Larissa Gabrieli Fonseca e Otávio Luiz Vieira Pinto

 

A MEMÓRIA EM GEN PÉS DESCALÇOS: O NASCIMENTO DE GEN, O TRIGO VERDE (2011)


Ao pensar o lugar da memória e da narrativa na história, o século XX, em contraposição ao século XIX, fez surgir e desenvolveu novas abordagens/ perspectivas do fazer história, isto é, a construção ocidental da história como uma disciplina objetivista/historicista do século XIX se viu desafiada por novos campos de estudos como história cultural, história social, história ambiental etc. Partindo deste pressuposto, ao pensar a história contemporânea do Japão, principalmente a partir da segunda metade do século XX, é possível visualizar a construção identitária do Japão no imaginário mundial em uma relação direta/indissociável com a produção cultural midiática do arquipélago - isto é, para o estudo do contexto nipônico na contemporaneidade se percebe a necessidade da utilização dessas novas perspectivas históricas. Entretanto, essa percepção atrativa do Japão, grosso modo, não foi uma construção “orgânica”, houve um processo de transformação da cultura japonesa em commodity [Ogoura, 2012].

 

Nesse sentido, o conceito cool japan [クールジャパン Kūru Japan] pode ser entendido como a cooptação da cultura popular japonesa – como mangá e anime – pelo estado japonês a fim de se estabelecer como uma superpotência cultural, bem como um meio de soft power [STRASSBURGER, 2024]. Apesar de ser um termo que se relaciona, principalmente, com o Japão do século XXI, é possível perceber uma diferença entre a disseminação da cultura japonesa antes e depois da segunda guerra mundial. É nesse contexto de pós-guerra que o mangá, como conhecemos atualmente, começa a se desenvolver como uma mídia cultural com ampla circulação dentro do arquipélago. Tezuka Osamu (1928-1989), considerado o pai do mangá contemporâneo, surge nesse contexto, bem como Nakazawa Keiji, autor/mangaká do mangá abordado neste trabalho. 

 

Gen Pés Descalços e a Memória

Nakazawa Keiji (1939-2012), como dito anteriormente, foi um importante mangaká do pós-guerra japonês, suas obras tratam de assuntos que abordam desde a militarização/expansão do Japão Imperial durante a primeira metade do século XX até a conscientização dos males da guerra – o aprofundamento de uma mentalidade imperialista/supremacista nipocêntrica – e as repercussões das bombas atômicas na vida dos civis das cidades de Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945. Como mangaká, Nakazawa aborda em suas obras temáticas que se relacionam, principalmente, com sua experiência como hibakusha – sobrevivente da bomba atômica - quando ele tinha seis anos de idade. 

 

Em sua obra mais famosa, Gen Pés Descalços [はだしのゲン Hadashi no Gen], publicada no Japão entre os anos de 1973-1974, Nakazawa aborda o cotidiano da família Nakaoka, do qual Gen faz parte. Este mangá, publicado no Brasil em dez volumes pela editora Conrad entre os anos de 2011-2016, em conjunto com o mangá de volume único intitulado Ore wa mita [おれは見た] publicado no Japão em 1972, conta muito das vivências de Nakazawa durante e após o término da guerra, bem como a experiência traumática do mangaká ao sobreviver a um dos eventos catastróficos do século XX [Hobsbawm, 1995]. 

 

Para Márcio Seligmann-Silva [2005, p.82] “o trabalho de luto das catástrofes do século XX deu uma nova dimensão ao trabalho da história, na mesma medida em que despertou novamente o interesse pela memória, em oposição ao modelo historicista da historiografia”. Com esse novo despertar de interesse da história pela memória, em uma conjuntura que, como dito anteriormente, deu o pontapé inicial para o boom da cultura popular japonesa globalmente [representado no século XXI com o cool japan], as questões norteadoras deste trabalho são: como se dá a relação entre o mangá e a memória? E, nesse caso em específico, como se dá a escrita da história no mangá a partir da memória traumática de um sobrevivente?

 

Na historiografia, o debate acerca da literatura de testemunho é um campo cheio de tensões, pois, apesar de ter ocorrido uma “revolução culturalista” no século XX, as discussões sobre as factualidades do testemunho/da memória ainda pode ser caracterizada como um campo a ser desbravado. Nesse sentido, ao pensarmos que o trauma é caracterizado por ser uma memória de um passado que não passa, entendemos que “o narrador testemunhal pode ser examinado como um narrador em confronto com um senso de ameaça constante por parte da realidade” [Ginzburg, 2015].

 

Recuperando o que foi supracitado, há uma contraposição entre o viés historicista e a memória na história. Então, ao colocar a memória como o eixo central desta pesquisa, é necessário compreender que a memória é mutável e que varia de acordo com as experiências individuais dos sujeitos. Portanto, ao pensar a relação mangá e memória, entende-se que não há uma visão única sobre um acontecimento e que o mangá como uma mídia de ampla circulação tem um papel significativo na criação, reprodução e disseminação de memória histórica. De acordo com o pesquisador Otmazgin, a relação memória x mangá pode ser compreendida a partir do:

 

“Termo “memória banal” [que] refere-se ao que é ordinário, comum e práticas contínuas pelas quais uma variedade de memórias são criadas, propagadas e reproduzidas. A palavra “banal” refere-se, portanto, ao cotidiano e, por isso, muitas vezes são atividades que as pessoas realizam no decorrer de suas vidas sem ao menos perceber. Refere-se explicitamente à dinâmica despercebida do envolvimento de agentes sociais que produzem e reproduzem lembranças. Práticas de memória banal tocam campos tão diversos como o lazer, a cultura material, o consumo, a arquitetura ou a cultura popular (música, eventos, esportes etc.). Muitas atividades relacionadas a esses campos são eficazes precisamente por causa de sua repetição constante e natureza quase subliminar que permeia profundamente vidas cotidianas” [Otmazgin, 2016, p.12, tradução nossa].

 

Ao seguir essa linha de raciocínio, a obra de Nakazawa se enquadra nessa conceitualização de memória banal, pois, no primeiro volume de Gen [o nascimento de Gen, o trigo verde] o autor narra o cotidiano dos Nakaoka, família de Gen, nos meses que antecedem a catástrofe em Hiroshima. Ao acompanhar as relações dessa família – tanto intrafamiliares quanto interpessoais num contexto mais amplo – o primeiro volume se constitui como uma obra disseminadora de um discurso/memória não oficial da experiência da guerra no Japão. Apesar de não ser um discurso oficial, de acordo com Akiko Hashimoto, essa narrativa se enquadra nos discursos traumáticos que surgem no Japão do pós-guerra. Para ela, a experiência da derrota do Japão na segunda guerra mundial faz surgir no contexto do pós-guerra uma desordem na representação da nação e da meta-história da nação, resultando no surgimento de discursos distintos sobre a experiência [traumática] da guerra. Isso ocorre, pois as: 

 

“memórias não são fixas ou imutáveis, mas sim representações da realidade que é construída subjetivamente para se encaixar no presente. O problema do controle sobre a memória está enraizado no conflito e interações entre valores sociais, políticos e interesses culturais nas condições específicas atuais. [...] No processo, a memória do evento [guerra] torna-se culturalmente relevante, lembrada como experiência coletiva extremamente problemática e prejudicial, incorporada [...] como parte da identidade coletiva” [Hashimoto, 2015, p.4, tradução nossa].

 

Partindo dessa noção de memória traumática mais ampla, isto é, o trauma cultural proposto por Hashimoto, ao pensar a relação mangá, memória, trauma e narrativa, que podem ser considerados os eixos centrais desta análise, pode-se estabelecer que o primeiro volume de Gen, tem como propósito mostrar o trauma do mangaká, não limitando-se ao trauma experienciado ao sobreviver a explosão da bomba atômica, mas sim o trauma da guerra como um todo - já que o ultranacionalismo durante a primeira metade do século XX fez com que a família “pacifista” do protagonista sofresse cotidianamente antes da catástrofe da bomba.

 

Referências

Larissa Gabrieli Fonseca é graduanda em História - Licenciatura pela Universidade Federal do Paraná [UFPR]. Atualmente é bolsista do Programa de Educação Tutorial de História [PET História UFPR]. É integrante dos seguintes grupos: 1) Grupo de Estudos Africanos e Asiáticos [GEAFRAS/UFPR]; 2) Núcleo de Estudos Japoneses [NEJAP/UFSC]; e 3) Núcleo de Estudos Mediterrânicos [NEMED/UFPR], no qual realiza, de forma voluntária, pesquisa de iniciação científica sob orientação do Prof. Dr. Otávio Luiz Vieira Pinto.

 

GINZBURG, J. Linguagem e trauma na escrita do testemunho. Revista Conexão Letras, [S. l.], v. 3, n. 3, 2015. DOI: 10.22456/2594-8962.55604. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/conexaoletras/article/view/55604. Acesso em: 08 out. 2024.

 

HASHIMOTO, A. The long defeat: cultural trauma, memory, and identity in Japan. Oxford, 2015.

 

HOBSBAWN, E. Era dos Extremos: o breve século XX (1912-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

 

NAKAZAWA, Keiji. Gen Pés Descalços: o nascimento de Gen, o trigo verde. Tradução Drik Sada. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2011.

 

OGOURA, Kazuo. From Ikebana to Manga And Beyond: Japan’s Cultural and Public Diplomacy Is Evolving. Global Asia: A Journal of The East Asia Foundation, v.7, n.3, 2012.

 

OTMAZGIN, N. Introduction: Manga as “banal memory” In: Otmazgin, N., Suter, R. Rewriting History in Manga. New York: Palgrave Macmillan, 2016, p. 01-25

 

SELIGMANN-SILVA, Marcio. Testemunho e a política da memória: o tempo depois das catástrofes. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, [S. l.], v. 30, n. 1, 2005. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/2255. Acesso em: 11 out. 2024.

 

STRASSBURGER, G. F. Cool Japan ou ‘Cold Japan’? Uma análise da estratégia e retornos do uso da cultura popular como mecanismo de soft power. Trabalho de Conclusão de Curso - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro Socioeconômico, Graduação em Relações Internacionais, Florianópolis, 2024.

 

10 comentários:

  1. Oi Larissa!
    Parabéns pela comunicação! Adorei o tema, achei muito interessante a reflexão sobre mangá e memória. Essa semana assisti "Ainda Estou Aqui" e agora lendo teu texto, fiquei refletindo sobre a importância da arte e da mídia para, por um lado, servir como uma forma de preservação da memória, e por outro como um mecanismo de conscientização. A arte sempre teve esse papel político e acho que são dois casos que percebemos claramente. Assim, queria direcionar meu questionamento mais no sentido de: saberia como mangás que não seguem uma linha mais autobiográfica, como é o caso de Gen, podem ser interpretadas dentro da ideia de memória? A eles também se aplicaria a definição de “memória banal”?
    Gabriela Foscarini Strassburger

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    1. Larissa Gabrieli Fonseca6 de dezembro de 2024 às 15:11

      Muito obrigada! Pensando a partir do Otmazgin e da Rebecca Suter, compreendo que o mangá não precisa necessariamente abordar diretamente uma acontecimento histórico para ser considerado um disseminador/preservador de memória, ou seja, mangás que falam sobre um universo fantasioso podem estar perpetuando uma memória/discurso de acontecimentos passados, mesmo sem falar diretamente sobre um acontecimento passado (como o reino de Gyakuza de Ousama Ranking). Por isso, acredito que a abrangência do que pode ou não ser definida como uma mídia de memória banal é muito ampla.

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  2. Maria Eduarda Siqueira Leite5 de dezembro de 2024 às 19:12

    Oi, Larissa! Parabéns pela pesquisa!
    No seu texto, você diz que "Gen Pés Descalços" é a obra mais famosa de Nakazawa. Pensando nisso, fiquei curiosa sobre o teor das outras obras dele. Poderia dizer se elas abordam o mesmo tema de Gen ou se falam sobre outras temáticas?

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    1. Larissa Gabrieli Fonseca6 de dezembro de 2024 às 14:49

      Muito obrigada! Partindo das obras que conheço do Nakazawa, para além de Gen Pés Descalços, os mangás dele sempre pautam e tem como temática principal a catástrofe da bomba em Hiroshima. Entretanto, as abordagens variam um pouco a cada obra, isto é, na Black Series, publicada em 1968, percebemos que diferentemente da abordagem pacifista de Gen podemos perceber mais explicitamente os sentimentos de raiva dos sobreviventes e as tentativas de “vingança” que esses personagens tentam contra os responsáveis pela destruição e morte de boa parte da população de Hiroshima em 1945.

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  3. Parabéns pela pesquisa!! Eu gostaria de saber como você trabalhou o conceito de literatura de testemunho, originalmente desenvolvido para abordar relatos de sobreviventes do Holocausto, para ser aplicado à categorização do mangá?

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    1. Larissa Gabrieli Fonseca6 de dezembro de 2024 às 14:28

      Muito obrigada! Então, pensando a partir do Ginzburg (2015) que “o estudo do testemunho exige uma concepção da linguagem como campo associado ao trauma. A escrita [no mangá] não é lugar dedicado ao ócio ou ao comportamento lúdico, mas ao contato com o sofrimento e seus fundamentos, por mais que sejam, muitas vezes obscuros e repugnantes. O século XX se estabeleceu como tempo propício para testemunho, em virtude da enorme presença das guerras e dos genocídios. Para o sujeito da enunciação do testemunho, entre o impacto da catástrofe e os recursos expressivos, pode haver um abismo intransponível, de modo que toda formulação pode ser imprecisa ou insuficiente ( p.3). Portanto, apesar da literatura de testemunho surgir e ser ligada principalmente a catastrofe do holocausto, também pode ser entendida como uma forma mais abrangente, ou seja, que pode abarcar outras formas de mídias que tem como propósito narrar um trauma que seria inenarrável de outra maneira. É a partir dessa perspectiva que utilizo o conceito de literatura de testemunho para categorizar o mangá de Nakazawa.
      Larissa

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  4. Boa noite! Parabéns pelo excelente texto! Hadashi no Gen é uma obra muito mais explícita nas memórias e denúncias de um nacionalismo e suas consequências, e talvez o mais conhecido em retratar de forma crua o contexto. Conhecemos também o Túmulo dos Vagalumes, de Isao Takahata que aborda de uma forma mais subjetiva, assim como outros filmes do Studio Ghibli. Minha pergunta é a seguinte: Talvez até pela questão de apagamento das memórias e denúncias ao Japão, há outras obras como as de Nakazawa? E como a sociedade e as lideranças japonesas veem essas obras?
    Desde já muito obrigada pela resposta e mais uma vez parabéns pelo texto incrível!

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    1. Larissa Gabrieli Fonseca6 de dezembro de 2024 às 16:08

      Muito obrigada! A pesquisadora Akiko Hashimoto ao pensar a questão do trauma no contexto do pós-guerra estabelece que a experiência da guerra e, principalmente, da derrota do Japão, pode ser considerada o trauma cultural mais significativo na história contemporânea do Japão. Por isso, a partir dessa experiência traumática ela apresenta, a princípio, três tipos de narrativas/memórias que surgem a partir desse acontecimento. Duas das categorias de narrativa/memória categorizadas pela pesquisadora se relacionam diretamente com o discurso que os mangás de Nakazawa promovem, isto é, tem como foco a promoção da empatia, da identificação com as vítimas da derrota, ao mesmo tempo que traz o Japão como perpetrador de violências. A meu ver, essas duas categorias de narrativa caracterizam a obra de Nakazawa. Portanto, partindo da perspectiva de que entendemos que existem outras mídias que pautam/tratam dessa temática. Ao pensar na respostas das lideranças japonesas a esse tipo de obra mais crítica, podemos pensar no mangá de Gen e as disputas que começaram sobre na década passado sobre a “relevância” do mangá nas escolas no Japão, já que a argumentação para a retirada dos mangás (que está acontecendo) é de que o mangá traz uma visão “masoquista” da história do Japão.

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  5. Boa tarde, Larissa. Adorei o texto, sou muito familiar com a obra e adorei sua abordagem do manga com a memória. Gostaria de perguntar se é familiar com o livro "Corpos da Memória" do Historiador Yoshikuni Igarashi, me parece uma obra que poderia acrescentar bastante com sua pesquisa.

    Douglas Tacone Pastrello

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    1. Larissa Gabrieli Fonseca6 de dezembro de 2024 às 14:53

      Muito obrigada! Não conhecia, mas agora vou pesquisar! Agradeço à recomendação.

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