DE UM IMPÉRIO A OUTRO: AS FUGAS DE CATIVOS DE
MACAU PARA A CHINA CONTINENTAL [1720-1722]
No ano
de 1720, cuja data precisa não fora registrada nos arquivos do Senado local,
alguns escravizados que pertenciam a um certo Nicolau Fiume decidiram deixar as
instalações de seu senhor, em Macau, para tentar um recomeço de vida na China
Continental, provavelmente nos arredores de Guangzhou. A fuga, como em outros
casos bem sucedidos de abandono do cativeiro na cidade, passaria desapercebida
pelas autoridades da Câmara se, junto com ela, não ocorresse um evento
agravante: em algum momento do deslocamento fortuito, os cativos anônimos de
Fiume acabaram assassinando um “tanka”, expressão pejorativa que designava
indivíduos que viviam em barcos nas regiões costeiras de Guangdong. A morte de
um homem chinês e, portanto, súdito do imperador, ainda que marginalizado pela
sociedade local, causou grande insatisfação na burocracia de Cantão. Através de
memorandos e documentos conhecidos como “chapas”, os mandarins da província
começaram a pressionar o Senado de Macau pela entrega dos cativos ou, na falta
deles, de seu amo e responsável. A pressão dos funcionários levou os
portugueses a deliberar sobre o ocorrido e a encontrar uma solução comum para o
problema, situação que gerou as atas que permitiram a sobrevivência desse
notável registro de um ato de resistência ao cativeiro na cidade [Arquivos de
Macau, 1964, p. 336].
Todavia,
para além de revelar elementos da agência escrava em prol da autonomia, os
documentos analisados neste artigo suscitam uma pergunta central ao tema da
soberania em Macau. Dito de outra forma, como a circulação de escravizados
pelas fronteiras com a China continental afetou o relacionamento luso-chinês e
pôs em xeque, eventualmente, a presença dos portugueses no território? Minha
hipótese consiste no argumento de que a busca dos cativos pela liberdade e
outras formas de autodeterminação foram fontes constantes de conflitos,
desentendimentos e negociações entre as autoridades chinesas e o Senado de
Macau. Com base em um debate historiográfico consolidado, é possível afirmar
que em situações de disputa ou pendências entre os mandarins e os portugueses,
estes últimos, devido à fragilidade de sua presença no leste asiático, acabavam
por ceder às vontades dos anfitriões ou a conseguir os seus objetivos através
de práticas ilícitas como o suborno.
Desde
que se instalara definitivamente no delta do Rio das Pérolas, em meados da
década de 1550, a comunidade lusitana de comerciantes privados teve de se
submeter, parcial ou integralmente, à administração chinesa. De acordo com
George Bryan de Souza [1991, p. 49], os estados das dinastias Ming e Qing
empregavam diversos mecanismos de controle em relação aos estrangeiros
assentados em Macau, sendo o principal deles o fornecimento integral dos
gêneros alimentícios à cidade, o que deixava a península em total dependência
do continente. Além disso, seus mercadores estavam autorizados a realizar
apenas duas viagens anuais às feiras de Guangzhou, embora as estadias por lá
durassem meses [Souza, 1991, p 231]. Charles Boxer foi outro historiador que
notou a condição limitada dos portugueses no sul da China. Segundo o autor
[1965, p. 51], para além do pagamento anual do foro de chão às autoridades
locais, os estrangeiros se viam obrigados a arcar como taxas de ancoragem dos
navios que atracavam em seu porto. De 1688 a 1849, a burocracia Qing manteve na
cidade uma alfândega que cuidava da tributação do comércio exterior da
península. Como se essas medidas não fossem suficientes, o território de Macau
ainda estava sob a jurisdição do mandarim da Casa Branca, responsável pela
administração do distrito vizinho de Qianshan.
Diante
do poder institucional do estado chinês, a comunidade mercantil portuguesa se
organizou para contrabalancear as ordens imperiais e ter a chance de exercer
algum controle, ainda que relativo, sobre o território cedido. Para tanto, o
Senado da cidade foi a principal fonte de poder dos estrangeiros na península.
De acordo com Boxer [1965, p. 49], era a Câmara a responsável pela gestão da
parte portuguesa do assentamento, pela coleta de impostos das embarcações dos
moradores e, principalmente, pela negociação e trato como os mandarins de
Guangdong através da figura de seu procurador. Embora a cidade contasse com um
Governador e Capitão Geral, delegado geralmente pela oficialidade do Estado da
Índia, este se limitava ao controle das fortalezas de guerra e das guarnições
em serviço. Nota-se, portanto, que o relacionamento luso-chinês era mediado,
quase em sua totalidade, pelo Senado de Macau. Tal intermediação se dava não
apenas para garantir o fluxo sadio das atividades comerciais entre as partes,
mas também para resolver conflitos e pendências promovidas pela tensa relação
entre os chineses e a comunidade estrangeira na região.
Conforme
observado por George Bryan de Souza [1991, p. 233], uma das fontes constantes
da degradação das relações entre as autoridades Ming e os mercadores
portugueses fora o comércio de escravizados, em especial a venda crianças
chinesas do continente que eram traficadas de forma ilegal até Macau e deste
porto para as redes mais amplas do Oceano Índico, sendo as Filipinas dos
espanhóis um destino recorrente. O fenômeno do tráfico de cativos a partir de
Macau apenas recentemente ganhou a atenção da historiografia lusófona. Conforme
aponta Ivo de Sousa [2010, p. 79], os portugueses se valiam das condições de miséria
e pobreza extrema que afetavam vários grupos sociais do sul da China para
adquirir jovens chinesas, especialmente meninas. Muitas dessas crianças eram vendidas por suas
próprias famílias em situação de necessidade, mas outras eram vítimas de engano
ou sequestro por traficantes locais. Estes, por sua vez, as vendiam
clandestinamente aos portugueses nas ilhas que circundavam Macau ou em locais
ermos nas proximidades de Cantão. Uma vez em posse dos estrangeiros, quando não
eram destinadas à exportação, tais meninas eram utilizadas como escravas,
criadas, esposas e até concubinas de seus senhores, tornando-se uma parte
fundamental do mercado matrimonial da cidade, tendo em vista a ausência de
mulheres europeias no território [Sousa, 2010, p. 83].
Uma característica
marcante do tráfico de escravizados no diverso mundo do Oceano Índico, conforme
ressaltado por Patrícia Souza de Faria [2023, p. 98], reside no fato de que
este comércio era multidirecional. Na prática, isso significa dizer que as
cidades e portos envolvidas nas transações de seres humanos eram tanto
exportadoras quanto importadoras de cativos, o que demonstra a dinamicidade do
mercado e o número de atores envolvidos. Como exemplos, a autora ressalta as
possessões portuguesas no subcontinente indiano que, ao mesmo tempo em que
recebiam escravos vindos da África Oriental, também enviavam para lá, através
de embarcações anuais, algumas “peças” indianas para serem revendidas em
Moçambique. Embora a participação de cada localidade neste comércio seja
desigual quanto às proporções de escravizados que partiam e chegavam de seus
portos, a multidirecionalidade do tráfico contribuiu para a formação de
cativeiros multiétnicos. Segundo Faria [2023, p. 98] “os escravos provenientes
do Índico que foram transportados nas naus da Carreira da Índia provinham de
diversas localidades, que englobavam a costa oriental africana, Índia, Ceilão,
Japão, China, Malaca, Java, Pegu e seus arredores”.
Nesse
contexto, Macau não era exceção à regra. Como entreposto português mais
avançado do leste asiático, de seu porto saíam, todos os anos, navios com
significativos carregamentos humanos que abasteciam as redes do tráfico em
destinos como Goa, Malaca, Manila e, a partir de meados do século XVII, a
Batávia holandesa. Ao mesmo tempo, as naus do comércio oficial da Índia que
aportavam anualmente no sul da China traziam para a revenda alguns escravizados
do subcontinente indiano e da África Oriental, sendo que estes últimos eram
ordinariamente conhecidos como cafres. Todavia, durante todo o século XVIII, o
principal parceiro comercial e fornecedor de cativos em Macau era a colônia
portuguesa do Timor, ilha ao sul do arquipélago indonésio que, além de escravos
(principalmente mulheres), abastecia a cidade de sândalo, madeira muito
valorizada na China por suas propriedades aromáticas [Souza, 2006, p. 187].
No que
toca à postura dos funcionários chineses a respeito do tráfico de escravizados
feito pelos portugueses, a posição era ambígua. Oficialmente, o comércio de
cidadãos chineses era proibido pelas dinastias Ming e Qing, especialmente no
que diz respeito a venda de tais sujeitos para estrangeiros. Contudo, como
demostrou Claude Chevaleyre [2022, p. 167-168], a prática era amplamente
tolerada pelas autoridades provinciais, que viam o comércio de mulheres e
crianças por parte de seus familiares como uma estratégia econômica viável para
garantir a sobrevivência dos envolvidos. No entanto, essas transações deveriam
ser regularizadas por contratos fixos e a pessoa vendida não poderia deixar a
província onde nascera, tampouco evadir as fronteiras do estado chinês. Em
suma, para a burocracia imperial, o problema não era o comércio de seres
humanos, mas o tráfico ilegal em si, atividade em que a comunidade portuguesa
de Macau estava amplamente envolvida.
Conforme
observado anteriormente, o comércio ilegítimo de crianças e mulheres da China
Continental para Macau era uma fonte constante de distúrbios entre os
funcionários Ming/Qing e os estrangeiros da península. Embora não fosse raro
que alguns mandarins estivessem envolvidos, direta ou indiretamente, nas
transações ilícitas de pessoas, tal comércio só foi amplamente tolerado pelas
autoridades sínicas por conta da prática disseminada do suborno e da corrupção
da máquina pública chinesa, tanto pelos traficantes locais como pelos
mercadores portugueses. De acordo com Charles Boxer [1965, p. 52-53], diante
das inúmeras dificuldades e exigências que os mandarins de Cantão impunham à
população de Macau, desde a concessão de licenças para a construção civil até a
resolução de pendências administrativas maiores, era comum que o Senado da
cidade intervisse em prol da sua comunidade através do suborno dos funcionários
chineses. Para tanto, a figura do Procurador desempenhava um papel central, uma
vez que era ele quem acertava os valores da compra do interesse junto aos
mandarins, cabendo ao Senado angariar os recursos para efetuar o pagamento.
Não
obstante, para além do incômodo que o tráfico gerava nos arredores de
Guangzhou, um outro conjunto de problemas a ser resolvido pelas autoridades
sínicas provinha da circulação de cativos dos portugueses pela área,
especialmente quando estes transgrediam as fronteiras de Macau procurando fugir
de seus amos. Como uma das estratégias mais eficazes e recorrentes na luta
contra a dominação senhorial, o abandono do cativeiro pode ser entendido como o
recurso derradeiro do escravo em sua busca por autonomia, uma vez que as
pequenas liberdades que eventualmente desfrutava eram insuficientes aos seus
anseios e os maus tratos sofridos, intoleráveis. Estes episódios revelam a
agência histórica dos cativos em prol de seus interesses e o desafio que
representavam, em algumas ocasiões, à ordem senhorial. Para além disso, as
fugas, sejam elas individuais ou coletivas, são entendidas pela historiografia
como atos de resistência que, por seu turno, geram consequências políticas para
as partes envolvidas.
Foi o
que aconteceu em 16 de março de 1721, em Macau, cujo caso fora apresentado no
início deste artigo. Nesta ocasião, o então vereador do mês, Francisco Xavier
Doutel, convocou os “homens bons” da cidade e demais autoridades à Casa da
Câmara “[...] para lhes fazer presente a caria movida já o ano passado dos
Moços, que fugiram a Nicolau Fiume, aos quais imputaram a morte de um tanca na
água funda” [Arquivos de Macau, 1964, p. 336]. Segundo consta no termo de
assento da reunião, as autoridades chinesas, através de notificações escritas e
do envio de um mandarim à cidade, estavam cobrando da comunidade portuguesa a
entrega dos cativos para que estes fossem julgados criminalmente pela morte do
cidadão chinês nos tribunais de Guangzhou. De acordo com o documento, contudo,
os escravos mencionados ainda estavam desaparecidos, o que sugere que a fuga
foi bem sucedida. Na falta destes, os funcionários chineses solicitavam a
apresentação do seu senhor e responsável, Nicolau Fiume – que esteve presente
na reunião e assinou a ata do dia –, para responder judicialmente pelo crime
ocorrido.
Visando
proteger Fiume do julgamento em Cantão e evitar que o assunto continuasse a ser
pauta de cobrança das autoridades chinesas, o Senado de Macau, através de seu
Procurador, “[...] mandou por via dos Chinas desta Cidade compor a dita caria,
de sorte que não se falasse mais nela, e o fizeram em trezentos taéis com o
Mandarim Taiá de Hiam-xan” [Arquivos de Macau, 1964, p. 336]. Temos, portanto,
o registro oficial de uma prática de suborno, cujo valor a ser pago foi
negociado diretamente com o seu beneficiário, o funcionário do distrito de
Qianshan, também conhecido como Mandarim da Casa Branca. Ainda de acordo com o
documento, quem teve de arcar com a despesa dos trezentos taéis fora o próprio
Senado, “[...] por o dono dos ditos Moços não intervir em nada nesse malefício,
e assim deve ser para todos daqui em diante, todas as vezes que os Amos não
forem culpados nos malefícios de seus escravos. [...]. [Arquivos de Macau,
1964, p. 336].
Apesar
dos esforços do Senado para abafar o caso do assassinato junto às autoridades
chinesas, a quantia gasta para comprar o silêncio dos funcionários de Cantão
parece não ter sido suficiente. Isso porque em 1722, dois anos após a morte do
tanca, continuavam a chegar de Guangzhou chapas e memorandos em Macau, cujo
teor de cobrança era não somente sobre a morte do mencionado chinês em 1720,
mas de uma outra, ocorrida há mais de duas décadas, que teve por cenário o
campo de São Francisco, uma das freguesias de Macau. De acordo com o registro
da ata do dia 31 de março de 1722, o renovado interesse na resolução de tais
crimes pela burocracia chinesa se explica, ao menos em parte, pela troca do
mandarim de Qianshan, tendo em vista que os cargos ocupados pelos funcionários
do estado chinês eram rotativos. O documento ainda revela que os antigos
escravizados de Nicolau Fiume continuavam foragidos. Para resolver esta e
outras pendências como o novo funcionário, o Senado de Macau assentou
conjuntamente que se pagasse uma nova propina ao sobredito, “[...] porém cobrando
dele dito Mandarim quitação, para nunca mais repetir chapas sobre tal matéria”
[Arquivos de Macau, 1964, p. 358]. Dessa
vez, todavia, o preço acordado do suborno não foi registrado.
Analisando
o caso descrito acima, é possível inferir que a circulação de escravizados
pelas fronteiras com o Império Qing poderia ocasionar, para Macau, problemas e
tensões com as autoridades chinesas. No caso estudado brevemente neste artigo,
verificou-se que, mediante uma situação de fuga de cativos dos portugueses para
o continente e o incidente do assassinato de um súdito local por parte dos
escravizados, os funcionários de Cantão passaram a pressionar a administração
portuguesa da cidade a colaborar com as investigações e a auxiliar na resolução
do crime. O não cumprimento, por parte dos estrangeiros, das exigências
oficiais chinesas poderia acarretar em castigos severos para a população de
Macau, como o corte no fornecimento de alimentos à península ou a interdição da
presença de seus mercadores no comércio em Guangzhou. Buscando evitar que
medidas extremas fossem tomadas pela burocracia sínica, o Senado recorreu à
diplomacia e ao pragmatismo político para pôr fim à pendência, utilizando-se da
prática do suborno dos mandarins locais para que estes deixassem de questionar
a Câmara sobre o ocorrido. Tal ação, ao mesmo tempo que denuncia a
corruptibilidade da burocracia Qing no sul da China, demostra o quanto os
portugueses eram dependentes do estado chinês para a própria sobrevivência no
território.
No que
toca aos escravizados de Macau, alheios ou pouco preocupados com o problema da
soberania da cidade, os objetivos de suas ações eram outros. Na busca constante
por melhores condições de vida e níveis mais altos de autodeterminação, tais
cativos não se intimidaram com o espaço estreito da península, com a dupla
vigilância de autoridades portuguesas e chinesas, com as condições limitadas de
fuga ou com os possíveis castigos que poderiam sofrer caso fossem pegos. Para
muitos deles, o desejo de liberdade falou mais alto e motivou o abandono do
cativeiro. Os sonhos e a possibilidade de um recomeço, iniciados no convés de
navios estrangeiros ou nas terras ermas dos mandarins, eram mais dignos do que
a precária vida que levavam sob o jugo de seus senhores.
Referências
Luis
Fernando Masiero é mestrando em História pela Universidade Federal do Paraná.
Tem como projeto de pesquisa a escravidão no Estado da Índia entre os séculos
XVII e XVIII, com ênfase no assentamento português de Macau. A investigação,
amparada nos preceitos teóricos da história global, procura retomar a
circulação de escravizados através de diferentes rotas comerciais espalhadas
pelo Oceano Índico, bem como entender o impacto social e político da presença
de uma comunidade pluriétnica de cativos no sul da China.
Fontes
ARQUIVO
HISTÓRICO DE MACAU. Arquivos de Macau, 3ª s. v. 2, nº 6. Macau: Imprensa
Nacional, 1964.
Bibliografia
BOXER,
Charles R. Portuguese Society in the Tropics: the municipal councils of Goa,
Macao, Bahia, and Luanda (1510-1800). Madison and Milwaukee: The University of
Winsconsin Press, 1965.
CHEVALEYRE,
Claude. Human Trafficking in Late Imperial China. In: ALLEN, Richard B. (ed.) Slavery
and Bonded Labor in Asia, 1290-1900. Leiden-Boston: Brill, 2022.
FARIA,
Patrícia Souza de. Escravos trazidos do Índico: estudos de caso de presenças
efêmeras na América Portuguesa (séculos XVII e XVIII). Revista Territórios
& Fronteiras, Cuiabá, vol. 16, n. 2, jul.-dez., 2023, pp. 94-115.
SOUZA, George
Bryan. A Sobrevivência do Império: os portugueses na China (1630-1754). Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1991.
SOUZA,
Ivo Carneiro de. Cativas e Bichas, Meninas e Moças: a subalternidade social
feminina e a formação do mercado matrimonial de Macau (1590-1725). Campus
Social, 2006-2007, n. 3-4, pp. 173-196.
______.
População e Sistema Demográfico em Macau (Séculos XVI-XVIII). Revista de
Cultura, n. 33, Ed. Internacional, 2010, pp. 75-98.
Desculpe se minhas perguntas soam meio básicas, mas seu texto me causou muitas curiosidades: quem eram esses escravizados? Quero dizer, qual a etnia deles? Eram Han? Porque eu fiquei curioso com o fato de que eles podiam fugir pra China continental sem serem notados. Caso sejam Han como esses escravizados eram capturados? Por último, os portugueses faziam distinção entre escravizados negros e asiáticos numa espécie de hierarquia racial?
ResponderExcluirOlá, Tiago! Obrigado pelas excelentes perguntas, vou respondê-las na ordem e levando em consideração o recorte temporal abordado no artigo:
Excluir1 - Os escravizados de Macau pertenciam a etnias diversas. Em relação às mulheres, elas eram em sua maioria han, mas existiam muitas cativas de Timor Leste, das Filipinas e de Moçambique. Quanto aos homens, a diversidade era ainda maior. Em geral, eles vinham da própria China continental, de Moçambique, dos vários portos do subcontinente indiano (canarins, bengalas, entre outros), da Cochinchina, do Timor Leste, de Macassar e outros locais do sudeste asiático.
2 - Os cativos han, especialmente crianças e mulheres, eram obtidos através dos traficantes locais que raptavam ou sequestravam suas vítimas no interior da China e as revendiam aos portugueses de Macau, muitas vezes empregando estratégias de suborno para evitar serem capturados pelas autoridades Ming/Qing. A venda de crianças e meninas por parte das famílias necessitadas de Guangzhou também era muito comum na época.
3 - Sim, havia distinção, especialmente entre as mulheres. As cativas chinesas eram as escolhidas para o casamento com os portugueses, devido à falta de mulheres europeias em Macau. Também eram muito requisitadas como concubinas. Mulheres negras e timorenses também poderiam se tornar concubinas. O mais comum, todavia, era a sua utilização como criadas domésticas, amas de leite e cativas.
Espero ter respondido de forma adequada às suas dúvidas. Abraços!
Caro Luís,
ResponderExcluirMeus cumprimentos pela sua pesquisa! É uma temática incrível, que, ainda que tenha encontrado alguma fortuna na historiografia, ainda carece de mais estudos. E ela parece estar avançando bastante!
Tenho algumas questões:
1. A fuga dos escravos era certamente muito comum em todo Império Português, e na Ásia não era diferente. Mas a situação de Macau é, como você aponta, singular. Mas é possível estabelecer alguns paralelos com outras posses na asiáticas, como era o caso da fuga da Costa da Pescaria para a Costa do Coromandel, na península índica? Essas fugas se faziam mais ou menos difíceis pela fiscalização dupla do Senado e das autoridades mandarins?
2. A presença de outras potências europeias (como os ingleses e os neerlandeses) afetaram o tráfico de escravizados dos portugueses, ou mesmo a fuga desses cativos? (No sentido de facilitar, acobertar ou dificultar)?
3. Qual era a posição dos padres em Macau quanto à questão? Sabemos que eles sempre ainda tinham uma influência considerável no período, e que a questão do cativeiro (em especial dos nativos da terra) era muito relevante para os jesuítas, por exemplo, na América Portuguesa.
4. Há registro em alguma ata que aponte a recaptura desses cativos (sejam africanos ou chineses) e o que aconteceu com eles? E como as autoridades mandarins lidaram com essa questão?
Muito obrigado!
Cláudio César Foltran Ulbrich
Olá, Cláudio! Bom revê-lo por aqui! Muito obrigado pelas excelentes perguntas, tentarei respondê-las na ordem.
Excluir1 - Acredito que sim. De modo geral, as fugas em muitas das cidades fortificadas do Estado da Índia eram dificultadas pela estreiteza do território, pela existência de muros o redor do perímetro urbano, pela vigilância de soldados portugueses e, no caso da China, de mandarins na fronteira terrestre entre a Macau e o Continente. Por conta disso, as fugas aconteciam geralmente por mar, em embarcações chinesas ou de outras bandeiras europeias, ou ainda em Cantão, quando os cativos aproveitavam a estadia na cidade para abandonar seus donos e sumir pelas inúmeras vielas da cidade.
2 - Sim, especialmente em relação às fugas. A partir de 1750, é possível encontrar, nas atas do Senado de Macau, vários episódios em que os escravizados se valem das embarcações inglesas para empreender a sua fuga. Havia, inclusive, situações em que os ingleses recrutavam escravos de Macau para trabalharem como marinheiros em seus barcos, pagando salários pelos serviços prestados e, claro, oferecendo uma oportunidade única de fuga para esses cativos.
3 - Em Macau, a posição dos padres sobre a escravidão era ambígua. Embora houvesse esforços de conversão da população chinesa local, os religiosos que atuavam na cidade também eram proprietários de cativos. A questão que incomodava os padres era, de fato, o cativeiro de mulheres e as relações de concubinato que daí se seguiam, mas eram queixas pontuais e que não afetaram o tráfico e a existência de cativos na península até, pelo menos, o fim do século XVIII.
4 - Sim, há uma fonte muito interessante do ano de 1701 em que um mandarim de um distrito próximo a Cantão fez a captura de 16 cativos fugidos de Macau. Nessa ocasião, a autoridade chinesa contatou o Senado local para realizar a devolução dos escravizados aos seus respectivos donos, cobrando destes uma quantia total de 220 patacas pela entrega dos ditos moços. Não sei se este caso é representativo dos demais, mas pelas fontes que conheço, o procedimento padrão dos mandarins é optar pela devolução dos cativos capturados em fuga aos seus donos. A cobrança de uma propina pelo feito também era muito comum.
Espero ter sanado as suas dúvidas. Abraços e nos vemos em breve!
Olá, Cláudio! Bom revê-lo por aqui! Muito obrigado pelas excelentes perguntas, tentarei respondê-las na ordem.
ResponderExcluir1 - Acredito que sim. De modo geral, as fugas em muitas das cidades fortificadas do Estado da Índia eram dificultadas pela estreiteza do território, pela existência de muros o redor do perímetro urbano, pela vigilância de soldados portugueses e, no caso da China, de mandarins na fronteira terrestre entre a Macau e o Continente. Por conta disso, as fugas aconteciam geralmente por mar, em embarcações chinesas ou de outras bandeiras europeias, ou ainda em Cantão, quando os cativos aproveitavam a estadia na cidade para abandonar seus donos e sumir pelas inúmeras vielas da cidade.
2 - Sim, especialmente em relação às fugas. A partir de 1750, é possível encontrar, nas atas do Senado de Macau, vários episódios em que os escravizados se valem das embarcações inglesas para empreender a sua fuga. Havia, inclusive, situações em que os ingleses recrutavam escravos de Macau para trabalharem como marinheiros em seus barcos, pagando salários pelos serviços prestados e, claro, oferecendo uma oportunidade única de fuga para esses cativos.
3 - Em Macau, a posição dos padres sobre a escravidão era ambígua. Embora houvesse esforços de conversão da população chinesa local, os religiosos que atuavam na cidade também eram proprietários de cativos. A questão que incomodava os padres era, de fato, o cativeiro de mulheres e as relações de concubinato que daí se seguiam, mas eram queixas pontuais e que não afetaram o tráfico e a existência de cativos na península até, pelo menos, o fim do século XVIII.
4 - Sim, há uma fonte muito interessante do ano de 1701 em que um mandarim de um distrito próximo a Cantão fez a captura de 16 cativos fugidos de Macau. Nessa ocasião, a autoridade chinesa contatou o Senado local para realizar a devolução dos escravizados aos seus respectivos donos, cobrando destes uma quantia total de 220 patacas pela entrega dos ditos moços. Não sei se este caso é representativo dos demais, mas pelas fontes que conheço, o procedimento padrão dos mandarins é optar pela devolução dos cativos capturados em fuga aos seus donos. A cobrança de uma propina pelo feito também era muito comum.
Espero ter sanado as suas dúvidas. Abraços e nos vemos em breve!