BREVES APONTAMENTOS SOBRE A HISTÓRIA E A SOCIOLOGIA DO FUNDAMENTALISMO HINDU
Uma das questões político-culturais de alcance mundial no século XXI E.C. é a questão do fundamentalismo religioso. O termo é geralmente usado no contexto das religiões para indicar um apego inabalável a um conjunto de crenças irredutíveis, i.e. os fundamentos. Apesar de que o uso do termo “fundamentalismo” seria mais conveniente no plural, é possível traçar aspectos em comum aos fundamentalismos religiosos que, há décadas, habitam o Antropoceno.
Uma primeira característica comum aos fundamentalismos religiosos é o fato de nascerem em amplas tradições religiosas no mundo, como o judaísmo, o cristianismo, o islamismo, o budismo e o hinduísmo, e também o sikhismo. De fato, demograficamente, as tradições hindus são a terceira maior comunidade confessional religiosa do mundo, depois do cristianismo e do Islã, com 1,2 bilhão de praticantes [15% da população mundial, cf. Carter, 2023], e a terceira religião que mais cresce no mundo, com uma taxa de crescimento prevista de 34% entre 2010 e 2050 [Wormald, 2015].
Outra
característica comum repousa sobre a crença no princípio da inerrância da
respectiva literatura sagrada, sejam os Vedas,
o Tanakh, o Novo Testamento, o Qurʾān, o Tipiṭaka, o Guru Granth Sahib, etc. Com efeito,
as demandas religiosas hindus estão refletidas em textos sagrados organizados
sob duas categorias sânscritas, śruti
e de smṛti, de modo que a primeira se constitui em ensinamentos de
transmissão discipular que propiciam uma relação direta com o conhecimento e a
experiência contidos nos textos fundamentais das quatro tradições dos Vedas
[Ṛgveda, Sāmaveda, Yajurveda e Atharvaveda],
i.e. Mantras, Brāhmaṇas, Āraṇyakas e Upaniṣads; e a segunda num conjunto de textos
que estabelecem uma relação indireta, preliminar, com o conhecimento védico,
ensinamentos introdutórios ao śruti, apesar de não o
constituírem e serem considerados secundários em autoridade, como os Kalpasūtras, os Vedāṅgas, a tradição Itihāsa-Purāṇa, e até os Darśana
sūtras, os Āgamas e os Tantras,
entre outros.
Esta
segunda característica nos leva ao terceiro aspecto, o da astoricidade da
verdade e da literatura sagrada que a encerra, pois a razão humana sequer
deveria ousar adaptá-la às novas condições que se produzem no decurso dos
tempos.
Uma
quarta característica é o primado do mito da fundação, baseado no
estabelecimento de um modelo ideal de sociedade do passado, igualmente presente
nas respectivas literaturas sagradas. Um dos vários exemplos de ilustração
dessa concepção encontra-se no Yuddhakāṇḍa [CXVI,90], parte de um
dos principais épicos hindus [Itihāsas],
o Rāmāyaṇa, mais especificamente sobre o reinado auspicioso [rāmarājya] de Rāma, príncipe de Ayodhyā
– capital do reino de Kosala – e
um dos avatāras de Viṣṇu, sobre a terra:
“Todos foram dotados
de marcas auspiciosas (lakṣaṇasampanna). Todos eram devotados ao dharma. E
assim, durante dez mil anos (daśavarṣasahasrāṇi), ele governou o seu reino (rājya)”
Uma
quinta característica é o endereço desses fundamentalismos aos marginalizados
da sociedade de um ponto de vista sócio-econômico ambivalente, ou seja,
dirigidos tanto àqueles que foram recentemente excluídos do poder quanto aos
emergentes impedidos de preencher suas novas aspirações.
Uma
sexta característica situaria os fundamentalismos religiosos entre a crise da
política tout court e o mundo
moderno, i.e. o fundamentalismo religioso seria um jogo complexo entre o que
seus representantes apontam como decadência moral da política e o esforço para
retornar aos fundamentos últimos da ação humana na mesma sociedade política. Assim, uma perspectiva religiosa “fundamentalista”
geralmente entra em conflito com muitos valores de cidadania secular da maioria
das culturas matriciadas em parâmetros europeus e norte-americanos de
sociedade, calcadas, pelo menos em teoria, em questões como o código penal, os
direitos sociais das mulheres e de outras comunidades de gênero, como os LGBTQIAPN+, o reconhecimento da condição civil e legal de algumas etnias, e as
liberdades de culto, de atividade política e de expressão. [cf. Bruce, 2008, pp. 8-14; Pace; Stefani,
2002, pp. 15-23; Robertson, 2004, pp. 199-200; Touraine, 2006, pp. 86-95].
Acerca
das realidades sociais marcadamente hindus, Pace e Stefani chamam a atenção
para dois indicadores que possibilitam avaliar a extensão e o alcance das
mudanças pelas quais tem passado a Índia desde 1948 do ponto de vista das
tradições védicas, dentre os quais encontra-se exatamente o sistema de castas.
Estudos sociológicos e antropológicos contemporâneos baseiam-se num processo
recente de desambiguação dos sentidos que a palavra casta pode assumir
em pesquisas sobre a sociedade hindu, usada por vezes de forma ambivalente, e
nem sempre consciente, para designar tanto a categoria ético-espiritual dos varṇas
quanto para se referir às comunidades rituais sócio-ocupacionais hindus [jātis]
especificamente.
As
divisões sócio-ocupacionais [varṇas] são dispostas numa hierarquia
encabeçada pelo brāhmaṇa [erudito védico], abaixo do qual vem o kṣatriya
ou rājanya [guerreiro e/ou administrador público], seguido, por sua
vez, pelo vaiśya [comerciante] e pelo śūdra [servo]. Esta
hierarquia é um reflexo do saṃsāra, concepção religiosa védica baseada
no fluxo espiritual de evolução da alma individual através de várias de suas
existências.
Outra
dimensão que o conceito de varṇa pode adquirir é a de um grande conjunto
compreendendo uma pluralidade de comunidades rituais sócio-ocupacionais, as jātis, como se cada varṇa fosse uma unidade
espiritual e sócio-ocupacional maior, subsumindo várias jātis como suas compartimentações empíricas
menores, com suas denominações
próprias; ou ainda, segundo Mysore Narasimhachar Srinivas [1962, p. 69], como
se o sistema de varṇas fosse um esquema simples, claro e aplicável a toda a
Índia para se entender a realidade mais ampla e complexa do sistema de jātis, permanecendo o varṇa como um modelo, um
referencial ético que se superpõe a uma realidade empírica mais plural.
Jāti é um termo que também tem sido traduzido pela palavra casta, e, segundo Decan Quigley [2003,
p. 502], assim como Louis Dumont e Srinivas, designa a comunidade empírica
geograficamente determinada à qual se pertence por nascimento, o grupo
hereditário, que tradicionalmente baseia sua identidade específica no pertencimento
a uma comunidade ritual e simbólica, endogâmica, e caracterizada por uma
ocupação própria, apesar destes autores reconhecerem mudanças sociais em curso
que conferem uma aplicação mais elástica ao conceito de jāti, o qual pode se referir também ao grupo
étnico, sem excluir a prática da exogamia [Dumont, 1997, p. 113].
Com
efeito, alguns autores, como Jeaneane Fowler [1997, p. 23], afirmam
que, apesar de algumas pessoas considerarem as jātis como meras segregações ocupacionais,
de fato a estrutura delas não impede que um de seus membros trabalhe em outra
ocupação. Na esteira desta discussão, Pace e Stefani sublinham que “o sistema
de castas já não parece estático, mas, pelo contrário, mostra-se aberto à
mudança.” [Pace; Stefani, 2002, p. 109]. Um dos indícios desta assertiva é a
presença socialmente formal, e externa à prescrição do sistema de varṇas, dos dalits e
dos párias, classificados abaixo dos śūdras e integrantes do sistema social “por causa das tarefas
contaminadoras que eles têm tradicionalmente desempenhado.” [Salu, 2002, p. 246].
De
fato, desde o domínio colonial inglês até o nascimento do moderno Estado
democrático indiano, observa-se a mudança de uma realidade social baseada na
pertença de um indivíduo a uma jāti marcada tanto por fronteiras intransponíveis que
distinguiam os indivíduos social e religiosamente, quanto por ritos e regras
imutáveis de funcionamento interno na direção de outra realidade caracterizada
por mecanismos de pertença social e política, permitindo às jātis inferiores
ultrapassarem os limites de sua própria jāti, num contexto marcado por “agrupamentos horizontais que
lutam e estabelecem alianças entre si de maneira a poderem assegurar a posse
dos novos poderes econômicos e políticos que, entretanto, se foram libertando
devido ao processo de modernização econômica e democratização política” [Pace; Stefani, 2002, p. 110],
subvertendo os extratos sociais que outrora se ordenavam hierarquicamente com
base na diferenciação entre puro e impuro.
Pace
e Stefani apontam outras conseqüências econômicas: a antiga lógica que atribuía
a cada jāti ou casta um certo
tipo de trabalho, negócio ou profissão, fundada sobre o sentido sagrado, tem
sido substituída por outra lógica na qual as castas se identificam segundo
interesses e estratégias comuns de representação do seu valor social nas
esferas política e pública, baseada em vínculos sutis que unem interesses
corporativos de indivíduos que trabalham em profissões diferentes, com estilos
de vida e níveis de escolaridade diferentes, apesar de pertencerem nominalmente
a uma mesma casta. A solidariedade agora é mais “frágil, mutável, consoante os
interesses e os estilos de vida de uma sociedade que se vai diferenciando
profundamente mesmo no seio das próprias castas” [Pace; Stefani, 2002,
p. 111].
Os
primeiros movimentos político-sociais do que veio a se constituir no
fundamentalismo hindu datam do século XIX E.C. O movimento Ārya Samāj, ou Sociedade dos Nobres, fundado em 1875,
firma-se como uma conjunção entre os movimentos neo-tradicionalistas e as
idéias dos movimentos étnico-religiosos. Seu fundador, Svāmī Dayānanda Sarasvatī [1824-1883], defendia a infalibilidade dos Vedas, cujo estudo deveria tornar-se acessível
a todos os crentes, independentemente do sexo e da casta. Tais idéias
enfrentaram uma oposição forte entre grandes líderes políticos laicos e
secularizados, que não eram simpáticos à tentativa de reavivar a militância
hindu sobre bases religiosas e culturais. Os esforços de Dayānanda em debates
públicos com missionários de confissão cristã foram tão intensos que não só
conseguiu frear as conversões levadas a cabo por estes, principalmente no
Punjab – acabando eles por se tornarem relutantes em encontrá-lo em fóruns
abertos –, como também deu vida a um novo movimento, śuddhi, ou “purificação” daqueles que haviam sido persuadidos a
mudar de lado na sociedade hindu [Danino, 1996, p. 35]. Esta prática “re-hinduizante” consistia num “acto de
conversão [...] de uma pessoa que volta a descobrir a sua própria identidade
religiosa e social hindu, que, entretanto, se tinha perdido ou enfraquecido
devido ao advento da sociedade moderna.” [Pace; Stefani, 2002, p. 113], seguindo uma
metodologia bastante semelhante nas práticas de outros movimentos
fundamentalistas.
Na medida em que o movimento se
difundia por meio da fundação de novas escolas e associações humanitárias, do
lançamento de jornais e do recrutamento de militantes em tempo integral no
trabalho de difusão das idéias de Sarasvatī, crescia em seu seio uma tendência
mais radical que queria transformar o potencial humano mobilizado por meio da
conversão religiosa em capital de consenso político, gerando, com isso, em
1920, o partido Hindū Mahāsabhā, a partir do qual formou-se em 1925 um grupo político mais agressivo, o Rāṣṭrīya
Svayamsevaka Saṅgha [RSS], ou Associação dos
Voluntários Nacionais, mais enfático sobre as idéias nacionalistas da
ideologia originária do Ārya Samāj.
Para a compreensão do contexto de
surgimento do RSS é importante
considerar o desenvolvimento de um conceito criado por um dos maiores expoentes
do Hindū
Mahāsabhā, Vināyak Dāmodar Sāvarkar: a hinduidade [hindutva]. Tanto
em seu livro Essências do Hindutva
[1922] quanto em seu ensaio Hindutva:
Quem é um Hindu? [1923], Sāvarkar procurou configurar identidade e militância hindus baseadas na concepção
de uma terra, uma religião e uma nação, pois os hindus seriam um povo
etnicamente compacto que não só habita um mesmo território comum, como também
possui raízes religiosas e culturais encontradas em textos sagrados comuns:
“virtualmente todos aqueles que têm raízes ancestrais na Índia são hindus e
coletivamente uma nação.” [Savarkar, 1969]. Além de ignorar a
diversidade filosófica e confessional comportadas pelas tradições hindus, Sāvarkar tinha o Islã e a Grã-Bretanha como inimigos. Em suma, a
hinduidade “significa, por um lado, a afirmação da existência exclusiva da nação hindu e, por outro lado, a
consequente rejeição da ideia de Estado
indiano como nação multiétnica e multireligiosa.” [Pace; Stefani, 2002,
p. 116, itálico dos autores].
O RSS auriu sua ideologia nos escritos de Sāvarkar e foi criado por dois expoentes do varṇa dos brāhmaṇas, estimulados pela reconstrução da identidade nacional
sobre bases religiosas hindus. A militância exigida pelo RSS prescreve uma ideologia contra os estilos de vida e os símbolos
da modernidade que sentem ameaçar uma suposta identidade hindu, assim como uma
adesão a ações para-militares. No programa festivo de seis eventos distribuídos
ao longo do ano com o fim de mostrar a maneira pela qual interpreta os símbolos
védicos segundo reivindicações políticas nacionalistas, o RSS inseriu a exibição de exercícios para-militares junto do culto
das armas associados à divindade védica Śiva, no intuito de mostrar o sinal da
vitória hindu como um apelo a sua identidade explorada e oprimida pelas classes
dominantes [Idem].
Um fenômeno preponderante para se
entender o RSS é o processo de
independência da Índia, que, apesar de ter cindido o país com base em critérios
religiosos – uma Índia predominantemente hindu e um Paquistão predominantemente
muçulmano –, acabou deixando no poder a ideologia de um nacionalismo secular do
partido do Congresso Nacional Indiano, relegando os apelos igualmente
nacionalistas das organizações supracitadas – além do Rām Rājya Pariṣad [Conselho de Toda
a Índia do Reino de Rāma] e do Bhāratīya Jana Saṅgha – ao segundo plano.
Com apoio de Jawaharlal Nehru
[1889-1964], primeiro-ministro indiano pós-independência, o Partido do
Congresso dominou a política indiana por cinquenta anos, até 1998. [Salu, 2002, p. 243]. Após testemunhar vários prejuízos da política colonial britânica –
principalmente o divide et impera que
endureceu as divisões verticais da sociedade de acordo com linhas sectárias –,
líderes do Congresso procuraram criar um sistema político e constitucional que
protegesse e assegurasse os direitos das minorias religiosas; porém, Salu
aponta para algumas ambiguidades, como por exemplo, a neutralidade e a
imparcialidade do Estado não significarem completa separação entre instituições
religiosas e Estado, ou a Constituição permitir taxação em benefício de todas
as religiões, mas não para qualquer religião em particular. Neste intuito, o
plano de secularizar o Estado indiano segundo Nehru não harmonizava com as
idéias de Mohandas Karamchand Gandhi
[1869-1948], que defendia a não separação entre religião e política, não
só aplicando valores éticos hindus no movimento nacionalista, como também
usando conceitos religiosos hindus, como a força da verdade [satyāgraha] e a não-violência [ahiṃsā] como táticas políticas: “Para Gandhi a religião era a fonte de valor
absoluto e por isso constitutiva da vida social; a política era a arena do
interesse público; sem a primeira a segunda ficaria sem base.” [Madan, 1987, p. 344]
O RSS se opunha tanto à orientação de Nehru – vista como um esforço
em privilegiar religiões não-hindus pela noção de se tratar igualitariamente
todas as religiões –, quanto à proposta de Gandhi – cuja postura mediante os
muçulmanos era encarada pelo RSS como
um apaziguamento. O RSS conta hoje
com a força de um partido muito bem estruturado, o Bhāratīya Janata Party [BJP], ou Partido do Povo Hindu, uma organização religiosa de cunho ecumênico
que tenta hegemonizar grupos e movimentos que reivindicam a identidade hindu
tanto no plano religioso quanto na esfera étnico-nacional: de fato, é um
partido que reúne todas as expectativas que se criaram no bojo dos diferentes
movimentos fundamentalistas hindus. Em 1984 por volta de 600 expoentes de
diversas seitas hindus reuniram-se sob a égide desta associação e criaram um
“parlamento do dharma”. Apesar de governar o país desde a eleição de seu líder
para primeiro-ministro em 19 de março de 1998, Aṭal Bihārī Vājpeyī, o BJP não conseguiu base eleitoral ampla
até 2004, decidindo apostar em experiências com armas nucleares para estimular
o entusiasmo nacionalista ao redor de Vājpeyī.
Neste mesmo contexto, Narendra Dāmodardās Modī, atual primeiro-ministro indiano e membro tanto do BJP quanto do RSS, já percorria os meandros do
nacionalismo fundamentalista hindu. Envolvido com o RSS desde os oito anos de idade, quando começou a comparecer às
suas sessões locais de treinamento [śakhas], Modī
tornou-se um organizador regional [sambhag pracharak] em 1978,
supervisionando atividades do RSS em
Sūrat
e Vaḍodarā.
Após a Guerra Indo-paquistanesa de 1971, Modī parou de trabalhar
com seu tio e se tornou um ativista em tempo integral da RSS. Em 1985 ele foi designado para o BJP pelo RSS, auxiliando
na campanha eleitoral amplamente vitoriosa para o partido no município de
Ahmedabad em 1987.
O tweet de Modī
anunciando sua vitória nas eleições gerais de 2014 para primeiro-ministro da
Índia foi simbólico por sua postura política refratária ao estado secular
indiano e próximo a um nacionalismo cultural hindu [cf. Kaur, 2015]. Algumas
ações de organizações nacionalistas hindus cresceram após a eleição de Modī
para primeiro-ministro, com um certo apoio governamental [cf. Palshikar, 2015],
incluindo-se nisto um programa de conversão religiosa hindu – defendida por funcionários do governo, entre os quais o
Ministro do Interior [Idem] –, uma campanha
contra a suposta prática islâmica da “Jihad do Amor”, e tentativas de celebrar
a figura de Nathuram Vinayak
Godse, o assassino de M. K. Gandhi, por membros do Hindū
Mahāsabhā. [cf. George, 2020; Yasir, 2020].
Vale ressaltar aqui um fato bastante
curioso, de cunho fundamentalista hindu, relativo à figura que dá nome ao Rām Rājya Pariṣad, i.e. um dos avatāras de Viṣṇu, o príncipe de Ayodhyā, Rāma – componente religioso de forte apelo político-militar calculadamente
extraído da cultura hindu [Almond; Sivan; Appleby, 1992, p. 420]. No
dia 6 de dezembro 1992, grupos de seguidores de Rāma, pertencentes ao Viśva
Hindū Pariṣad [Conselho Universal Hindu], derrubaram a mesquita Babri Masjid, no atual estado de Uttar Pradeś,
mais especificamente na mesma cidade de Ayodhyā, onde se localiza o suposto
lugar de nascimento de Rāma [Rām Janmabhūmi], pressionando o
Governo da Índia a permitir a reconstrução de um templo hindu no mesmo local,
visitado pela primeira vez por um primeiro-ministro indiano em 5 de agosto de
2020, na pessoa de Narendra Modī.
Segundo o jornal The Economist, de 2 de março de 2019,
ligações entre o BJP e o RSS desenvolveram-se sob o governo de Modī. O
RSS deu apoio organizacional à
campanha eleitoral do BJP, ao passo
que a administração do primeiro-ministro indicou indivíduos afiliados ao RSS para postos proeminentes do governo.
Conforme Shekhar [2019]
a Corte Suprema da Índia
determinou, em novembro de 2019, que o terreno do Rām Janmabhūmi fosse entregue a um fundo para a
construção de um templo hindu, e que, além disso, o Governo concedesse cinco
acres de terra ao Sunni Waqf Board com o propósito de construir uma mesquita. [Cf. Ayodhya Verdict Live Updates, 10 nov. 2019.]. Com a cerimônia de consagração [prāṇa pratiṣṭhā] realizada em 22 de janeiro de 2024, acontecia a inauguração oficial do
Templo de Rāma [Rām Maṃdir] exatamente em Rām Janmabhūmi, Ayodhyā, Uttar Pradeś, na qual Narendra Modī realizou rituais hindus no interior do templo junto com Mohan Madhukar Rāv Bhāgavat, chefe do RSS [cf. Pandey,
Limaye, 2024].
Referências
biográficas
Matheus Landau de
Carvalho é bacharel e licenciado em História com habilitação em Patrimônio
Histórico pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 2009. Especialista
[2010], Mestre [2013] e Doutor [2023] pelo Programa de Pós-graduação em Ciência
da Religião [PPCIR], pela mesma Universidade. É membro do NERFI [Núcleo de
Estudos de Religiões e Filosofias da Índia] e da ABHR [Associação Brasileira de
História e Pesquisa das Religiões].
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Bom dia! Parabéns pelo artigo.
ResponderExcluirComo o movimento Ārya Samāj, liderado por Svāmī Dayānanda Sarasvatī, conciliou elementos de neo-tradicionalismo e militância religiosa ao defender a infalibilidade dos Vedas e ao promover práticas como a śuddhi, e quais foram as implicações culturais e políticas dessa abordagem no contexto do século XIX, considerando a oposição de líderes laicos e o confronto com missionários cristãos?
Ana Paula Sanvido Lara
Um texto excelente para se entender a situação atual da Índia que tem tido um aumento do fundamentalismo na sociedade e na política. Há um tempo atrás eu me recordo de ter lido uma informação na qual afirmava que o império britânico, no período que colonizou a Índia fez uma separação na população com relação a identidade religiosa das pessoas. Isso pode ser uma questão que auxiliou na construção desse fundamentalismo, além da reafirmação da identidade nacional mediante a colonização ?
ResponderExcluirPrezada Rafaella da Silva Braz Paixão,
Excluirdesde já agradeço demais pelas palavras e pela pergunta. Ao meu ver, os britâncos acabaram reforçando uma classificação que, ao que tudo indica, fôra iniciada por muçulmanos persas que olhavam para toda uma variedade de tradições com seus respectivos desdobramentos doutrinais – segundo prerrogativas instrucionais cotidianamente promovidas por eruditos hindus (brāhmaṇas) com o monopólio da transmissão de saberes ritualísticos, reflexões especulativas e exortações sobre convivialidades éticas nos âmbitos familiar e social –, conhecidas no sânscrito como saṃpradāyas, e classificavam-nas sob um único e mesmo termo, i.e. “hindu”, pois os termos “hinduísmo” e “hindu” começaram a ser usados pelos islamitas que habitavam a região da Pérsia como designações religiosas que diferenciassem os muçulmanos aquém do rio Indo (em sânscrito sindhu, lit. “mar”, “oceano”) dos não-muçulmanos que habitavam além do mesmo rio. Após o estabelecimento soberano dos muçulmanos sobre grande parte do subcontinente indiano, os britânicos se apropriaram, a partir do século XVIII E.C., destes termos como denominadores comuns para se referir a esses saṃpradāyas distintos entre si então presentes na região, contribuindo para sua divulgação e uso amplamente estabelecidos (RODRIGUES, Hillary. Introducing Hinduism. New York: Routledge, 2006, p. 4). (continua...)
Inegável foi a estratégia política conhecida como ‘divide et impera’ (dividir para governar), bem recorrente entre os britânicos em suas empreitadas imperialistas – vide ilha da Irlanda, constituída pela República da Irlanda (Eire) e Irlanda do Norte (Ulster) –, para diluir qualquer iniciativa mais densa e significativa de reação eficaz ao domínio que imprimiam através da Companhia Britânica das Índias Orientais até o Motim, ou Guerra dos Sipaios, em 1857-58.
ExcluirEstudiosos oitocentistas europeus disseram ter observado nos 1.028 hinos (‘sūktas’) da ‘Ṛgveda Saṃhitā’ um conflito entre dois grupos humanos, os árias (‘āryas’) e os dásios (‘dasyus’), aos quais atribuíram a condição de raças e também famílias linguísticas diferentes. A partir do emprego de eruditos e historiadores para reescrever livros prescritos como currículo em escolas e universidades, deram ensejo a uma propaganda ‘separatista’ dentro do Raj britânico a fim de enfraquecer qualquer tentativa de resistência bem estruturada e conjunta de todo este território. O fracasso da Revolta dos Sipaios foi a conseqüência bem sucedida da política inglesa do ‘divide et impera’. (continua...)
Este assunto guarda inúmeros desdobramentos históricos, dentre outras áreas acadêmicas, que não nos permitiria um desenvolvimento adequado neste exato contexto aqui...
ExcluirEspero ter correspondido às expectativas.
Desde já agradeço pela atenção.
Atenciosamente,
Matheus Landau de Carvalho.
Xará,
ResponderExcluirInternacionalmente, o movimento RSS e o BJP são divulgados como sendo de "direita". Porém, você mostra que eles alegam estar rompendo com opressões contra a sua cultura. Quais os limites e alcances da classificação política de "direita" aplicada para o RSS e o BJP?
Prezado Xará,
Excluirdesde já agradeço pela pergunta. Ao meu ver, “direita” e “esquerda” são noções sem estatuto epistemológico bem definido – considerando-se um histórico desde suas existências no processo revolucionário francês até o mundo de hoje, em vários países – que guardam, cada um ao seu modo, disparidades entre suas respectivas retóricas ideológicas e práticas concretas, atitudinais, seja como situação governamental deste ou daquele país, seja como oposição àqueles que ocupam o respectivo estado político.
Em termos gerais, poderíamos visualizar “direita” como uma visão ou posição específica que normalmente aceita a hierarquia social ou desigualdade social como inevitável, natural, normal ou desejável, apoiando esta posição baseada na lei natural, na economia de mercado, na autoridade transmitida intergeracionalmente, na garantia da propriedade privada, na religião, e na tradição. Se compararmos essa breve configuração, é possível identificar alguns elementos da militância do RSS e do BJP com dimensões majoritariamente recorrentes daquelas experiências político-ideológicas que se auto-denominam de “direita”. (continua...)
O nacionalismo – neste caso hindu – na Índia atual segue as mesmas coordenadas gerais dos nacionalistas de direita em geral – após o período do boulangismo e do caso Dreyfus na França do século XIX E.C., o nacionalismo tornou-se uma característica predominantemente daqueles que se auto-denominam de “direita” –, pois ao também procurar definir e defender uma "verdadeira" identidade nacional a partir de elementos que eles acreditam estar corrompendo essa (suposta) identidade (hindu), como seria o caso das outras comunidades religiosas indianas – cristãos, sikhs, muçulmanos, etc –, os militantes do RSS e do BJP acabam seguindo a linha de um supremacismo hindu (as tradições hindus correspondem, hoje, por cerca de 80% da população indiana) bem na esteira do racismo científico e do darwinismo social ao aplicar o conceito de “sobrevivência do mais apto” a nações e raças, neste caso a Índia das castas (‘varṇa’ e ‘jāti’…) e de exaltados conflitos étnicos, que acompanham boa parte da cultura hindu há séculos. Desde a noção de estrangeiro (no sânscrito ‘mleccha’) até a maneira pela qual as noções de ‘ārya’ – que, por sua vez, se transformou na concepção étnica do ‘ariano’ após distorções europeias do termo – e ‘dasyu’ – como um servo ontologicamente inferior, supostamente advindo de etnias qualitativamente rebaixadas no plano existencial – foram politicamente apropriadas por intelectuais europeus a partir da matriz cultural védica – na qual refletem critérios de elegibilidade ritual conjugada com perspectivas soteriológicas transmigracionais – para fins de distinção étnica dentro da população do subcontinente indiano desde os tempos do Raj britânico (século XIX E.C. etc).
ExcluirOutro aspecto nesse sentido é a íntima aproximação dos sistemas de ‘varṇa’ e ‘jāti’, autóctones à cultura hindu, com a aceitação da hierarquia social ou desigualdade social como inevitável na condição humana, uma vez que o sistema de castas enquanto termo genérico – e problemático – para designar ambos os sistemas supracitados reflete as maiores experiências de hierarquização socialmente institucionalizadas já testemunhadas pela humanidade, seja no espaço, seja no tempo…
Se observarmos nuanças ideológicas do fundamentalismo hindu apontadas pelo meu texto acima, chegaremos a uma identificação íntima da militância do RSS e do BJP com essas diretrizes recorrentemente encontradas em âmbitos auto-referenciados como de “direita”. Além disso, a tendência da dita “direita” indiana para eleger ou nomear políticos e funcionários governamentais com base em laços aristocráticos e religiosos é comum a quase todos os estados da Índia. Certos partidos políticos, como o Bhāratīya Janata Party, identificam-se com elementos conservadores e nacionalistas. Junte-se a isso o populismo de direita como uma combinação de nacionalismo cívico, nacionalismo cultural – e, por vezes, até de um etnonacionalismo –, como é exatamente o caso do RSS e suas práxis para-militar conjugada com a noção do ‘hindutva’. (continua...)
O fato de alegarem “estar rompendo com opressões contra a sua cultura” vem do ambiente político-cultural no qual ideias de independência de uma Índia sob domínio britânico começaram a ganhar vulto, num contexto muito forte de nuanças nacionalistas pelo mundo afora – e no caso indiano, com muito mais força a partir do Motim, ou Guerra dos Sipaios, em 1857-58, contra a Companhia Britânica das Índias Orientais de maneira mais imediata. Essa espécie de “reserva de sentido” sempre é conveniente em determinados contextos, como no caso do pós-Independência da Índia (1948 em diante), quando a questão do comunalismo acaba sendo pertinente para as lideranças nacionalistas indianas e/ou fundamentalistas hindus na medida em que isso esbarra diretamente no projeto de estado secular através da Constituição da República da Índia conjugado com as comunidades confessionais – das mais diversas – que mais recentemente vivem competindo por direitos e/ou privilégios politicos através de suas retóricas militantes através de prerrogativas positivas ou negativas, dependendo do grupo religioso em questão, na obtenção de suas respectivas demandas sócio-confessionais. Além disso, qualquer iniciativa de secularismo, à vista dessas lideranças fundamentalistas hindus, é comumente tratada como propaganda cristã disfarçada, não apenas pela fricção, rivalidade ideológica, no cenário politico em si, de disputa pelo poder etc, mas também pela densidade filosófica da cultura védica que, irrevogavelemnte enquanto cultura religiosa, acaba projetando toda uma perspectiva de totalidade sempre em jogo, tanto em termos de uma convivialidade cotidiana em seus desdobramentos comportamentais imediatamente perceptíveis à sensorialidade empírica humana, quanto em termos dos horizontes soteriológicos metaempíricos implicados nisso. Isso é outro motivo que abre espaço para a retórica da opressão contra a própria cultura (hindu), sobretudo pelas experiências históricas traumáticas que os indianos tiveram com os imperialismos português no século XVI E.C., francês no século XVIII E.C., e britânico a partir também do século XVIII E.C. (Plassey, 1857), que por sua vez, plantou uma predisposição plausível dos indianos para sempre duvidarem dos reais motivos pelos quais referências culturais de matriz europeia entram na cena político-ideológica indiana. (continua...)
ExcluirInúmeras outras coisas podem ser desdobradas e concluídas a partir de tua pergunta, Xará. Deixei aqui algumas poucas apenas como início de um longo diálogo…
ExcluirEspero ter correspondido às expectativas.
Desde já agradeço pela atenção.
Atenciosamente,
Matheus Landau de Carvalho.
Prezada Camila Cunha,
ResponderExcluirdesde já agradeço demais pelas palavras. Acredito que, num horizonte pan-indiano mais amplo, a postura é bem equivalente àquela sustentada contra muçulmanos, i.e. de hostilidade baseada num supremacismo hindu – muito provavelmente calcado na noção de ‘Hindu Rāṣṭra’ (Nação Hindu) do cientista social e nacionalista Binay Kumār Sarkār (1887–1949) – independentemente da confessionalidade em questão; assim como na noção de hinduidade (‘hindutva’), necessariamente excludente por sua busca de uma suposta identidade universal hindu.
Essa hostilidade de origem hindu acontece, na história recente da Índia, concomitantemente à questão do comunalismo, um termo cunhado pelo governo colonial britânico enquanto lutava para gerir os motins hindu-muçulmanos e outras violências entre grupos religiosos, étnicos e díspares nas suas colônias, particularmente na África Ocidental Britânica e na Colônia do Cabo, no início do século XX. No contexto indiano atual, essa questão esbarra diretamente no projeto de estado secular através da Constituição da República da Índia conjugado com as comunidades confessionais – das mais diversas – que mais recentemente vivem competindo através de suas retóricas militantes com argumentos segundo prerrogativas positivas ou negativas, dependendo do grupo religioso em questão, na obtenção de suas respectivas demandas sócio-confessionais. Em outras palavras, acusações mútuas entre hindus de um lado e demais confissões religiosas de outro sobre supostos privilégios concedidos ou negados – a depender do contexto – acabam sustentando recorrentemente animosidades políticas dos grupos religiosos minoritários da Índia contra as tradições hindus em geral nos campos politico e social. O dilema do estado secular indiano persiste desde o século XIX E.C., visto que cerca de 80% da população se identifica com alguma das tradições hindus.
Veja, por exemplo, nesse artigo () de 15 de julho de 2024 – após a última reeleição de Modī –, a reclamação de uma delegação de bispos católicos endereçada ao primeiro-ministro indiano sobre perseguições, discriminações e crimes de ódio que alegam terem sido cometidos contra cristãos na Índia por praticantes hindus, a condição de dalits cristãos nesse contexto, assim como alguns “desafios indevidos” que as ONGs cristãs enfrentam quando têm de renovar o seu registo ao abrigo da FCRA (Foreign Currency Regulation Act [Lei de Regulamentação da Moeda Estrangeira]). Da esfera de convívio imediato no espaço público até a burocracia estatal, é possível identificar iniciativas concretas de hostilidade cotidiana cada vez mais recorrentes a grupos não-hindus, que volta e meia chegam a Modī como reivindicação de diretios e medidas a serem tomadas pelo primeiro-ministro indiano...
O separatismo sikh é outro ponto que merece destaque – cf. –, mas acredito que, por ora, já temos um bom ponto de partida para discussão... ;)
Espero ter correspondido às expectativas.
Desde já agradeço pela atenção.
Atenciosamente,
Matheus Landau de Carvalho.