É HORA DE BRINCAR: AS BONECAS DOS INFANTES EGÍPCIOS DO MUNDO ANTIGO
A
presença de bonecas como componente do mundo infantil se fez presente em
diversas sociedades na antiguidade, sendo encontradas em territórios tanto da
Mesopotâmia e Egito, quanto da Grécia e Roma. Todavia, apesar de sua
longevidade existencial, somente numa temporalidade mais recente é que passaram
a ser olhadas com mais atenção tornando-se objetos de estudos de diferentes
áreas de conhecimento, dentre as quais a História se encaixa. O que pode ser
apresentado como justificativa da exclusão pelos historiadores anteriores as
primeiras décadas do século XX, é que eles centraram suas análises em assuntos
militares, políticos e a importantes eventos, deixando de lado ou passando
tangencialmente ao que se referia a esfera infantil.
Philippe
Ariès (1978) foi um dos autores que proporcionou visibilidade ao mundo infantil
a partir do momento que desenvolveu pesquisas nesse campo, abrindo espaço para
que outros estudiosos também percebessem sua potencialidade, favorecendo para que um leque de proposições
começasse a ser desbravado, submergindo um recorte social que embora estivesse
presente no seio das sociedades, estava ausente e a margem da História, pois
pouco sobre ele era observado e estudado.
Foi
dentro do contexto de ampliação de horizontes relacionado aos infantes que a
história dos brinquedos se inseriu, tornando-se objeto de análise. Assim, com
base nesse novo contexto analítico é que esse trabalho foi estruturado, o qual
se propõe a evidenciar elementos pertencentes a uma tipologia específica de
brinquedos que fez parte da infância das crianças egípcias na antiguidade, as
bonecas.
Para
atingir esse objetivo, buscou-se informações nas representações iconográficas e
textuais deixadas pelos próprios egípcios, bem como de exemplares extraídos das
escavações arqueológicas que revelaram uma rica cultura infantil.
No
que tange as peças oriundas dos sítios arqueológicos explorados entre o final
do século XIX e o início do XX, Aroa Velasco Pirez faz uma ressalva, afirmando
que embora por si só os artefatos estivessem imbuídos de informações, houve
falha por parte de alguns exploradores em registrar identificações mais
detalhadas e abrangentes sobre o contexto da descoberta, fato que poderia
ampliar possibilidades de análises. Entretanto, tal atitude não inviabilizou
seu estudo, mas permitiria que informações não ficassem perdidas,
proporcionando que uma classificação mais ampla e afunilada pudesse ser
realizada (2022, p. 142 ).
São
originárias do âmbito doméstico a grande maioria dos objetos de brincar dos
pequenos egípcios revelado pelas escavações, visto que esse era o local onde as
crianças passavam maior parte do seu tempo. Também os encontraram em espaços
funerários no interior das tumbas infantis, e a exemplo disso, temos as peças
extraídas da tumba do faraó Tutankamon, que morreu aos dezenove anos de idade,
descoberta em 1922, e, de certa forma, não muito distante do período da sua
infância. De excelente qualidade, os brinquedos tinham sua feitura de osso e
marfim, matéria-prima mais resistente a ser modelada exigindo elaboração mais
sofisticada e cuidadosa.
De
acordo com Pirez, 3712 tumbas de restos humanos infantis foram documentados,
sendo que foram poucas as bonecas nelas encontradas em boa qualidade de
conservação. A respeito das tumbas dos infantes, o autor menciona que,
“ As razões desta prática sendo a mais evidente a fragilidade e a
vulnerabilidade dos restos infantis ao passar do tempo; outro motivo pode ser o
escasso interesse que se dava a esse tipo de enterramento em momentos iniciais
da investigação egiptológica. Outra razão que poderia justificar a exígua
constatação de enterramentos infantis na arqueologia do antigo Egito pode
residir na retirada da sucessão dos falecimentos infantis (2022, p.135)”
Proporcionalmente,
a grande maioria dos artefatos para brincar, tanto os completos quanto os
fragmentários, foram produzidos entre o médio e o novo império egípcio,
principalmente de assentamentos das localidades de Lahun, Amarna e Deir
el-Medina. Referente ao período pré-dinático e o reino antigo temos poucas
peças de diversa morfologia consideradas como brinquedos. Entretanto, de fases
mais tardias como greco-romana e copta, a proporção pode ser classificada como
mais elevada e significativa quando comparada com as anteriores.
Foi
pelas mãos do inglês Flinders Petrie, segundo Pirez, que temos uma listagem
mais completa dos brinquedos egípcios, pois em 1927, o arqueólogo promoveu uma
classificação dos itens que encontrou nas escavações que realizou em
assentamentos egípcio de Hawara (1889), Lahun (1890), Gurob (1890), Diospolis
Parva (1901) e o Gerzah (1912). Nela, acompanhado de imagens que ilustram as
descrições, elencou objetos produzidos em barro como bolas, bonecas e pequenos
exemplares de animais. De acordo com o autor, algumas peças estão
descontextualizadas, outras, com interrogações, que colocam em manifesto suas
dúvidas diante da procedência.
Petrie
também dedicou um capítulo de seu trabalho às bonecas, nominadas pelo autor
como ‘paddle-doll’, classificando-as de acordo com o material de fabricação.
Datadas do médio império, foram produzidas em madeira no formato de paletas e
fios de cabelo elaborados com pequenas contas de argila (ver imagem 1-A).
Detalhou sobre as de pedra caliza, mais especificamente da XII dinastia, e
também as de cerâmica, de fibras têxteis e de vegetais. Incluiu na listagem
outras feitas de trapo (ou tecidos) não especificando a cronologia, somente
apontando que são anteriores ao período romano.
A
especificidade das Bonecas
Sabe-se
que a história da boneca está estritamente ligada à história dos homens. Como
réplica de si mesmo, o homem a elevou à símbolo cultural, em suas múltiplas
experiências fazendo deste objeto, de oferenda religiosa a objeto de culto, a
figura de magia ou ídolo, amuleto ou talismã, lembrança mortuária ou chegando
ao uso infantil como brinquedo, dessa forma pode-se dizer que a história das
bonecas tem um início marcado por diferentes interpretações, conforme a cultura
da sociedade ( GIACOMELLI, 1999, p.1).
No caso egípcio, se houve algo marcante na
infância dos pequenos que se refere aos brinquedos elas estiveram presente. Os
registros apontam que brincar com bonecas não era uma prevalência das meninas, e
que os meninos também tinham o costume de brincar com elas.
Apesar
de terem sido confeccionadas a partir de diferentes matérias-primas, tais como
barro, argila, madeira, ossos, marfim, fibras têxteis e de vegetais, tiveram a
prevalência do estereótipo do corpo feminino, como se fossem miniaturas de adultos e em nada assemelhavam-se com rostos
infantis, tendo em muitos exemplares o sexo marcado e definido. Com a face bem
recortada e delineada, foram traçadas com olhos grandes e boca marcada por
lábios volumosos salientado sua feitura. Em muitos exemplares o cabelo era
fixado separado da cabeça, sendo montado com material diferente do que o do
restante do corpo, feitas com tiras de tecido, contas de pedras ou fibras de
vegetais.
No
que tange a produção das bonecas talhadas na madeira, elas foram produzidas a
partir de dois formatos: a primeira; recortada numa prancha única de fina
espessura ( mais ou menos 2,00 cm) em forma de paletas, sem que apresentassem
volume corporal mas formando a figura
natural humana dividida em cabeça, tronco e membros.
A
posição dos braços pode ser apresentada como elemento diferenciador nesse
suporte, pois em algumas peças estavam apenas delineados sobre a prancha
evidenciando sua existência, mas sem a visível separação do tronco, como se
estivesse colado ao corpo. Outro detalhe que pode ser observado nesse modelo, é
que sob algumas unidades era realizado desenhos em formas geométricas em
algumas partes da paleta que eram pintados em cores fortes criando um estilo
específico de bonecas egípcias (ver imagem 1-A). Numa segunda variação da posição dos braços
eles estavam recortados como se estivessem um pouco abertos, distanciando-se do
corpo numa pequena angulação (ver imagem 1-C).
Quanto
ao segundo estilo de fabricação de exemplares em madeira consistia em produzir
as partes que comporiam a boneca separadamente (o corpo, os braços e as
pernas), para depois encaixá-los formando a peça, são as chamadas de bonecas
com extremidades articuladas. Nesse padrão, as partes possuíam formato
mais roliço e volumoso, projetadas para proporcionar movimento aos membros
tanto inferiores quanto superiores, dando-lhes mobilidade. Em alguns exemplares
era amarrado na cabeça através de um orifício uma espécie de barbante para que
se pudesse movê-la para frente, traz e lados. Nesse caso o rosto ficava liso,
sem evidenciar a presença de olhos, nariz e boca qualquer definição de suas
partes (ver imagem 1-B).
Imagem
1 –
Bonecas de Madeira
A |
B
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C |
Fonte: PIREZ, Aroa Velasco.
Las muñecas-juguetes y el juego simbólico infantil em el antiguo Egipto. Tese de doutorado. Madri
2022.
Segundo
Pirez, o primeiro exemplar de uma boneca de feitio articulado foi encontrado na
tumba de uma menina chamada Sitrennu, em Hawara, pertencente a XII dinastia, e
atualmente está no Petrie Museum. Medindo 18,7 cm de altura e com braços
articulados, estava pintada de amarelo e possuia uma peruca de contas de barro,
juntamente com ela uma pequena cama de madeira, dessa forma, levando a
acreditar que a cama havia sido produzida para a própria boneca. Esse modelo de
boneca pode ser considerado como bastante simples e corrente dentro da
sociedade egípcia, sendo que outros exemplares dessa mesma linha, foram
produzidas no mundo greco-romano (2022, p.242).
Outra
matéria-prima que serviu de suporte para a feitura de bonecas no antigo Egito
foi o barro. Os estudos indicam que esse foi o primeiro material manuseado para
dar forma a esse tipo de brinquedo dos infantes egípcios. De acordo com Pirez,
“
A maioria das peças consideradas joguetes que apareceram em contextos
domésticos foram feitas de barro cru ou argila, seguramente, devido ao fácil
acesso ao entorno do Nilo a esta matéria prima. Graças as características deste
material, as peças foram encontradas, em geral, em relativo bom estado de
conservação e são numerosas. A argila empregada em sua fabricação, é do tipo
aluvial que o lodo do Nilo proporcionava. O barro derivado dos aluviões do rio
era abundante nas zonas que eram afetadas pelas cheias anuais, mas não por ele
ser desprezado, pois constituía um bem fundamental na vida diária. A
maleabilidade do próprio material e seu fácil acesso, faziam do barro e da
argila derivada do mesmo, materiais idôneos para múltiplos usos da vida
cotidiana e terrena, realizando produtos funcionais e de uso corrente como
recipientes cerâmicos, mas também figurinhas destinadas a fins religiosos e
lúdicos” (2020, p. 249).
Também
encontramos as bonecas confeccionadas com Fibras têxteis e vegetais,
sendo datadas de períodos tardios quando inseridas na cronologia egípcia. Dada
a simplicidade de elaboração que as peças encontradas revelam, acredita-se que
foram produzidas pelas próprias crianças. Cada uma das partes era montada
separadamente, para, depois, serem unidas através de um processo de costura com
fios gerando o brinquedo. De acordo com Pirez,
“Para montar a peça se enrolava o material
têxtil ou se fazia a partir de uma pequena bola modelando-a a forma corpórea
desejada partindo do tronco para as extremidades. Outras vezes, uma tela fina
envolve um amassado de tecidos ou de fibra vegetal para fazer o corpo da
boneca, e para segurar e compactar esse material passava-se fios ou barbantes
para dar mais consistência e flexibilidade as peças” (2020, p.248).
Imagem 2 – Bonecas Texteis e Vegetais
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Fonte: PIREZ, Aroa Velasco.
Las muñecas-juguetes y el juego simbólico infantil em el
antiguo
Egipto.
Tese de doutorado. Madri 2022.
De
acordo com Pirez, as bonecas produzidas com pedaços de pano tiveram boa
conservação, sendo o primeiro exemplar encontrado em Oxirrinco em 1905,
confeccionada em linho e com enchimento de trapos e papiro medindo 18,5 cm de
altura, porém, uma característica um tanto curiosa dessa peça é que ela possui
uma pequena conta de vidro azul ao lado direito da cabeça, o que sugere um
adorno para cabelo. Um segundo exemplar, que atualmente está no Petrie Museum,
foi encontrada em Hawara, em 1888, numa tumba infantil da época de Constantino
(século IV), e juntamente com ela estava com pequenas imitações de objetos de
uso pessoal.
Aquelas
que tiveram a pedra como suporte, eram talhadas a partir de um pequeno bloco
monolítico sendo esculpida para atingir o formato desejado, proporcionando
formatos faciais anatômicos definidos como orelhas, olhos, nariz e boca, bem
como outras partes do corpo. Por ser um material mais resistente e que
necessitaria de ferramentas mais sofisticadas para moldá-las, consequentemente,
deveriam ser produzidas por adultos haja vista a prevalência da maior
complexidade em sua construção.
Referências
Biográficas e Bibliográficas
Doutora
Maura Regina Petruski, professora da Universidade Estadual de Ponta Grossa
(UEPG). Integrante do corpo docente da Pós-Graduação do Mestrado e Doutorado
Profissional de Ensino de História (Profhist)da Universidade Estadual de Ponta
Grossa (UEPG).
ARIÈS,
Philippe. História Social da Infância e da Família. Tradução: D.
Flaksman. Rio de Janeiro: LCT, 1978.
GIACOMELLI, Ivan Luiz.
Acervo do Museu do Brinquedo da Ilha de Santa Catarina. 1999.
PIREZ,
Aroa Velasco. Las muñecas-juguetes y el juego simbólico infantil em el
antiguo Egipto. Tese de doutorado. Madri 2022.
Olá, parabéns pelo texto! Interessante pensar que em latim, o termo que designa "boneca" é "puppa" que, ao lado de "puella", pode ser traduzido, por vezes, como menina. Você saberia dizer se entre os sistemas de escrita dos Egípcios do mundo antigo havia alguma relação entre as palavras menina e boneca?
ResponderExcluirRENATA ARY
Olá Renata, boa tarde! Muito obrigada por ler meu texto. Nas leituras que realizei não aparece essa relação, visto que as bonecas eram utilizadas como brinquedo tanto por meninas quanto meninos, sem distinção de sexo.
ExcluirMuito obrigada pela resposta!
ExcluirProfessora Maura,
ResponderExcluirEssas bonecas eram compartilhadas e sentidas dentro do Egito antigo no mesmo (ou similar) perfil de consumo da sociedade atual em relação ao lúdico?
José Raimundo Neto
Olá, boa tarde José Raimundo! Muito obrigada por ler meu texto. Não é possível fazer essa relação sobre consumo, principalmente porque acredita-se que eram as próprias crianças que faziam suas bonecas, dessa forma, não estão ligadas ao aspecto comercial.
ExcluirSeu trabalho apresenta informações extremamente relevantes. A análise das bonecas como símbolo cultural é um aspecto intrigante. Existe alguma comparação significativa entre as bonecas egípcias e as de outras culturas contemporâneas da antiguidade que tenha chamado sua atenção?
ResponderExcluirMaria Vanusa Sousa Melo
Olá Maria Vanusa, boa tarde! Obrigada por ler meu texto. Podemos fazer relação com a boneca Barbie na contemporaneidade, inclusive tivemos alguns exemplares que foram confeccionadas com características egípcias remetendo principalmente a Cleópatra e a outras mulheres egípcias. Você poderá encontrar esses modelos dentro do contexto da Egiptomania.
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