A BALADA DE JOHN WARD, O PIRATA QUE VIROU TURCO (1552-1622)
No
Ocidente, os piratas do Caribe sempre suscitaram um fascínio romantizado,
vistos como figuras míticas, anarquistas ou até democratas, precursores de
ideias marxistas ou capitalistas, defensores dos direitos das minorias e da
igualdade racial. Em contraste, os piratas da Costa da Barbária do século XVII
(Argel, Túnis, Trípoli, e região de Rabat e Salé, no Marrocos) e seus
equivalentes africanos não receberam a mesma admiração. O Norte da África era
composto por um intrincado mosaico de Estados e sociedades feudais,
caracterizado por um elevado índice de pirataria. A região também testemunhava
confrontos constantes entre os estados islâmicos pertencentes ao Império
Otomano e os principados cristãos localizados no sul da Europa [The Tale of John Ward, 2024, 00:08:50].
Logo, o Ocidente os vê não como rebeldes contra a autoridade, mas como
criminosos comuns, não como corajosos “Robin Hoods”, mas como ladrões covardes.
Essa distinção reflete não apenas diferenças nas narrativas históricas, mas
também preconceitos culturais profundamente enraizados no Ocidente, como o
racismo e a islamofobia que dificultam a ideia de imaginar um Capitão Jack
Sparrow muçulmano norte-africano, desafiando as marinhas imperialistas e
conquistando espaço na cultura popular contemporânea [TINNISWOOD, 2010].
No
entanto, dentre os exemplos de renegados que prosperaram na pirataria da Costa
da Barbária, figuras como John Ward (1552-1622), refletem a complexidade e as
contradições dessa prática no Mediterrâneo. No início do século XVII, o
pescador da região de Kent, integrou-se a uma tripulação de corsários berberes,
galgando posições até atingir o posto de capitão e conquistar o seu próprio
espaço na cultura popular [LEHR, 2019]. As representações literárias da
pirataria no período moderno frequentemente dramatizavam figuras como Ward,
ampliando o impacto cultural de suas histórias. O livreiro Nathaniel Butter,
editor da primeira edição de Rei Lear, de William Shakespeare, contratou o
escritor Anthony Nixon para criar “Newes from Sea, of Two Notorious Pirates,
Ward the Englishman and Danseker the Dutchman, with a True Relation of All or
the Most Piracies by Them Committed until the 6th of April 1609”. Paralelamente,
o nome de Ward esteve frequentemente associado ao do holandês Simon Danseker,
outro notório pirata da Costa da Barbária. O panfleto vendeu mais do que Rei
Lear, e logo foi reimpresso com o título alterado, “Ward and Danseker, Two
Notorious Pirates. The Seaman’s Song of Captain Ward”, e no final de
1609 foi publicada a versão dos fatos na ótica do escritor de folhetos, Andrew
Barker em “True and Certain Report” [TINNISWOOD, 2010]. A popularidade
de Ward e Danseker foi tamanha que ambos foram representados na peça teatral “A
Christian Turn’d Turk”, do dramaturgo Robert Daborne, em 1612, bem como na
obra de Thomas Dekker, “If This Be Not a Good Play, the Devil is in It”,
no mesmo ano [WILSON, 2001]. Estas são algumas produções que exploram abordagens
ambíguas, alternando entre a condenação dos atos criminosos dos piratas, a
admiração por sua audácia e o fascínio despertado por suas atrocidades nas
terras dos berberes.
Em
1603, ao assumir o trono inglês, Jaime I implementou uma política voltada a
restringir as atividades dos corsários e a combater a concessão de anistia aos
piratas. Na Inglaterra do final do século XVI, um marinheiro experiente a
serviço de um navio de guerra da Marinha Real recebia, após três meses de
trabalho, cerca de uma libra e dez shillings, enquanto um corsário
poderia acumular uma soma superior a quinze libras. Essas condições
socioeconômicas, associadas à repressão oficial, ajudam a explicar por que
figuras como Ward abraçaram a pirataria, buscando melhores oportunidades em um
cenário de marginalização, não surpreendendo que a subclasse dos marinheiros
veteranos formasse a maior parte dos recrutas entre corsários e piratas [LEHR,
2019]. Assim, o marinheiro constituía a figura mais desprezada e desvalorizada
na economia dos governos europeus: mal remunerado, tratado com brutalidade,
exposto às doenças e às intempéries, um escravizado dos proprietários das embarcações,
de reis mesquinhos e dos príncipes gananciosos [WILSON, 2001]. Uma das
declarações de Jaime I contra a pirataria, instruía que os oficiais navais
ingleses, prefeitos e agentes de justiça empregassem todos os esforços para
capturar Ward e seu bando. A mesma declaração ameaçava com pena de morte
qualquer súdito que fornecesse armamentos a Ward e outros piratas [TINNISWOOD,
2010].
Por
volta de 1610, com a negativa do indulto real devido à pressão diplomática dos
venezianos que comerciavam num próspero centro conectado as cidades como
Veneza, Gênova, Alepo e Izmir [BLAKEMORE, The Tale of John Ward, 2024,
00:09:25], John Ward converteu-se ao islamismo, ou “virou turco”, conforme o
jargão jacobino da época. Além da busca por riqueza e status, a conversão de
Ward ao islamismo revela um aspecto estratégico da pirataria na região: a
adoção de identidades híbridas para navegar entre diferentes mundos culturais e
políticos. Essa apostasia resultava na possibilidade de um renegado ascender
socialmente e alcançar o cobiçado título de Reis, capitão corsário,
sendo avaliado por um conselho e passando a integrar a elite turca [SENIOR,
1976, p. 94]. No Islã, a postura em relação à conversão pode ser descrita como
mais receptiva. A religião islâmica preservava a imagem de si mesma como uma
nova fé, com o objetivo de expandir-se de todas as formas viáveis,
principalmente por meio de conversões [WILSON, 2001]. A cerimônia de adesão ao
islamismo por um cristão ocorria na presença do sultão em Istambul, onde o
escriba imperial registrava o evento, polvilhando pó de ouro sobre a tinta
preta. Após recitar a shahada, o novo muçulmano recebia uma bolsa de
moedas, um pedaço de musselina branca para confeccionar um turbante e uma capa
que, no caso dos convertidos mais ilustres, podia ser forrada com zibelina e
adornada de prata e ouro. As mulheres convertidas recebiam sandálias em vez de
turbantes. Em seguida, os homens eram levados ao cirurgião imperial para a
realização da circuncisão. Era comum, especialmente entre europeus, reafirmar a
conversão ao islamismo adotando um nome islâmico. Ainda que desprovido de pó de
ouro, zibelina e tecidos adornados, alguns elementos permaneceram inalterados
na conversão de piratas: a declaração de fé; uma nova vida na comunidade
islâmica; e a circuncisão. Ward adotou o nome Yusuf Reis, uma homenagem ao
genro e sucessor de Uthman Dey ou Kara Osman, líder dos janízaros e governador
de Túnis desde 1594 [TINNISWOOD, 2010].
Em
um cenário marcado por rivalidades econômicas e políticas, alianças
frequentemente transcenderam barreiras culturais e religiosas. Embora renunciar
à religião e ao próprio país para se tornar um pirata no Mediterrâneo a serviço
dos governantes dos Estados Barbáricos não fosse adequado, não era exatamente o
que faziam que os tornava inaceitáveis, mas sim para quem o faziam, afinal, outrora
Ward combateu muçulmanos, considerados inimigos declarados da cristandade e,
muitas vezes, outros adversários da Inglaterra. Para esses “piratas renegados”,
não havia qualquer indulgência, nem mesmo perdão, caso resolvessem voltar às
suas terras natais, pois haviam abandonado suas raízes e sua fé [LEHR, 2019]. Os
cristãos europeus usavam o termo “renegado” para referir-se aos apóstatas,
traidores e desertores, visto que a Europa cristã ainda enfrentava o islamismo desde
as Cruzadas. Granada, o último reino muçulmano na Espanha, foi incorporado à
Reconquista apenas em 1492, e o último levante mourisco no país ocorreu em
1610. O Império Otomano direcionou sua ofensiva contra a Europa em duas
frentes: por terra, em direção a Viena, e por mar, avançando ao oeste pelo
Mediterrâneo [WILSON, 2001, p. 15-16]. Os navios empregados no Mediterrâneo
eram embarcações velozes, como os xebecs, que possuíam velas
triangulares e contavam com a força de remadores [ESRA, The Tale of John
Ward, 2024, 00:11:43]. Como resultado, a pirataria berbere tornou-se uma
grande preocupação para os interesses ingleses. Em 1609, a situação havia
piorado, com corsários do norte da África atacando navios ingleses e invadindo
comunidades no sul da Inglaterra para capturar reféns. Calculava-se que
milhares de ingleses estavam aprisionados em Argel e Túnis, aguardando o
resgate. A demanda por informações sobre os turco-otomanos capturados nas galés
espanholas e nas Índias Ocidentais visava negociar vantagens por meio da troca
de prisioneiros. A repatriação dos cativos ingleses e "sarracenos"
proporcionava certos benefícios diplomáticos e econômicos para as partes
envolvidas [BROTTON, 2016].
O
governador, Uthman Dey, era o patrono de John Ward em Túnis, e ambos
provavelmente agiam conforme um acordo no qual Dey tinha a exclusividade de
selecionar as mercadorias que os piratas levavam para os depósitos de Túnis,
com o objetivo de revendê-las ao mercado cristão, garantindo um lucro
expressivo. Assim, os piratas dependiam das concessões oferecidas pelos
governantes da Barbária [WILSON, 2001]. Além disso, os Estados barbarescos
ofereciam mercados seguros para a circulação de produtos saqueados e portos
para o reabastecimento e reparo de embarcações [FUCHS, 2000]. Após a condenação
generalizada da pirataria pelos estados europeus, os estados berberes passaram a
recrutar piratas que não estavam amparados pelas cartas de corso emitidas pelo
governo inglês. Assim, muitos europeus de outras regiões uniram-se aos
muçulmanos e "tornaram-se turcos", buscando quitar dívidas e
sobreviver às rígidas normas. Considerados “de pouca serventia para a igreja
cristã", esses indivíduos aproveitavam "os benefícios que essa
aliança poderia trazer em locais como Argel, que rapidamente se tornava tão
rica, próspera e desenvolvida quanto qualquer cidade da Europa" [BRADFORD,
2013, p. 107-108].
Essa
flexibilidade cultural moldou as dinâmicas sociais e políticas em locais como
Túnis, onde figuras como John Ward desafiaram as convenções da época: corsários
oriundos de regiões como a Inglaterra, partidários do islamismo que saqueavam
embarcações das nações de onde se originavam. Contudo, interpretar essas ações
sob um embate maniqueísta seria um simplismo: havia também os interesses
econômicos. No que tange às alianças políticas, frequentemente ultrapassavam as
divisões religiosas. Essa postura flexível em relação à religião e à
nacionalidade era perceptível nos principados muçulmanos da Costa barbaresca.
Assim como renegados cristãos e judeus provenientes de várias regiões do
Império Otomano, esses locais também recrutavam estrangeiros como capitães de
suas embarcações, independentemente de sua conversão ao islamismo. Como a
prática da pirataria na Costa da Barbária era frequentemente vista como uma
espécie de versão marítima da jihad, que deveria ser conduzida pelos
muçulmanos contra os cristãos, o fato de confiarem essa tarefa justamente a
esses "infiéis" é intrigante [LEHR, 2019]. Outrossim, os “inimigos”
variavam entre as diversas nações e ao longo do tempo. A partir da década de
1620, as vítimas dos corsários podiam ser removidas da lista de inimigos
através de tratados firmados com os estados berberes, nos quais estes se
comprometiam a interromper ataques ao comércio dos primeiros em troca do
pagamento de tributos de proteção, frequentemente sob a forma de suprimentos e
armamentos [THOMPSON, 1994, p. 44].
Havia
uma admiração pelo pragmatismo dos piratas em contraste com o dogmatismo da
época. Os contemporâneos ingleses de Ward referiam-se aos seus compatriotas
renegados de forma pejorativa e intolerante, especialmente em relação às suas
conversões ao islamismo. No entanto, a riqueza que esses piratas ingleses
levavam para Túnis lhes permitia comportamentos que não seriam tolerados aos “turcos”.
O viajante francês Laurent d'Arvieux notou que em Túnis “a religião não
incomoda ninguém; reza-se quando se quer, jejua-se quando necessário e
embriaga-se com vinho quando se tem dinheiro”. Em 1606, outro francês, Le Sieur
de Breves, escreveu: “os lucros trazidos pelos ingleses, sua generosidade e os
excessos com que gastam seu dinheiro antes de voltar à guerra os tornam
estimados e apoiados pelos janízaros” [SENIOR, 1976, p. 95-96]. Na cidade de
Túnis, a elite era dominada pelos janízaros turcos, que restringiam o acesso de
árabes, berberes, mouros, judeus e negros às camadas superiores da sociedade.
No entanto, os cristãos renegados enfrentavam poucas barreiras para se
integrarem [SENIOR, 1976]. Embora muitas conversões ocorressem para evitar a
morte ou o aprisionamento, soldados cristãos podiam ser incorporados aos
exércitos. Além disso, os escravizados tinham a possibilidade de comprar sua
liberdade e se unir aos corsários berberes. Judeus, tanto marranos quanto
sefarditas, eram frequentemente aceitos para atuar no comércio, servindo como
financistas ou conselheiros do Estado Berbere [WILSON, 2001].
Relatos
variados nos dão diferentes visões sobre os modos de John Ward. Em 1608, um
compatriota inglês que o visitou descreveu-o como um homem calvo, simplório e ignorante,
de poucas palavras e que passava grande parte do tempo praguejando e embriagado
[LEHR, 2019]. Por outro lado, temos o testemunho do escocês William Lithgow,
que chegou a Túnis em 1615, e foi convidado por Ward para um banquete. Durante
o encontro, conversou com o pirata, que estava cercado por sua comitiva de
quinze renegados ingleses. Diferente do exemplo anterior, Ward mostrou-se
cortês e afável: durante os dez dias em que Lithgow permaneceu em Túnis, ao
saber que o visitante desejava seguir por terra até Argel, Ward providenciou-lhe
um salvo-conduto [TINNISWOOD, 2010]. Embora Lithgow caracterizasse Ward como um
destacado pirata e comandante experiente, a verdade é que, em 1615, Ward
contava com cerca de setenta anos, e sua trajetória estava próxima do fim. Por
volta de 1622, John Ward faleceu de peste em sua cama e foi sepultado no mar. Décadas
depois, Ward foi mencionado em uma fonte tunisiana como Wardiyya, o corsário que
se converteu ao islamismo e serviu aos governantes de Túnis [FUCHS, 2000].
Assim
como as baladas refletiam as tensões sociais e culturais da Inglaterra, as
narrativas sobre piratas como Ward moldavam e eram moldadas pelas visões
europeias sobre o mundo islâmico, oferecendo aos ouvintes e leitores uma
variedade de jornadas imaginárias: da terra ao mar, da Inglaterra à Turquia, da
legalidade ao crime, da religião à heresia, da pobreza à riqueza e a uma
sociedade estereotipada majoritariamente masculina. No início do período
moderno, a sociedade inglesa era fortemente hierarquizada, e as baladas
exaltavam os rebeldes, ainda que os condenasse. No entanto, para a mentalidade
inglesa da época, "tornar-se turco" era uma traição considerada ainda
mais grave do que o roubo ou assassinato. Entregar deliberadamente a alma ao
inimigo representava algo mais assustador do que qualquer ato criminoso. A
intensidade da indignação causada pela conversão de Ward pode ser sentida no
poema de Samuel Rowlands, “To a Reprobate Pirate That Hath Renounced Christ
and Is Turn’d Turk”, datado de 1612, onde Ward é retratado como pior que
Judas, uma besta infernal, um ladrão amaldiçoado e um monstro devorador,
acusado de servir tanto ao Turco quanto ao Diabo [TINNISWOOD, 2010].
Essa
trajetória de ascensão e queda ecoa simbolismos encontrados em diversas tradições
culturais e literárias, onde o mar figura como um espaço de transição entre
mundos e destinos. Na balada, de autoria desconhecida, “The Seaman's Song of
Captain Ward, the Famous Pirate of the World, and an Englishman Born”, Ward
é representado como um homem destemido, que desafiava as potências marítimas,
enfrentando desde as galés turcas na costa da Barbária até os navios venezianos
que subjugava em violentos embates. Contudo, o pirata esbanjou sua fortuna em
extravagâncias, entregando-se ao álcool e à libertinagem. O poema sugere que, apesar de ter acumulado uma vasta riqueza, a
vida de pirataria era moralmente decadente e autodestrutiva. A opulência do palácio em Túnis, onde Ward se comporta como se
fosse um príncipe, aparece como um presságio de sua ruína. A mensagem final da
obra transmite a ideia de que a vida dedicada ao crime e à pirataria leva,
inevitavelmente, à destruição e ao juízo divino, pois os piratas desdenham
tanto de deus quanto do Diabo, recusando qualquer compromisso ou responsabilidade
[ANONYMOUS,
1609].
Trecho
original:
These
Pyrates thus divided
By
God is sure provided,
in
secret sort to work each others woe,
Such
wicked courses cannot stand,
The
Divel thus puts in his hand,
and
God will soon give them an overthrrw.
Tradução
livre:
Estes
piratas, assim divididos
Por
Deus bem providos,
em
segredo a obra do mal a cada um,
Tais
caminhos ímpios não podem durar,
o
Diabo neles põe a mão,
e
Deus logo lhes dará a destruição.
Por
fim, conforme as tradições das culturas orais dos povos germânicos e
escandinavos, o Inferno era descrito como um lugar ermo, alcançado apenas após
uma longa jornada marítima. Essa travessia encontra eco na obra literária A
Divina Comédia, de Dante Alighieri. No poema, o acesso ao Inferno envolve
uma passagem simbólica: as almas dos pecadores são conduzidas pelo barqueiro
Caronte através do Rio Aqueronte, representando a transição definitiva rumo à
condenação eterna. Enquanto as tradições orais apresentavam uma visão genérica,
Dante detalha os castigos que aguardam as almas em cada círculo infernal, como
a punição de Maomé entre os instigadores de discórdia [MINOIS, 2023]. Esses
simbolismos de condenação e alteridade refletem-se na maneira como os europeus
do século XVII concebiam figuras associadas ao mundo islâmico e ao contexto
marítimo da Barbária. Para os europeus, tais indivíduos eram considerados
criminosos e transgressores das normas, apesar de, sob uma ótica local, serem
vistos como figuras comparáveis aos corsários ou mesmo oficiais navais a
serviço de seus respectivos governantes [LEHR, 2019]. Esse choque de percepções
tornava-se ainda mais intenso quando antigos piratas da Barbária passaram a se
identificar como mujahideen, engajados em uma jihad marítima
contra o avanço cristão, o que os fez serem retratados pela cristandade como
figuras demoníacas. A falta de familiaridade com o islamismo entre os ingleses
do século XVII contribuiu para uma percepção distorcida e hostil em relação aos
muçulmanos e seus costumes. Na Inglaterra, onde não havia mesquitas e o alcorão
só teve sua primeira tradução para o inglês em 1649, o termo
"muçulmano" era praticamente desconhecido, sendo "turco" a
expressão utilizada entre os anglófonos. Nesse contexto, o islamismo era visto
como uma praga, uma ameaça moral, e qualquer afinidade com a cultura turca era
considerada um ato de traição. Além disso, os mouros, identificados como
"bárbaros", eram vistos como estrangeiros à civilização cristã, uma
visão que não só os caracterizava como oriundos da Barbária, mas que também
carregava uma conotação pejorativa, reforçando a visão de alteridade e de
oposição cultural por estarem além das fronteiras da “civilização cristã”
[TINNISWOOD, 2010].
REFERÊNCIAS
Nelson
Rocha Neto é Mestre em História pela Universidade Federal da Integração
Latino-Americana (UNILA). E-mail: nelsonrochaneto@gmail.com.
Anonymous. The seamans song of captain Ward the
famous pyrate of the world, and an english man born. Disponível em:
https://www.100ballads.org/show/104. Acesso em: 18 set. 2024.
BRADFORD,
Ernle Dusgate Selby. Barbarossa, o almirante do Sultão: pirata e
construtor de um Império. São Paulo: Grua, 2013.
BROTTON,
Jerry. The Sultan and the queen: the untold story of Elizabeth and
Islam. New York: Viking, 2016.
FUCHS,
Barbara. Faithless Empires: Pirates, Renegadoes, and the English Nation.
ELH, V. 67, n. 1, 2000. p. 45-69.
LEHR,
Peter. Pirates: A New History, from Vikings to Somali Raiders. New
Haven: Yale University Press, 2019.
MINOIS,
Georges. História do Inferno. São Paulo: UNESP, 2023.
SENIOR,
Clive Malcolm. A nation of pirates: English piracy in its heyday. New
York: David & Charles, 1976.
The Tale of John Ward. In:
Pirates: Behind the Legends. Dir: Daniel Sharp. London: Dash
Pictures (Holdings). Documentary, National Geographic, 2024. Streaming. 44 min.
THOMPSON,
Janice E. Mercenaries, pirates and sovereigns: state-building and
extraterritorial violence in early Modern Europe. Princeton: Princeton
University Press, 1994.
TINNISWOOD,
Adrian. Pirates of Barbary: corsairs, conquests, and captivity in the
seventeenth-century Mediterranean. New York: Riverhead Books, 2010.
WILSON, Peter Lamborn. Utopias piratas: mouros, hereges e renegados. São Paulo: Conrad, 2001.
Olá, Nelson! Primeiramente, gostaria de parabenizá-lo pelo texto, o qual achei muito instigante e interessantíssimo, principalmente pelas afinidades com a minha pesquisa. Atualmente, tenho estudado a produção discursiva e literária sobre a presença portuguesa no Norte de África e, como você bem apresentou, a pirataria e sua representação literatura europeia é um tema muito rico e multifacetado. Apesar de Portugal não possuir uma produção literária sobre o tema mourisco e pirata tão vasto quanto a Espanha, Países Baixos ou Inglaterra, algumas aproximações se mostram evidentes, como a forma de representar os povos norte-africanos. Ser um berbere muçulmano seria ruim, mas um cristão convertido, "traidor", seria pior mas, como você apontou, há um certo entendimento que o europeu ex-cristão tornaria-se "contaminado" e "corrompido" pela religião e costumes desses povos. Sobre essa caracterização moral pejorativa dos piratas muçulmanos e, em especial, aos europeus cristãos convertidos ao islamismo (os "renegados"), você acha que seria possível dizer ser essa caracterização uma forma de "racismo" que tem como base a religião islâmica? Ou seria um fenômeno distinto sem relação direta?
ResponderExcluirAtenciosamente, Arthur Feller Rigaud Cardoso
Saudações Arthur, obrigado pela pergunta e pelo interesse neste assunto.
ExcluirA resposta pode diferir conforme a perspectiva adotada. A descrição moral negativa dos piratas muçulmanos e, em particular, dos "renegados" (cristãos que abraçaram o islamismo) pode ser interpretada como um fenômeno que guarda semelhanças com o racismo, embora se baseie mais na religião do que nas concepções modernas de raça. O historiador Nabil Matar, em sua obra Islam in Britain, 1558-1685, argumenta que as representações dos muçulmanos e dos renegados na literatura e na política europeias dos séculos XVI e XVII estavam associadas ao temor do Islã como um sistema político, religioso e cultural que desafiava a supremacia cristã. Dessa forma, o preconceito assumia uma dimensão religiosa, mas também servia para demarcar diferenças culturais e étnicas, o que pode ser interpretado como um antecedente do racismo contemporâneo.
O professor de literatura inglesa Daniel Vitkus, em: Turning Turk: English Theater and the Multicultural Mediterranean, destaca que a figura do renegado era alvo de estigmatização por simbolizar não apenas a conversão religiosa, mas também um rompimento com a identidade cristã europeia, sugerindo que os renegados eram percebidos como "traidores", abandonando os valores europeus e tornando-se "corrompidos" pelo contato com o Islã. Esse estigma alimentava um discurso de alteridade que mescla elementos religiosos, culturais e protorraciais. Ao considerar a definição contemporânea de racismo, que envolve a hierarquização de grupos com base em etnia ou cor da pele, pode-se argumentar que o preconceito contra muçulmanos e renegados era mais uma manifestação de etnocentrismo religioso do que racismo.
Contudo, a professora de literatura inglesa Geraldine Heng, em The Invention of Race in the European Middle Ages, defende que formas de discriminação como o antissemitismo e a islamofobia podem ser vistas como variantes de racismo, pois criam hierarquias de exclusão que se assemelham às práticas raciais modernas. Em síntese, a representação dos piratas muçulmanos e dos renegados pode ser entendida como um fenômeno religioso-cultural com traços raciais. Trata-se de um discurso que entrelaça preconceitos religiosos e culturais, operando como uma ferramenta de construção de alteridade e exclusão social.
Atenciosamente, Nelson Rocha Neto.