adotada. A descrição moral negativa dos piratas muçulmanos e, em particular, dos "renegados" (cristãos que abraçaram o islamismo) pode ser interpretada como um fenômeno que guarda semelhanças com o racismo, embora se baseie mais na religião do que nas concepções modernas de raça. O historiador Nabil Matar, em sua obra Islam in Britain, 1558-1685, argumenta que as representações dos muçulmanos e dos renegados na literatura e na política europeias dos séculos XVI e XVII estavam associadas ao temor do Islã como um sistema político, religioso e cultural que desafiava a supremacia cristã. Dessa forma, o preconceito assumia uma dimensão religiosa, mas também servia para demarcar diferenças culturais e étnicas, o que pode ser interpretado como um antecedente do racismo contemporâneo.

      O professor de literatura inglesa Daniel Vitkus, em: Turning Turk: English Theater and the Multicultural Mediterranean, destaca que a figura do renegado era alvo de estigmatização por simbolizar não apenas a conversão religiosa, mas também um rompimento com a identidade cristã europeia, sugerindo que os renegados eram percebidos como "traidores", abandonando os valores europeus e tornando-se "corrompidos" pelo contato com o Islã. Esse estigma alimentava um discurso de alteridade que mescla elementos religiosos, culturais e protorraciais. Ao considerar a definição contemporânea de racismo, que envolve a hierarquização de grupos com base em etnia ou cor da pele, pode-se argumentar que o preconceito contra muçulmanos e renegados era mais uma manifestação de etnocentrismo religioso do que racismo.

      Contudo, a professora de literatura inglesa Geraldine Heng, em The Invention of Race in the European Middle Ages, defende que formas de discriminação como o antissemitismo e a islamofobia podem ser vistas como variantes de racismo, pois criam hierarquias de exclusão que se assemelham às práticas raciais modernas. Em síntese, a representação dos piratas muçulmanos e dos renegados pode ser entendida como um fenômeno religioso-cultural com traços raciais. Trata-se de um discurso que entrelaça preconceitos religiosos e culturais, operando como uma ferramenta de construção de alteridade e exclusão social.

      Atenciosamente, Nelson Rocha Neto.

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