A MEMÓRIA EM GEN PÉS DESCALÇOS: O NASCIMENTO DE GEN, O
TRIGO VERDE (2011)
Ao pensar o lugar da memória e da narrativa
na história, o século XX, em contraposição ao século XIX, fez surgir e
desenvolveu novas abordagens/ perspectivas do fazer história, isto é, a
construção ocidental da história como uma disciplina objetivista/historicista
do século XIX se viu desafiada por novos campos de estudos como história
cultural, história social, história ambiental etc. Partindo deste pressuposto,
ao pensar a história contemporânea do Japão, principalmente a partir da segunda
metade do século XX, é possível visualizar a construção identitária do Japão no
imaginário mundial em uma relação direta/indissociável com a produção cultural
midiática do arquipélago - isto é, para o estudo do contexto nipônico na
contemporaneidade se percebe a necessidade da utilização dessas novas perspectivas
históricas. Entretanto, essa percepção atrativa do Japão, grosso modo, não foi
uma construção “orgânica”, houve um processo de transformação da cultura
japonesa em commodity [Ogoura, 2012].
Nesse sentido, o conceito cool japan [
Gen Pés Descalços e a Memória
Nakazawa Keiji (1939-2012), como
dito anteriormente, foi um importante mangaká
do pós-guerra japonês, suas obras tratam de assuntos que abordam desde a
militarização/expansão do Japão Imperial durante a primeira metade do século XX
até a conscientização dos males da guerra – o aprofundamento de uma mentalidade
imperialista/supremacista nipocêntrica – e as repercussões das bombas atômicas
na vida dos civis das cidades de Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945. Como mangaká, Nakazawa aborda em suas obras
temáticas que se relacionam,
principalmente, com sua experiência como hibakusha
– sobrevivente da bomba atômica - quando ele tinha seis anos de idade.
Em sua obra mais famosa, Gen Pés
Descalços [
Para Márcio Seligmann-Silva [2005, p.82] “o trabalho de luto das catástrofes do
século XX deu uma nova dimensão ao trabalho da história, na mesma medida em que
despertou novamente o interesse pela memória, em oposição ao modelo
historicista da historiografia”. Com esse novo despertar de interesse da
história pela memória, em uma conjuntura que, como dito anteriormente, deu o
pontapé inicial para o boom da
cultura popular japonesa globalmente [representado no século XXI com o cool japan], as questões norteadoras
deste trabalho são: como se dá a relação entre o mangá e a memória? E, nesse
caso em específico, como se dá a escrita da história no mangá a partir da
memória traumática de um sobrevivente?
Na historiografia, o debate acerca
da literatura de testemunho é um campo cheio de tensões, pois, apesar de ter
ocorrido uma “revolução culturalista” no século XX, as discussões sobre as
factualidades do testemunho/da memória ainda pode ser caracterizada como um
campo a ser desbravado. Nesse sentido, ao pensarmos que o trauma é caracterizado
por ser uma memória de um passado que não passa, entendemos que “o narrador
testemunhal pode ser examinado como um narrador em confronto com um senso de
ameaça constante por parte da realidade” [Ginzburg, 2015].
Recuperando o que foi supracitado,
há uma contraposição entre o viés historicista e a memória na história. Então,
ao colocar a memória como o eixo central desta pesquisa, é necessário
compreender que a memória é mutável e que varia de acordo com as experiências
individuais dos sujeitos. Portanto, ao pensar a relação mangá e memória,
entende-se que não há uma visão única sobre um acontecimento e que o mangá como uma mídia de ampla
circulação tem um papel significativo na criação, reprodução e disseminação de
memória histórica. De acordo com o pesquisador Otmazgin, a relação memória x
mangá pode ser compreendida a partir do:
“Termo “memória banal” [que]
refere-se ao que é ordinário, comum e práticas contínuas pelas quais uma
variedade de memórias são criadas, propagadas e reproduzidas. A palavra “banal”
refere-se, portanto, ao cotidiano e, por isso, muitas vezes são atividades que
as pessoas realizam no decorrer de suas vidas sem ao menos perceber. Refere-se
explicitamente à dinâmica despercebida do envolvimento de agentes sociais que
produzem e reproduzem lembranças. Práticas de memória banal tocam campos tão
diversos como o lazer, a cultura material, o consumo, a arquitetura ou a
cultura popular (música, eventos, esportes
etc.). Muitas atividades relacionadas a esses campos são eficazes precisamente
por causa de sua repetição constante e natureza quase subliminar que permeia
profundamente vidas cotidianas” [Otmazgin, 2016, p.12, tradução nossa].
Ao seguir essa linha de
raciocínio, a obra de Nakazawa se enquadra nessa conceitualização de memória
banal, pois, no primeiro volume de Gen [o nascimento de Gen, o trigo verde] o
autor narra o cotidiano dos Nakaoka, família de Gen, nos meses que antecedem a
catástrofe em Hiroshima. Ao acompanhar as relações dessa família – tanto
intrafamiliares quanto interpessoais num contexto mais amplo – o primeiro
volume se constitui como uma obra disseminadora de um discurso/memória não
oficial da experiência da guerra no Japão. Apesar de não ser um discurso
oficial, de acordo com Akiko Hashimoto, essa narrativa se enquadra nos
discursos traumáticos que surgem no Japão do pós-guerra. Para ela, a
experiência da derrota do Japão na segunda guerra mundial faz surgir no
contexto do pós-guerra uma desordem na representação da nação e da
meta-história da nação, resultando no surgimento de discursos distintos sobre a experiência [traumática] da guerra.
Isso ocorre, pois as:
“memórias não são fixas ou
imutáveis, mas sim representações da realidade que é construída subjetivamente
para se encaixar no presente. O problema do controle sobre a memória está
enraizado no conflito e interações entre valores sociais, políticos e
interesses culturais nas condições específicas atuais. [...] No processo, a memória do evento [guerra]
torna-se culturalmente relevante, lembrada como experiência coletiva extremamente problemática e prejudicial,
incorporada [...] como parte da identidade coletiva” [Hashimoto, 2015, p.4,
tradução nossa].
Partindo dessa noção de memória
traumática mais ampla, isto é, o trauma cultural proposto por Hashimoto, ao
pensar a relação mangá, memória, trauma e narrativa, que podem ser considerados
os eixos centrais desta análise, pode-se estabelecer que o primeiro volume de
Gen, tem como propósito mostrar o trauma do mangaká, não limitando-se ao trauma
experienciado ao sobreviver a explosão da bomba atômica, mas sim o trauma da
guerra como um todo - já que o ultranacionalismo durante a primeira metade do
século XX fez com que a família “pacifista” do protagonista sofresse
cotidianamente antes da catástrofe da bomba.
Referências
Larissa Gabrieli Fonseca é graduanda em
História - Licenciatura pela Universidade Federal do Paraná [UFPR]. Atualmente
é bolsista do Programa de Educação Tutorial de História [PET História UFPR]. É
integrante dos seguintes grupos: 1) Grupo de Estudos Africanos e Asiáticos
[GEAFRAS/UFPR]; 2) Núcleo de Estudos Japoneses [NEJAP/UFSC]; e 3) Núcleo de
Estudos Mediterrânicos [NEMED/UFPR], no qual realiza, de forma voluntária,
pesquisa de iniciação científica sob orientação do Prof. Dr. Otávio Luiz Vieira
Pinto.
GINZBURG, J. Linguagem e trauma na
escrita do testemunho. Revista Conexão
Letras, [S. l.], v. 3, n. 3,
2015. DOI: 10.22456/2594-8962.55604. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/conexaoletras/article/view/55604. Acesso em: 08 out. 2024.
HASHIMOTO, A. The long defeat: cultural trauma, memory, and identity in Japan.
Oxford, 2015.
HOBSBAWN, E. Era dos Extremos: o breve século XX
(1912-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
NAKAZAWA, Keiji. Gen Pés Descalços: o nascimento de Gen, o
trigo verde. Tradução Drik Sada. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2011.
OGOURA, Kazuo. From Ikebana to
Manga And Beyond: Japan’s Cultural and Public Diplomacy Is Evolving. Global
Asia: A Journal of The East Asia
Foundation, v.7, n.3, 2012.
OTMAZGIN, N. Introduction: Manga
as “banal memory” In: Otmazgin, N., Suter, R. Rewriting History in Manga. New
York: Palgrave Macmillan, 2016, p. 01-25
SELIGMANN-SILVA, Marcio.
Testemunho e a política da memória: o tempo depois das catástrofes. Projeto História: Revista do Programa de
Estudos Pós-Graduados de História, [S.
l.], v. 30, n. 1, 2005. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/2255. Acesso em: 11 out. 2024.
STRASSBURGER, G. F. Cool Japan ou ‘Cold Japan’? Uma análise da estratégia e retornos do uso
da cultura popular como mecanismo de soft power. Trabalho de Conclusão de
Curso - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro Socioeconômico,
Graduação em Relações Internacionais, Florianópolis, 2024.
Oi Larissa!
ResponderExcluirParabéns pela comunicação! Adorei o tema, achei muito interessante a reflexão sobre mangá e memória. Essa semana assisti "Ainda Estou Aqui" e agora lendo teu texto, fiquei refletindo sobre a importância da arte e da mídia para, por um lado, servir como uma forma de preservação da memória, e por outro como um mecanismo de conscientização. A arte sempre teve esse papel político e acho que são dois casos que percebemos claramente. Assim, queria direcionar meu questionamento mais no sentido de: saberia como mangás que não seguem uma linha mais autobiográfica, como é o caso de Gen, podem ser interpretadas dentro da ideia de memória? A eles também se aplicaria a definição de “memória banal”?
Gabriela Foscarini Strassburger
Muito obrigada! Pensando a partir do Otmazgin e da Rebecca Suter, compreendo que o mangá não precisa necessariamente abordar diretamente uma acontecimento histórico para ser considerado um disseminador/preservador de memória, ou seja, mangás que falam sobre um universo fantasioso podem estar perpetuando uma memória/discurso de acontecimentos passados, mesmo sem falar diretamente sobre um acontecimento passado (como o reino de Gyakuza de Ousama Ranking). Por isso, acredito que a abrangência do que pode ou não ser definida como uma mídia de memória banal é muito ampla.
ExcluirOi, Larissa! Parabéns pela pesquisa!
ResponderExcluirNo seu texto, você diz que "Gen Pés Descalços" é a obra mais famosa de Nakazawa. Pensando nisso, fiquei curiosa sobre o teor das outras obras dele. Poderia dizer se elas abordam o mesmo tema de Gen ou se falam sobre outras temáticas?
Muito obrigada! Partindo das obras que conheço do Nakazawa, para além de Gen Pés Descalços, os mangás dele sempre pautam e tem como temática principal a catástrofe da bomba em Hiroshima. Entretanto, as abordagens variam um pouco a cada obra, isto é, na Black Series, publicada em 1968, percebemos que diferentemente da abordagem pacifista de Gen podemos perceber mais explicitamente os sentimentos de raiva dos sobreviventes e as tentativas de “vingança” que esses personagens tentam contra os responsáveis pela destruição e morte de boa parte da população de Hiroshima em 1945.
ExcluirParabéns pela pesquisa!! Eu gostaria de saber como você trabalhou o conceito de literatura de testemunho, originalmente desenvolvido para abordar relatos de sobreviventes do Holocausto, para ser aplicado à categorização do mangá?
ResponderExcluirMuito obrigada! Então, pensando a partir do Ginzburg (2015) que “o estudo do testemunho exige uma concepção da linguagem como campo associado ao trauma. A escrita [no mangá] não é lugar dedicado ao ócio ou ao comportamento lúdico, mas ao contato com o sofrimento e seus fundamentos, por mais que sejam, muitas vezes obscuros e repugnantes. O século XX se estabeleceu como tempo propício para testemunho, em virtude da enorme presença das guerras e dos genocídios. Para o sujeito da enunciação do testemunho, entre o impacto da catástrofe e os recursos expressivos, pode haver um abismo intransponível, de modo que toda formulação pode ser imprecisa ou insuficiente ( p.3). Portanto, apesar da literatura de testemunho surgir e ser ligada principalmente a catastrofe do holocausto, também pode ser entendida como uma forma mais abrangente, ou seja, que pode abarcar outras formas de mídias que tem como propósito narrar um trauma que seria inenarrável de outra maneira. É a partir dessa perspectiva que utilizo o conceito de literatura de testemunho para categorizar o mangá de Nakazawa.
ExcluirLarissa
Boa noite! Parabéns pelo excelente texto! Hadashi no Gen é uma obra muito mais explícita nas memórias e denúncias de um nacionalismo e suas consequências, e talvez o mais conhecido em retratar de forma crua o contexto. Conhecemos também o Túmulo dos Vagalumes, de Isao Takahata que aborda de uma forma mais subjetiva, assim como outros filmes do Studio Ghibli. Minha pergunta é a seguinte: Talvez até pela questão de apagamento das memórias e denúncias ao Japão, há outras obras como as de Nakazawa? E como a sociedade e as lideranças japonesas veem essas obras?
ResponderExcluirDesde já muito obrigada pela resposta e mais uma vez parabéns pelo texto incrível!
Muito obrigada! A pesquisadora Akiko Hashimoto ao pensar a questão do trauma no contexto do pós-guerra estabelece que a experiência da guerra e, principalmente, da derrota do Japão, pode ser considerada o trauma cultural mais significativo na história contemporânea do Japão. Por isso, a partir dessa experiência traumática ela apresenta, a princípio, três tipos de narrativas/memórias que surgem a partir desse acontecimento. Duas das categorias de narrativa/memória categorizadas pela pesquisadora se relacionam diretamente com o discurso que os mangás de Nakazawa promovem, isto é, tem como foco a promoção da empatia, da identificação com as vítimas da derrota, ao mesmo tempo que traz o Japão como perpetrador de violências. A meu ver, essas duas categorias de narrativa caracterizam a obra de Nakazawa. Portanto, partindo da perspectiva de que entendemos que existem outras mídias que pautam/tratam dessa temática. Ao pensar na respostas das lideranças japonesas a esse tipo de obra mais crítica, podemos pensar no mangá de Gen e as disputas que começaram sobre na década passado sobre a “relevância” do mangá nas escolas no Japão, já que a argumentação para a retirada dos mangás (que está acontecendo) é de que o mangá traz uma visão “masoquista” da história do Japão.
ExcluirBoa tarde, Larissa. Adorei o texto, sou muito familiar com a obra e adorei sua abordagem do manga com a memória. Gostaria de perguntar se é familiar com o livro "Corpos da Memória" do Historiador Yoshikuni Igarashi, me parece uma obra que poderia acrescentar bastante com sua pesquisa.
ResponderExcluirDouglas Tacone Pastrello
Muito obrigada! Não conhecia, mas agora vou pesquisar! Agradeço à recomendação.
Excluir