CAMINHANDO
COM HARUKI MURAKAMI, AO SUL DA FRONTEIRA, OESTE DO SOL: ATRAVESSANDO
PELA CULTURA JAPONESA
“É esse sistema que chamarei de:
Japão.”
Roland Barthes
Introdução
Parafraseando o pensamento
barthesiano, o Japão é uma impressão que nos exprime sentidos. Aqueles que o
imprimiram (ou ainda imprimem) seguem entre nós, por meios diversos. A proposta
deste texto é servir-se da obra Sul da fronteira, oeste do sol, escrita
por Haruki Murakami para alcançar uma impressão, que embora particular deste
autor, nos vincula a todos num amplo complexo simbólico chamado de
“contemporâneo”.
A partir das discussões sobre o
conceito de presença no interior da cultura japonesa, presentes na obra,
vislumbra-se um exercício de passagem pelo texto murakamiano, tomado aqui como
percurso. Como de praxe na maioria dos artigos, propõe-se um conjunto de
arquiteturas orientadas e o principal eixo é a percepção de que a obra lança
luz de jeito original ao tema, tornando-se representativa nos seus elementos.
Todavia, não se objetiva uma crítica
literária aqui, naquele sentido tradicional da decifração. Optamos por uma
inspiração mais barthesiana: para este autor, toda a literatura se articula em
termos semânticos encadeados que são reaproveitados pelo leitor no que este
soma à obra. Aliás, a obra só expressa ontologia exatamente nesse ponto: quando
sua leitura existe – logo, nunca única, unívoca ou unilateral.
Isso significa dizer a literatura como
um objeto da ação humana, que por sua vez, lhe imprimi sentidos circunstanciais
os mais diversos. Isso tem relação com o status da literatura. Ele variou ao
longo dos anos, passando por paradigmas explicativos que dedicavam papéis ao
texto literário. Ora campo de aprendizado, ora espaço de retórica, ora
representação de alguém ou de uma época inteira, passando pela sua configuração
como “hospitalidade” e “interculturalidade” até uma eventual liberdade gerada
pela visada pós-estruturalista – em todos esses momentos, a literatura assumiu
um sentido.
Em nosso artigo, gostaríamos de tomar
uma obra como caminho pelo qual passeamos e observar as nuances de cada
passo. Estes estão empreendidos na leitura e percepção de seus elementos
encadeados, sem a preocupação de com isso elaborar uma interpretação, mas sim
um comentário do que se nota evidente: a abertura de Sul da fronteira, oeste
do sol nos conecta com a atualidade da globalização e o esfacelamento do
sujeito contemporâneo, que arfa por presença e conexão, num mundo cada vez mais
esfacelado.
O exercício se justifica, dentre
outros motivos, porque a atualidade do pensamento murakamiano construiu tamanha
presença que figura nos fluxos culturais como linha de força. Seu argumento
acerca do homem esfacelado e desencaixado figura no imaginário jovem e até em
circuitos culturais de volume, além de na própria literatura e no cinema. Porém,
o texto tem seu objeto a partir da percepção acerca da literatura: ela não é um
instrumento acabado. Ela é um horizonte: “O Texto não é a coexistência de
sentidos, mas passagem, travessia; não pode, pois, depender de uma
interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma disseminação”
(Barthes, 1988, p.74).
Observamos a potencialidade
murakamiana justamente no quanto adentrá-la constitui um passeio que desnuda o
transeunte, mais do que a própria obra. Suas personagens parecem moldes nos
quais o leitor arriscar encaixar-se. Seus temas apresentam-se como uma
conversa, na qual as tópicas narrativas estão abertas, sempre convidativas.
Além disso, salta do texto um exercício bastante autoral de escrita da cultura
japonesa, mesmo que isso seja deixado a apreensão do leitor.
Assim, objetiva-se perceber os
elementos do passeio, e o quanto Haruki Murakami posiciona-se como propositor
de uma semântica aberta para os impasses da globalização, do indivíduo e da
própria sociedade japonesa, tudo isso desde o Japão para o mundo e desde o
mundo para o Japão. Para isso, convocamos Sul da fronteira, oeste do sol,
por entender que neste texto, o autor reinventa de forma particular a lógica da
presença, optando pela valorização narrativa da ausência e a partir dessa
costura narrativa alcançamos categorias do pensamento japonês os quais serão
bastante detalhados ao longo do artigo.
Murakami constitui uma voz japonesa
aparentemente crítica ao nosso tempo. Questiona a contemporaneidade e seu topoi,
sobretudo no que tange a afirmação da pós-modernidade, reconhecendo-a e
descrevendo seus personagens à luz dela. De fato, o autor propõe um a técnica
literária que lhe diferencia de nomes consagrados do segmento tradicional
japonês. Por exemplo, diferencia-se sensivelmente de propostas literárias
tradicionais, das quais se destacam as de Yasunari Kawabata e Junichiro
Tanizaki, autores notoriamente dedicados ao conceito de presença, embora de
modos distintos.
Uma observação significativa quanto ao seu lugar de pioneiro, visto por alguns, precisa de ser feita: Murakami figura como um autor japonês bastante conhecido no mundo além-Japão, porém outros autores já haviam conquistado proeminência antes. No Brasil, além de Kawabata e Tanizaki, Yukio Mishima (1925-1970) e Ryunosuke Akutagawa (1892-1927), por muitos chamado de “Machado de Assis japonês”, já se encontravam em língua portuguesa do Brasil desde pelo menos 1961 com muita presença editorial. Seus contos acessíveis e ao mesmo tempo profundos criaram uma imagem do Japão com suas figuras e temáticas japonesas.
Murakami a passar pelo contemporâneo
As obras mais críticas a essa
arquitetura cultural se localizam no período de 1985-1999. Nele figuram as
matrizes de questões apresentadas a compor o rol de uma retórica murakamiana, contra
essa arquitetura pacífica da cultura japonesa.
Sul da fronteira, oeste do sol (Kokkyō no Minami, Taiyō no Nishi)
é o sétimo livro escrito pelo japonês Haruki Murakami, publicado no ano de 1992,
e o segundo livro desta fase. Integra uma série de livros que relatam o seu
amadurecimento literário, pois é quando ele “mergulha na busca da identidade
humana e duplica o indivíduo como forma de questionar o mundo moderno”
(FERREIRA e JUNIOR, 2020, p. 48).
A percepção dominante é a de que esse
recorte iniciado nos anos 1980 permite ver o conjunto de tópicos e tópicas mais
robustos de seu repertório, os quais divulgam o aspecto globalizado e
intercultural de sua obra como um todo. Chama a atenção o quanto isto que segue
qualificando sua escrita, ao longo de mais de 40 anos de atividade. Murakami
escreve agora e sobre o agora, que é uma infinidade de aberturas do sentido.
Seus enredos são leituras e
apresentações das características do que alguns chamam de pós-modernidade. Sugere
os termos do sujeito e da sociabilidade japonesa, afastando-se parcialmente do
quão elogioso essa seja, para o quão inexata se manifesta.
A mescla de elementos fantásticos também
comparecem, conferindo-lhe ainda mais prestígio. Essa técnica auxilia na
apresentação desta crise do sujeito, que parece o tema mais recorrente. Suas
obras normalmente se enredam por uma cena composta de uma crise individual
diante do mundo que cerca a personalidade do personagem e este segue uma
trajetória de “evolução” – muito embora a palavra “evolução” seja mais
compreendida se tomada na sua acepção de sucessão temporal, como o tempo que
prossegue por assim dizer, do que como um aperfeiçoamento.
Não é raro que as personagens murakamianas
sejam atravessadas pelo desejo de desaparecer, de se deslocar e de morrer para
o “seu aqui” e recomeçar num “outro aqui”. Das obras desse recorte inicial,
saltam as questões vividas por personagens masculinos eventualmente desejosos
de se compreender melhor no tempo e no espaço.
No caso de Sul da fronteira, oeste
do sol, o personagem percebe-se um empresário de sucesso na casa dos 30-40
anos, que deseja compreender o seu envolvimento com uma colega de infância. O
relacionamento não pode seguir adiante em função da separação prematura de
ambos na adolescência. Ficamos sabendo disso logo nos primeiros capítulos da
obra.
O livro possui um total de 15
capítulos, ao longo dos quais acompanhamos a trajetória de um protagonista que
mais parece uma versão do próprio autor. Não há nenhum indício de que sua
história pessoal tenha servido de base para a narrativa, porém algumas semelhanças
se tornam interessantes se vistas em perspectiva: a faixa etária à época do
lançamento, a posse de um negócio (bar) e a menção efusiva de músicas globais
famosas.
Ao longo de Sul da fronteira, oeste
do sol – primeiros passos
O protagonista se chama Hajime e o
enredo é sobre sua história de desventuras relacionais. Tendo nascido no ano de
1951, “na primeira semana, do primeiro mês do primeiro ano da segunda metade do
século 20”, recebeu este nome em alusão aos começos que a data sugestiona. Afinal,
o protagonista está inserido num tempo contemporâneo de eventos marcantes.
1951 seria o penúltimo ano da ocupação
americana no pós-guerra, encerrada em 1952, além de um ano muito próximo do
nascimento do próprio autor (1949). Assim, percebemos quão poética é a
abertura: Hajime também significa “começo” na língua japonesa – (始)(め) – e só neste elemento já teríamos elementos
suficientes para uma incursão narrativa, pois o começo da obra é também uma
filosofia sobre o lugar do sujeito numa percepção subjetiva.
A começar pelo fato de sua significação, Hajime
inaugura na obra (e no leitor) uma certa visão do tempo, como experimentação
(AGAMBEN, 2012). Somos chamados a ser esse protagonista, acompanhando-o numa
relação com sua época. O tempo torna-se um vetor de ordenamento desse
crescimento narrativo, tentando simbolizar o primeiro grande problema a afligir
os narradores murakamianos:
“A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação
com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, de toma distâncias;
mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma
dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a
época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos
porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar
sobre ela.” (idem, p. 59)
O desejo de mostrar-se afetado pela conjuntura de seu
tempo torna Hajime portador de uma condição latente, esse desencaixe que ele
mesmo expressa. Tal cisão sendo bastante profícua em termos narrativos já
parece um primeiro veio do texto, no rumo de expressar uma voz. Tomando-se o
desenvolvimento da história de Hajime, há tensionamento dessa nuance do “começo”,
principalmente porque coloca-o numa expressão distinta dos sentidos
tradicionais do tempo histórico na cultura japonesa.
Ora, a constituição do tempo no universo asiáticos (se
é que há alguma possibilidade de singularização desse universo tão múltiplo)
corresponde a uma diferença muito parecida com a que invocamos amparados em
Claude Lévi-Strauss: se o sujeito não pode ser tomado como uma unidade básica em
si, o tempo, por sua vez, também apresenta especificidade quando visto em
termos coletivos e individuais. De saída, a presença do conjunto simbólico
xintoísta torna o tempo profundamente diferente do tempo moderno ocidental. O
passado é um vetor de ordenamento do tempo presente, o qual alarga-se para
acolher aquilo que passou em si.
No xintoísmo, por exemplo, a presença dos antepassados
é presentificada mesmo no pós-morte, criando-se uma mescla dos dois campos da
existência. O altar familiar (butsudan) é o espaço de demonstração ao
morto, no intuito de o honrar com respeito e alguma veneração. O tempo passado
pertence a aquilo que está em andamento, não necessariamente como instrução,
mas como força de definição. O venerável tem essa força de inspirar na sua
ausência tanto ou mais que na sua presença. Isso constitui a existência genuína
ao tom japonês, um termo de presentificação que altera um encadeamento dos
tempos que seria bastante natural a um observador não asiático (KATO, 2012; SATO,
2006), e faz com que a “história do que aconteceu” seja lente da “história do
que está em andamento”.
A consequência dessa primeira ilação é crucial na topografia que está posta: do ponto de
vista de nossa análise, observamos a existência de uma diferenciação precisa
quanto ao papel conceitual de “fluxo” e “fato”. O fluxo é mais importante que o
fato isolado, o que deriva na percepção social de que o aspecto localizado não
tem maior importância que a conjuntura ou que a estrutura a lhe cercar. O
esvaziamento do sujeito se justifica exatamente aí, pois dele é exigido estar
num complexo contínuo que lhe interfere, lhe atravessa e lhe assenta com aquilo
que seja necessário. Os sujeitos na sua ontologia estão fraturados, se o desejo
for a valorização da individualidade.
A nuance da visão do tempo japonês, portanto origina
os mecanismos que substanciam o apagamento daquilo que seja disruptivo.
Indivíduos podem, por exemplo, ter essa ontologia interferida ao não
corresponder ao fluxo. Portanto, entram em cena diversos conceitos de
apagamento, dentre os quais, a partir da leitura atenta de Sul da fronteira,
oeste do sol, podem ser destacados o “deixar fluir” (mizu ni nagasu,
com esse sentido de deixar seguir o momento) e a “evaporação” (jōhatsu,
esse estranho desaparecer que configura o “deixar de existir”). Ambos saltam da
narrativa para compor uma retórica murakamiana e uma mensagem a quem ler.
Nos passos de Hajime
Com a identificação tão extremada do ano de 1951, existe,
na verdade, uma aparição num tempo contínuo, como se Hajime tivesse
simplesmente surgido no tempo contínuo. O narrador prossegue: ele era uma
criança comum, de uma família comum. Não possuía irmãos e estudou numa escola
comum.
Nesta escola, ele conhece Shimamoto, uma jovem menina
recém-chegada na região e matriculada na escola. Ela possui uma deficiência na
perna, como que uma má formação, que impacta o seu andar e a torna
consideravelmente deslocada dos demais. Por isso, os professores designam
Hajime para acompanhá-la. Como ele também morava perto de sua residência, seria
mais apropriado que ele pudesse explicar a dinâmica de funcionamento das
classes e lhe fizesse companhia.
Ambos desenvolvem uma grande amizade, trocando momentos
intensos de intimidade e conexão juvenil, mas por uma casualidade não
explicada, ao final do primeiro segmento escolar, cada um deles migra para uma
escola distinta e aquela proximidade se desfaz progressivamente. Shimamoto só
irá reaparecer em uma nova fase da vida do protagonista, estável aos trinta e
sete anos, e ficamos acompanhado o desenvolvimento de sua vida até lá.
O narrador-personagem divide sua história em fases,
todas bastante identificadas pelo acontecimento com mulheres, como se
estivéssemos acompanhando uma trajetória. Hajime passa a viver sua
adolescência sob os signos habituais: o desejo de ser um garoto menos franzino,
certa nuance metrossexual, passando pelo ingresso num clube específico
(natação) e seu desenvolvimento escolar. Nessa fase, inicia um namoro, com uma
jovem chamada Izumi, e começa a se descobrir sexualmente.
A constante de relacionamentos segue o desenvolvimento
cronológico dessa juventude, bastante positiva. Envolve-se amorosamente com
outras mulheres além destas, inclusive uma mancava da perna assim como
Shimamoto. Até aí, acontece uma certa repetição do elemento relacionamento com
essas indicações de início-manutenção-crise-ruptura. A exceção da regra foi
Yukiko, com quem Hajime se casa e constitui família.
Ele se funde à família da esposa, embora pouco se fale
dela. Destaca-se o seu sogro, um influente lobista, articulador da bolha imobiliária
japonesa. Em certa altura do livro, ele sugere uma negociata espúria para o
genro: uma compra articulada de ações, cujos valores iriam inflacionar de
maneira programada – só para citar um exemplo.
A narrativa apresenta, então, esse casamento, tornando
Yukiko uma personagem secundária, mão e dona de casa. Pouco sabemos de suas
vontades e aquilo que é revelado passa pela mediação de uma figura masculina.
Ao longo do matrimônio, Hajime, por sua vez, se torna um empresário
bem-sucedido e temos sua vida contada com uma riqueza de detalhes típica da
literatura murakamiana.
Normalmente, essa forma de aparição da figura feminina
torna o autor alvo de críticas por parte de um público leitor mais aderente às
questões feministas. Shimamoto, Izumi e Yukiko são parte integrante de um
conjunto de mulheres murakamianas normalmente representadas com essa postura:
são pouco presentes, opacas e eclipsadas pela figura masculina justificadora.
No caso de Yukiko, sua vida aparece à margem da vida
de Hajime, destacada pelo seu sucesso e normalidade. Contudo, o elemento
diacrítico desta narrativa é a ocorrência de um encontro aleatório no famoso
cruzamento de Shibuya, quando Hajime vê alguém muito parecida com Shimamoto.
Daí em diante, a narrativa torna-se uma busca por ela – e no limite: por um
tempo diferente do que era esperado. Exatamente nesse ponto, a narração
abre a figura “Hajime” e nos apresenta a sua primeira grande crise, contra o mizu
ni nagasu e a continuidade do tempo da experiência.
Hajime e Shimamoto conseguem concretizar esse
encontro, experimentam o vigor de uma relação sexual longa, que, na verdade, os
une temporariamente, pois ela desaparece (“evapora”) no dia seguinte – à
semelhança do conceito de johatsu, pois havia uma impossibilidade dada
para essa união. O reconhecimento da impossibilidade, cremos a partir da
leitura, é o gatilho do desaparecimento tomado como solução. Contrariando o
final concatenado esperado, uma resolução favorável a essa união pela paixão
redentora da história, o próprio personagem termina em aberto, junto à
narrativa que jaz inconclusa. Metaforicamente, Shimamoto “evaporou” e Hajime
ficou absorto na fumaça.
Conclusões acerca do chamamento murakamiano
A evaporação como sumiço de si é o mote narrativo,
numa assertiva que faz Hajime metáfora do nosso tempo e de nós mesmos. Essa
percepção é bastante significativa, pois as crises da jornada narrativa de
Hajime derivam de seu choque com essa genealogia subjetiva do tempo – elemento
que o faz literariamente representativo. Inicialmente, sua percepção de
desencaixe no mundo que lhe cerca avança e torna-se uma individualidade
exacerbada que busca locupletar-se existencialmente. A seguir, defronta-se com
a maturidade e exatamente aí surgem as dúvidas relativas ao seu passado – que
lhe interrompem existencialmente.
A crítica e crise da conformação pode
se manifestar de diversas formas no conjunto da obra murakamiana. A leitura de
seus livros mais longos demonstra que a crise se efetiva como crítica de sua
própria vivência. Não necessariamente os personagens pelo abandono de algo, mas
passam pela crítica do que vivem no momento em que estão. Ocorre uma fratura na
sua existência, com a perda de algum elemento significativo. Eles deixam de
pertencer ao mundo em que estão, neste ponto rompendo com essa relação
dialética, que prevê o ordenamento do público e seu lugar em termos de
opacidade. O espaço público torna-se o lugar de experimentações. De acordo com
Isotani (2021, p. 110):
“De modo geral, Haruki Murakami nos
propõe uma nova forma de reconhecer as relações humanas. O humor, a ironia e o
desprendimento da realidade global permitem ao escritor trabalhar essa crise de
identidade e representação do sujeito nipônico, contrapondo os ideais do
indivíduo moderno aos do “ser” unificado e estável. Dessa forma, a crítica que
faz em seus textos, tanto da fase mais introspectiva como da fase que retrata
problemas gerais do ‘progresso’ da humanidade está presente em seus textos.”
Aquilo que não se pode realizar deveria estar, do
ponto de vista do conceito de historicidade japonês, encerrado mesmo que
inconcluso. Porém, ele se insurge contra
a sua vida tal como ela está e volta-se ao passado para realizar-se, o que é a
sua ruína existencial dupla – pois o passado não pode ser emendado, mesmo com o
máximo de empenho. Hajime defronta-se com a crise diante do seu próprio tempo
(quase nos termos ilustrativos de Agamben), bem como se frustra com a
impossibilidade de romper com a lógica tradicional dessa arquitetura do tempo
que presentifica o passado.
Com alguma orientação barthesiana,
análise que se segue não é uma interpretação do texto, mas um mapeamento de
alguns de seus caminhos. Afinal,
Sabemos agora que um texto não é feito
de uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira
teológico (que seria a ‘mensagem’ do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões
múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma
é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura.
(BARTHES, 1988, p. 68-69)
Pensando com a tese de Barthes, a obra
sempre é um entrelaçamento: uma interligação de semânticas e temas, através dos
quais se vislumbra o exercício da leitura como apreensão de algo. Sul da
Fronteira, oeste do sol é, portanto, tomado como um ponto de partida de
temas propositalmente recheados de semânticas fundantes, sem as quais a
narrativa não se sustentaria.
O elenco desses elementos poderia ser
expresso em:
(1) Hajime e a significação de seu
nome representam uma ruptura com o conceito japonês tradicional de tempo – o
que se materializa na jornada de crescimento iniciada;
(2) na mesma toada, a forma como o
protagonista busca reviver essa relação com Shimamoto reflete um movimento
contra a corrente do mizu ni nagasu – até porque, se vê uma busca pelo
passado e a manutenção de possibilidades que não foram concretizadas;
(3) Por fim, os desaparecimentos
existentes na narrativa sugerem incursão do leitor na compreensão das orientações
da sociabilidade japonesa, no tocante à condição de pertencimento ou exclusão,
desta última se destacando o conceito de jōhatsu, “evaporado”, como
elemento significante de alguns personagens (Shimamoto e Izumi).
Esses temas configuram movimentos que
o leitor pode observar e aprofundar consigo mesmo. Elaboramos um diagrama para
ilustrar o percurso narrativo construído por Murakami:
Imagem:
Diagrama dos
movimentos narrativos de Sul da fronteira, oeste do sol
Exatamente nessa constituição
narrativa há uma referência às questões impostas pela proposta pós-moderna a
nos cercar nos tempos atuais. Murakami figura como um autor japonês,
globalizado e intercultural por colocar em cena todas as inquietações do sujeito
contemporâneo que está profundamente desencaixado e pulverizado. Num tempo em
que a discursividade tem afetado as lógicas tradicionais de orientação
individual e coletiva, sua escrita demarca posição observadora do sujeito, sem,
contudo, oferecer remediação.
Os textos de Murakami foram produzidos
dentro de uma perspectiva diferente da ocidental, apesar da sua familiaridade
com a cultura americana e de suas estratégias literárias, uma vez que traduziu
várias obras de escritores de língua inglesa para o japonês e teve sua primeira
coletânea (Blind Woman, Sleeping Woman) escrita pensando no povo
americano e originalmente em inglês. (OLIVEIRA, 2020, p.24)
Logo se percebe quão fronteiriça seja
essa escrita que tem arrebatado um conjunto tão diverso de leitores e
comentadores. De fato, há que se concordar com o fato de que sua escrita mescla
elementos tradicionais da cultura japonesa com uma sucedânea de situações e
questões muito próximas de uma tradição narrativa ocidental.
As “fraquezas” e “dúvidas” vividas por
seus personagens alcançam patamares às vezes difíceis de se compreender, porém,
parecem representar uma interpretação da pós-modernidade e do sujeito
pós-moderno. O seu enredo funciona como um arranjo de situações a convidar o
leitor para o papel de sua personagem.
O conjunto da obra parece estar
fundamentada na elipse como tópica principal, pois há uma constante ocorrência
de paradoxos que tem a sua semântica mais precisa nesse exercício textual da
contradição. O mise-en-scène típico se configura numa retórica
específica, que se deflagra com (1) dissimetria de relações, (2) uma crise de
subjetividade e (3) uma elipse que se torne mote do complexo narrativo.
Sul da Fronteira, Oeste do Sol segue essa fórmula mantendo certa
semelhança com outras de suas obras, especialmente com O incolor Tsukuru
Tazaki e seus anos de peregrinação, cujo título já evoca pelo menos um dos
eixos acima. Porém, uma vez que o exercício comparativo não poderia ser
realizado nos limites de nossa análise, gostaríamos de solidificar um
entendimento básico: elipse na obra (e na retórica) murakamiana é semantema,
elemento básico constituinte de sentido na quase totalidade de seus escritos.
Cada palavra importa como veículo que
conduz por uma complexidade cultural comprimida, quase como se houvesse certo
comentário sobre as estruturas da cultura japonesa. Murakami, portanto, é lido
como um percurso, de modo que sua principal estratégia é o convite a uma
caminhada e o Murakami-do-leitor ensaia, critica, poetiza acerca dos limites
humanos ao longo desse movimento de instruir deslocamento pelo texto nos seus
sentidos. Por exemplo, seus personagens apresentados eventualmente não têm
nomes, sendo identificados por letras maiúsculas.
Em outros casos, há nomes, mas a
psiquê que lhes envolvem é complexa e aberta, pois convém lhes preencher passo
a passo, palavra a palavra. A voz narradora de muitas obras são esses
personagens, a contar a história na sua versão. Contam sobre a sua vida,
normalmente estabilizada, mas que entra em crise com o advento de alguma dúvida
sobre sua subjetividade, história de vida ou situação atual – o que gera uma
intensa reviravolta que, normalmente, estimulam as narrativas do autor como
mote.
Nesse filão de obras se encontra o
paradoxo mais vibrante: quanto mais se busca (seja ideal, sonho ou memória),
menos se acha. Em SFOS, por exemplo, a solidão parece resultar de uma
incompletude do protagonista, Hajime, que nunca soube lidar com a ausência de
Shimamoto, amiga dos tempos escolares que se converteu em uma paixão. O desenrolar da narrativa apresenta uma consumação
parcial deste amor, visto que apesar de ter havido uma intensa conexão – que
culmina no ato sexual –, Shimamoto desaparece sem nenhuma explicação explícita.
Aliás, a narrativa demonstra esse “sumiço” como uma espécie de deslocamento
constante, talvez a figurar a instabilidade do pertencimento dessas figuras que
são, como dizíamos, veículos para acessar uma visão de mundo.
O próprio autor forneceu pistas para compreender os
conceitos subjacentes às suas obras. Quando entrevistado pelo jornalista Ben
Naparstek, Murakami esboçou (sem assumir explicitamente) vinculações subjetivas
de seu projeto literário, no que diz respeito ao papel da perda, do suicídio e
do sumiço na construção de seus enredos:
“Muitos amigos meus se suicidaram, então há vários
espaços vazios em minha mente. Acredito ser minha responsabilidade olhar para
eles. A vida é um conflito com muitos obstáculos. Às vezes, você só quer
escapar deste mundo. Quando você se suicida, não tem mais que se preocupar com
nada. Você não envelhece. Você não sente mais dor. Às vezes é muito tentador.”
(NAPARSTEK, 2010, p. 107)
Obviamente, as percepções que possamos elaborar acerca
de nossas vidas consistem numa amarração engajada de fatos e momentos que são a
“ponta do iceberg”, pois somos atravessados pelas exigências temporais e
situacionais no ato de elaborarmos a nossa própria trajetória. Nisto consiste
uma ilusão biográfica, porque entra em cena o desejo de concatenar e organizar
logicamente, corretamente e afirmativamente a própria história, a despeito do
que nela seja ocasional, inédito, imprevisto e não elogioso.
Assim, a declaração fornecida nesta entrevista
(realizada entre 2009 e 2010) não nos serve para encontrar a verdade ou a
moral da história murakamiana. Todavia, serve para um adensamento de seus
elementos. Ou seja: as pretensões do autor podem ser sinuosas o suficiente
para, no limite, significarem uma metanarrativa de si e seu trabalho, por isso
convém entender os conceitos presentes. E no caso da fala em destaque, nota-se
que há uma reflexão sobre o significado do suicídio como sumiço, algo bastante
presente no conjunto das obras de Murakami – e no Japão contemporâneo.
Em uma outra entrevista, fornecida ao escritor
americano Sean Wilsey, o escritor assume mais explicitamente uma interpretação
do mundo: “E nações são sistemas violentos por definição. Eu sinto que
pode ser perigoso tentar explicar culturas inteiras através de neologismos”
(VIDA, 2010, p. 161). Ora, se tomamos a palavra do autor pelo que ela significa
e não somente pelo que se disse, dessa resposta, em particular, extrai-se a sua
consciência (presente na conformação de uma retórica murakamiana) sobre a violência
ser sistema e sistemática. Todos os seus personagens mostram-se como seres
profundamente fraturados e oprimidos por essa violência, que, na verdade os
condiciona a uma postura defensora do tatemae (建前), “fachada”, silente ao mundo que lhes cerca.
A fachada está no exercício de se viver o fluxo
esperado de ordem e decência, traduzíveis por estabilidade profissional,
realização, sucesso e crescimento saudável. A maioria de seus personagens são
homens e mulheres que seguem a vida gozando de alguma estabilidade profissional
e emocional. Contudo, suas narrativas geralmente se iniciam exatamente nessa
fraqueza de heroísmo, quando a tatemae é questionada. As carreiras passam a não
ser suficientes, questões passadas voltam para assolar a paz e dúvidas que inauguram
longas jornadas de autodescobrimento são a matriz da mudança dos protagonistas
e seus núcleos.
A partir desses sujeitos eventualmente em crise, as
narrativas começam de fato. Hajime, protagonista de SFOS, Rato, célebre
personagem da série de livros apelidada de “trilogia do rato” (Ouça a canção
do vento, Pinball 1973 e Caçando Carneiros), Tsukuru Tazaki e
os demais seguem essa fórmula – todos refletem o sujeito face aos problemas de
sua própria consciência, que está em crise diante de um mundo que lhes exige o
abandono de sua individualidade e desejos em prol de uma existência positiva e
conformada. Diante disso, resta uma percepção: assim como Hajime, que nos
figura, estamos na fronteira.
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Referências biográficas
Mateus Nascimento é doutorando em História Social pelo
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, com
bolsa de pesquisa do CNPq. Integra os
seguinte laboratórios e coletivos: Observatório do Tempo Presente (OTP);
MidiÁsia - Grupo de Pesquisa em Mídia e Cultura Asiática Contemporânea; e o
Centro de Estudos Asiáticos da UFF. E-mail: mateus_nascimnento@id.uff.br
Olá, Mateus!
ResponderExcluirMuito obrigado pela oportunidade de ler seu texto. Alias, que belo título!
Não tenho muita familiaridade com a obra de Murakami e a forma como você apresenta as questões possíveis de serem percebidas nela me deixou bastante interessado. Enquanto lia seu texto, me surgiu uma questão que gostaria de colocar e ouvir um pouco o que você tem a dizer sobre, caso ache pertinente.
Essa noção diferencial de presença, essa posição fronteiriça no texto do autor me fez lembrar muito de um crítico e poeta japonês chamado Ishikawa Takuboku. Ishikawa fala de uma "poesia para se comer" que deve ser profundamente ligada ao aqui e o agora, mas sem que isso signifique renegar o que já foi ou o que pode ser. Nisso, a poesia milenar japonesa tem seu mérito, mas a poesia de hoje é a poesia de hoje, e a de amanhã é, naturalmente, a de amanhã e deve ser fiel somente ao que o amanhã tem a oferecer. Nesse sentido, o importante para o autor é estar sempre nessa fronteira. Mas "estar" na fronteira não é somente viver nela, mas se aperceber dessa condição e, junto dela, cosntruir o que nascer do encontro. Numa tirada espirituosa, o autor afirma que: "O poeta necessita ter 3 qualificações. Ele precisa, em primeiro lugar, ser uma ‘pessoa’. Segundamente, ser uma ‘pessoa’. E, em terceiro, ser uma ‘pessoa’. Assim, ele deve ser uma pessoa que possui tudo aquilo que uma pessoa normal também possui". Ishikawa me abriu um leque de possibilidades para pensar a cosntrução epistêmica japonesa que se quer dissidente. Nesse movimento que o interesse possibilitou, li algumas coisas que interligam essa percepção "contemporânea", no sentido que Agamben dá ao termo, a uma elaboração mais crítica de uma noção mais complexificada do que seria o indivíduo moderno propriamente dito. Isto é, há, em argumentações do tipo, uma quebra da polaridade entre um princípio apolíneo (razão) e um dionísico (sensação) que possibilitaria a percepção do eu não mais enquanto sujeito preferencialmente racional, mas enquanto um contínuo instável entre um polo e outro, contrariando os preceitos humanistas-positivistas que deram na formação de uma episteme eurocêntrica com que a europa exportou-se para o mundo. Peço desculpas pela longa introdução, mas a questão que gostaria de colocar é a seguinte: você percebe em Murakami e sua obra algum contínuo que ligue esse posicionamento crítico às elaborações críticas que o precedeu? Não penso só em solo japonês, mas realmente em uma posição de fronteira. Digo, estando na fronteira desse mundo que se quer globalizado, na fronteira desse pos-modernismo que você apresentou, você percebe em Murakami algo que remeta a alguma construção que pareça querer ser (re)cosntruída a partir de sua obra?
Volto a agradecer pelo texto e espero que mais momentos de troca como esse aconteçam daqui em diante! Um abraço, meu caro!
Peço licença para um comentário desnecessário: Zeca Pagodinho tocava na minha cabeça enquanto lia seu texto. "Deixa a vida me levar, vida leva eu" é, talvez, construção epistêmica poderosas e que interligue, no limite, posições igulamente fronteiriças e contemporâneas.
Felipe Chaves Gonçalves Pinto
Felipe, querido, que experiência legal ver suas ponderações. Pois é, eu tinha, no ICBJ, um livro do Ishikawa, mas nunca percebi nele algo tão profundo. Depois me recomende esses textos dele para ler! Agora, sobre a episteme e sua conexão com o pensamento murakamiano. Pois é... Murakami escreve tanto quanto se manifesta no mundo contemporâneo: por meio de uma elipse que eventualmente é confusa. Acredito que o livro, na verdade, tenha sido algo que ele escreveu com ele mesmo, com vários contornos de sua personalidade, mas que rendeu uma leitura do mundo contemporâneo como esse esfacelamento do sujeito. Tanto que eu mesmo tenho uma discordância quando leio: acho que o sujeito pós-moderno é muito mais potente na pós-modernidade do que em outros períodos da história humana, justamente porque consegue retirar "poder" dessa narrativização de si. Acredito que esse livro, originalmente dos anos 90 traga consigo um Murakami inaugural e que vai se desenvolvendo no caminho de uma mescla curiosa entre cultura japonesa (e as percepções de tempo e espaço no contexto nipônico) e globalização (quando o sujeito começa a romper as limitações tradicionais da modernidade). Nesse sentido, vejo nele enquanto autor um projeto mais original. No texto fiz uma invocação de Tanizaki, que me parece o maior leitor do contínuo japonês frente ás transformações do 19, para demonstrar como Murakami se desvincula de um eixo literário nacional muito preocupado com a narrativa do ser japonês; penso que Murakami faça uso de um elemento anterior, os protagonistas sem nome, mas não como vinculação. Assim, penso que ele não busca vincular-se a essa leitura proposta, acerca do contínuo. Acho interessante lançar também a percepção (inacabada) de que Murakami não se vê numa fronteira á luz de suas obras. Ele se vê como alguém que escreve sobre e lança o sujeito em uma fronteira - a existencial, entre o viver sem propósito e o morrer com um -, porque suas obras recuperam e muito a cultura japonesa como elemento estruturante. Mesmo ele nunca evadiu desse pertencimento: criticou os atentados e o próprio Seiji Ozawa foi tema de suas obras. Acho que ele mescla - e esse conceito é crucial na sua obra. Obrigado pela pergunta! Espero que você esteja elegível para o concurso da UERJ. Quando vi a vaga, pensei no quão histórico seria que você pudesse estar na vaga originária da Janete sensei. Desculpe se na resposta eu tangiversei ou digredi.
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