ÍCONES BIZANTINOS E SEUS LEGADOS HISTÓRICOS: A REPRESENTAÇÃO DE MARIA
ATRAVÉS DE UM PROJETO DE TRANSFORMAÇÃO DO MUNDO SENSÍVEL EM POLÍTICAS DO SÉCULO
XIX
Introdução
O eurocentrismo é um grande desafio
epistemológico a ser superado, inclusive – ou talvez sobretudo – para a
História. James M. Blaut o define enquanto um discurso e, ao mesmo tempo, uma
crença poderosa que o Ocidente teve uma vantagem histórica e geográfica única,
criando um centro e uma periferia. O primeiro inventa e o segundo imita –
processo chamado de “difusionismo” pelo autor [1993].
Ainda que essa visão tenha sido contestada por
vários autores como Anouar Abdel Malek, Samir Amin, Gunder Frank, Dipesh
Chakrabarty, Jack Goody, apenas para citar alguns deles, a consolidação do
capitalismo garantiu a hegemonia dessa ideologia, disseminada para vários
espaços do mundo ocidental. Consequentemente, ao passo que temas de pesquisa
são valorizados, outros, no melhor dos cenários, foram intencionalmente
desvalorizados. O impacto dessas visões, movidas pelo eurocentrismo é
majoritariamente negativo, visto que elas pressupõem hierarquias desfavoráveis
entre seres, espaços e ideias, como mostrou, dentre vários autores, Edward Said
através do conceito de Orientalismo
[Said, 2007]. Soma-se a isso a uma visão de classe: a burguesia europeia –
visto que o eurocentrismo é um dos pilares teóricos das investidas coloniais,
como sublinhou James M. Blaut [1993].
A negligência dos estudos ocidentais sobre o
Império Romano do Oriente – ou Império Bizantino, como definido pelo Ocidente
durante o Renascimento [Mango, 2008, p. 9-10] – é latente e não pode ser
distanciada de projetos que remontam, para Guy Mettan, ao cisma das igrejas
ainda em 1054 [Mettan, 2017]. A consequente desvalorização da sua iconografia é
apenas uma das faces da problemática, cujo impacto não circunscreve apenas a
história do Império Bizantino, como também da Rússia, sua principal herdeira.
Os ícones, por sua vez, importantes elementos
da História do Cristianismo, quase tão antigos quanto o próprio Cristo, são
postos em uma escala de avanço teleológico onde o realismo, desenvolvido
durante o Renascimento, “evolui” tecnicamente a ponto de alcançar o suprassumo
da Arte. Essa falsa equivalência da métrica eurocêntrica oblitera os reais
significados sociais dessas ricas produções materiais, umbilicalmente
imbricadas na História do Império e suas seculares relações.
Portanto, pensar essas imagens com mais
honestidade intelectual, como recomendou Anne Cheng sobre as conflitantes e
preconceituosas visões sobre a China [Cheng, 2008], permite que as vejamos sob
seus próprios termos. Por meio desse esforço, é possível também analisar
intencionalidades sociais, políticas, econômicas e religiosas não apenas
circunscritas ao seu período, mas além dele.
Um Império entre Impérios
Para João Gouveia Monteiro, não levar em
consideração o Império Bizantino durante o período que se convencionou chamar
de Idade Média “é como ver o mundo a preto e branco, de costas voltadas para a
entrada da caverna” [2016, p. 10]. Durante sua duração, 1.123 anos e 18 dias,
construiu-se uma história plural, fruto não apenas das heranças gregas – visto
que foi fundada sobre Megera [Runciman, 1961, p. 6], uma cidade construída por
marinheiros, no ano de 657 AEC – mas também romanas: “os seus habitantes
apelidaram-se romaioi, ou
simplesmente cristãos” [Mango, 2008, p. 9-10]. Pelo menos desde a Guerra do
Peloponeso [431-404 AEC], sua importância tornou-se consenso, tendo em vista
sua posição estratégica sobre a entrada do Mar Negro, onde fortificações foram
garantidas em 321 AEC. Constantinopla, a capital do Império Romano no Oriente,
foi inaugurada por Constantino [272-337 EC] em território que possuía longa
tradição grega e profundas relações com seu entorno. Suas refinadas conexões,
além de suas heranças culturais, permitiram que o Império construísse uma
trajetória particular, ainda que em diálogo com diferentes povos e culturas.
Consequentemente, o Império, e principalmente
a capital, sentia o constante perigo de invasões ou incursões ameaçadoras.
Segundo Colin Wells, Bizâncio e a Pérsia, seu primeiro grande rival,
enfrentaram-se durante séculos: “a fronteira que os separava oscilou para lá e
para cá dentro da margem relativamente estreita que dividia em dois o Crescente
Fértil” [2019, p. 131]. Entretanto, houve a pressão dos povos germânicos e dos
hunos, vindos da Mongólia. Com os Francos e Eslavos a situação desenhou-se de
outra forma: por vias diplomáticas, recurso secularmente preferível às batalhas
campais [Cf. Runciman, 1961; Monteiro, 2016]. Em 651, com a morte de Yazgird
III (624-651) o Império Persa cedeu sua vez aos árabes, que garantiram domínio
sob o Planalto do Irã; enquanto na Europa, os Ávaros deram lugar aos Búlgaros e
aos Eslavos [Monteiro, 2016, p. 209]. O cenário muda novamente com a ascensão
do Império Otomano – entidade política que ganhou força após o enfraquecimento
do sultanato Seljúcida, no fim do século XIII, e que foram responsáveis pela
dissolução do Império Bizantino em 1453, demarcando o fim da Idade Média [Cf.
Kafadar, 1996].
Apesar da estoica resistência às questões
fronteiriças e à terríveis adversidades – tais como calamidades naturais,
invasões e crises internas –, o Império ainda precisou esforçar-se para superar
a dificuldade de “conciliação dos quadros da filosofia antiga e da
racionalidade grega com o dogma trinitário proposto pelo cristianismo”
[Monteiro, 2016, p. 40]. Nesse sentido, o imperador era um basileus, comandante da justiça, do exército e protetor da Igreja.
Seu governo contava com um senado de 300 a 2000 membros. Era aclamado na Hagia Sofia pelo exército e o povo; só
assim poderia vestir o diadema real – ritual de influência persa, principal
referência de poder à época [Runciman, 1961, p. 49-58].
As imagens, nesse cenário, espelhavam parte
desse poder do cerimonial, dando-lhe contexto, ao mesmo tempo em que também
representava o governante: prestava-se as mesmas honras tanto para o imperador
quanto para as suas imagens. A arte era instrumento para a transmissão de poder
[Angold, 2002, p. 54]. Justiniano [482-565], portanto, se preocupou
particularmente com a transformação de Constantinopla em uma capital condizente
com o cristianismo, ao mesmo tempo em que deveria representar a personificação
da majestade.
Ao passo que as imagens imperiais tomavam
forma objetivando um projeto de projeção de força política, outras imagens, os
ícones, alçaram-se concomitantemente enquanto pilar do cristianismo ortodoxo e
reforço ao poder imperial. Ambas as imagens se alimentaram mutuamente,
compartilhando signos e usos. Como exemplo, foram instrumentos de
transcendência e poderiam funcionar como um portal de acesso ao sagrado, no
caso dos ícones, ou representando o imperador em sua ausência, no caso dos
retratos imperiais, emanando a sua presença física.
Os ícones ganharam espaço dentro do Império a
partir do édito de Tessalônica, promulgado por Teodósio I [347-395], em 380 EC.
Segundo Runciman, a fé cristã “tinha um poder de atração muito mais amplo do
que qualquer outra”; ao passo que havia no cristianismo em ascensão, elementos
com os quais aquelas pessoas poderiam se identificar: ele “encorajava o
misticismo, pregava uma escatologia de esperança, era rico de símbolos e tinha
um ritual nobre” [Runciman, 1961, p. 15]. Destaca-se, por exemplo, o impacto
que teve, no século III, o culto de Isis e da Grande Mãe no Ocidente desde os
primeiros contatos de Roma com o Leste [Ibidem, p. 14]. Foram os traços
culturais das antigas religiões, anteriores ao cristinianismo, que ajudaram a
moldá-lo.
O movimento iconoclasta, episódio com mais de
um século de duração – de 727 a 843 – demonstrou como as imagens, em especial
os ícones, estiveram no cerne de questões essenciais para a sobrevivência do
Império em um dos seus maiores momentos de crise. Foi durante a dinastia
heracliana [610-711] que o avanço do islã foi sentido com mais força por Leão
III [675-741], de origem Síria [Cf. Besançon, 1997].
Os ícones bizantinos
Os monges, admiráveis figuras que abdicaram da
vida na cidade para viver em mosteiros e conventos, populares para os
bizantinos, eram responsáveis pela tarefa de construção dos ícones, não sem
antes passarem por um processo de preparo espiritual. Ainda que possuíssem
destaque dentro do Império, inclusive representando um papel benéfico para a
população no sentido de equilíbrio social, Robin Cormack afirma que “os monges,
mais do que qualquer outro grupo, enquadram-se na categoria de subversão
institucionalizada” [1985, p. 118]. Os mosteiros, geralmente, administravam
questões agrícolas, além das doações usuais. Suas propriedades eram, pela lei
imperial e canônica, inalienáveis: cresciam ou mantinham-se intactas e o
direito à propriedade era empossado a vários grupos, podendo ser de origem
imperial, episcopal, privado ou inteiramente dependentes [Mango, 2008, p. 140].
Os concílios ecumênicos representaram outro
pilar que precisa ser levado em consideração para compreender a construção dos
ícones. Para Alberigo Giuseppe, eles foram responsáveis por movimentar os
primeiros séculos de cristianismo, herdando os modelos de sanedrin hebreu e do senado romano enquanto uma dinâmica de
comunhão [Alberico, 1993, p. 11]. Esses grandes encontros, com a finalidade de
formular as profissões de fé e confrontar as correntes heréticas, foram
reunidos por iniciativa imperial e almejavam a coesão e unidade da Igreja.
Tornaram-se parte de um papel político de sustentação do Estado em sua unidade
[Ibidem, p. 21].
No âmbito das imagens, essas discussões
tiveram implicação direta. O arianismo, por exemplo, ao questionar o papel uno
da Trindade e compreendendo Cristo como Filho de Deus, abria margem para a sua
representação. O credo, a partir de Constantinopla I [381], tornou-se novamente
assunto para definir o Espírito Santo também como parte da Trindade, e portanto,
como parte consubstancial da natureza divina. Em Éfeso [431], por sua vez,
preocupou-se com a vertente da interpretação cristã que foi também considerada
herética: o nestorianismo. Nestório [386-451], patriarca de Constantinopla,
compreendia que as naturezas humana e divina em Cristo eram separadas,
diferente de Ário, que entendia em Cristo a predominância da natureza humana
por ser Filho de Deus. Consequentemente, a representação alegórica de Cristo
como um cordeiro, pôde assumir maior ou menor semelhança com Zeus, ganhando
porte físico e barba. Essas duas formas de representação de Cristo podem ser
encontradas em batistérios localizados em Ravena, na Itália. Segundo Runciman,
a percepção mais humana de Cristo tornou-se extremamente antipopular, visto que
“levava a um ataque à amada padroeira de Constantinopla, a Virgem Maria,
ameaçada de perder o título de Mãe de Deus” [1961, p. 90]. Como solução, Maria,
então, neste Concílio, recebeu o título de Mãe de Deus, na medida em que o
nestorianismo tornou-se heresia [Tanner, 2003, p. 41].
No bojo desses projetos, os ícones se
propunham a materializar um importante papel teológico por meio da sua forma,
refletindo uma visão espiritual. Para Titus Burckhardt, eles “encontra[m] sua
expressão, necessariamente, em uma linguagem formal específica”, cujo sistema
valida-se através da tradição que, neste caso, era a perspectiva, profundidade
e sombras greco-romanas [1995, p. 18-19; Grabar, 1968; Mango, 2008]. As cenas
eram construídas de forma a aludir a Criação: plantas, animais e seres humanos,
respectivamente [Quesnel Nieto, 2015]. A perspectiva, em paralelo, põe o ponto
de fuga fora da tela, ao contrário do modelo Renascentista. Essa era uma forma
de representar a realidade transfigurada pelo sobrenatural, integrando espectador
e mensagem que o ícone transmitia [Cf. Floriênski, 2012].
A figura humana, por sua vez, deveria seguir
uma série de processos: “assim como no final da Criação Deus inicia a modelar o
homem a partir do barro, assim o iconográfico começa a aplicar a cor da terra
que servirá de base para a pele” [Soares, 2019, p. 41]. Esse processo é
conhecido como “clarificação progressiva”, partindo das cores mais escuras até
o branco puro: dessa forma, “a claridade parece também emanar do íntimo do ser,
não provém de fora” [Quesnel Nieto, 2015, p. 42]. Os grandes olhos tendem a
alcançar o observador a partir de diferentes ângulos de visão; os lábios são
finos e mantêm-se fechados, “pois a oração do coração é silenciosa” [Soares,
2019, p. 58]; o nariz, longo e fino, dialoga com o mesmo simbolismo atribuído a
boca, buscando-se impedir a entrada dos ares do mundo material [Ibidem, p. 58].
As cores possuem um papel central na
representação, reforçando símbolos e amarrando significados e papeis para
diferentes personagens. O amarelo era um elemento nobre: simbolizava o brilho
máximo, divindade e resplandecência de Deus; o branco era associado à luz na
nova vida, símbolo da vitória sobre a morte e pureza; o preto, ao contrário,
simbolizava as trevas, morte e ausência de luz; o vermelho e o púrpura eram as
cores da energia vital, do amor e do sacrifício; o azul geralmente esteve
atrelado ao céu, o infinito; o verde significava a primavera espiritual, a cor
da vida sobre a terra, a esperança; e o marrom, está associado a humildade
[Soares, 2019, p.62-65; Quesnel Nieto, 2015, p. 52-54].
As imagens de Maria eram protótipos, isto é,
poderiam variar a partir de modelos pré-existentes de representação: “como há
mil e uma maneiras únicas e insubstituíveis de encarnar a verdade, a vida, o
amor, há mil e uma maneiras de representar a Theotokos” [Leloup, 2006, p. 92]. São eles: “a que trona, a que
hora, a que mostra o caminho e a misericordiosa” [Ibidem]. Com base nesses
tipos, até duzentas e trinta variantes foram repertoriadas.
Figuras 1 e 2 - Virgem do tipo Hodigitria e Platytera,
ou Virgem do Sinal, respectivamente. Ambas do século XVII.
Fonte:[https://aperges.gr/en/shop/published-printed-icons/byzantine-icons/byzantine-holy-virgin-mary/virgin-9178/ e Jean-Yves Leloup em O ícone:
uma escola do olhar, p. 100].
A figura 1, do tipo Hodigitria, remonta a história de um milagre. Ao aparecer para dois
homens cegos e guiá-los até o santuário de Hodigitria, restituiu-lhes a visão:
com efeito, tornou-se “aquela que mostra o caminho” e também “aquela que abre
os olhos” [Leloup, 2006, p. 196]. Suas mãos confortam Jesus em uma espécie de
trono. Sua representação, como vimos, conserva um rosto de adulto, visto que
representá-lo em sua forma não divina era uma heresia. Com sua mão direita ele
abençoa em um gesto semelhante ao ícone Pantocrator; seus pés aludem ao caminho
também percorrido por Abraão: “vai em direção a ti mesmo e vai em direção à
terra da qual te mostrarei o caminho” [Ibidem, p. 97]. A figura 2, do tipo Platytera, carrega em si o Emanuel,
representado pela cor verde da esperança, como vimos. Suas mãos, estendidas,
dispensam sua graça [Ibidem].
Ambas as imagens carregam o manto em cor
púrpura, fundo amarelo e a clarificação progressiva, cristalizando sua
representação que, ao mesmo tempo, como defendeu João Damasceno ao longo de
três tratados durante o movimento iconoclasta, as imagens são portais, elementos
transcendentais de conexão com as figuras representadas [Fernandes, 2016; Boy,
2007].
Legado iconográfico
Para além da Rússia, os estudos de Paulo
Tamanini mostram como a tradição de confecção de ícones alcançou as Américas
através de migrações, sobretudo durante as duas Guerras Mundiais,
estabelecendo-se majoritariamente no Sudeste e Sul do Brasil. Os ícones
representaram para esses grupos também elementos de pertencimento religioso e
memória coletiva [Tamanini, 2018]. Todavia, a longa tradição de uso dessas
imagens para além da Igreja garantiu a criação de diversos “campos semânticos”,
como referência a uma expressão utilizada por André Grabar [1968, p. xviii].
A famosa pintura intitulada Redenção de Cam, figura 3, feita pelo
pintor espanhol Modesto Brocos [1852-1936], tem presença marcada nos livros
didáticos brasileiros. Seu título alude ao suposto episódio bíblico onde uma
maldição teria sido lançada por Noé ao seu filho Cam. Sua construção
representa, no auge do eugenismo brasileiro do século XIX e subsequentes
políticas republicanas de encaminhamentos para a mão-de-obra, o desejo das
classes dominantes pelo embranquecimento da população. Nela, portanto,
desenrola-se uma cena, de caráter racista, que associa o processo eugênico de
branqueamento da raça também à vontade divina.
Da esquerda para a direita, vemos uma senhora,
de pele mais retinta, dando graças pelo embranquecimento do filho de sua filha
que, por sua vez, tem a pele ainda mais clara que a dela. Ao fundo, um homem,
provavelmente imigrante europeu, está sentado, olhando em direção a mulher ao
centro e o que seria seu filho com um sorriso no rosto, em sinal de satisfação.
O desconhecimento sobre os significantes dos ícones não permite outras pistas
interpretativas – pistas essas que o estudo sobre eles, a partir de Bizâncio,
pode nos dar.
Fonte:[https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Reden%C3%A7%C3%A3o_de_Cam#/media/Ficheiro:Reden%C3%A7%C3%A3o.jpg]
Ambas as mulheres assumem as representações de
Maria, entretanto, através de dois diferentes tipos de ícones mencionados. A
mulher, ao centro, assume o tipo Hodigitria
[figura 1], enquanto a senhora, à esquerda, o tipo Platytera [figura 2]. A criança, no colo da mulher, ao centro, é
representada assumindo a posição que Cristo assume nos braços da Virgem Maria:
apontando o Caminho da mesma forma que Cristo aponta no ícone, com os dois
dedos erguidos. O caminho, neste caso, é o da Salvação pelo eugenismo. A
Senhora, por sua vez, abençoa a cena tal qual a Virgem do Sinal, que aguarda
com a Esperança, ou o Emanuel, em seu ventre. Na pintura, a associação é clara,
inclusive através da cor de sua blusa: verde. A senhora aguarda, então, com
esperança, o sucesso do projeto. Portanto, temos a articulação de dois ícones
quase que de forma independente, mas que, quando associados ao mencionado contexto
histórico e às intencionalidades da pintura, reforçam o projeto eugênico, cujo
cristianismo dá a sua bênção.
Compreender os ícones bizantinos sem as
limitações impostas pelo eurocentrismo significa não apenas analisar essas
imagens em seu papel histórico e situadas em seu contexto social, como, ao
mesmo tempo, permite que identifiquemos seus impactos em outros esforços
iconográficos. Em ambas as formas, refinados elementos de significação foram
empregados, corroborando com diferentes projetos políticos que não podem deixar
de ser percebidos pelos historiadores.
Referências
Kerolayne Correia de Oliveira é doutoranda
pela Universidade Federal de Pernambuco e desenvolve pesquisas sobre Cultura
Visual e Representações.
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BESANÇON, Alain. A imagem proibida: Uma
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BURCKHARDT, Titus. A arte sagrada no Oriente e
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Teologia y mundo contemporaneo, Universidade Iberoamericana, Ciudad de México,
2015.
Olá, Kerolayne.
ResponderExcluirParabéns pelo seu texto, impecável e interessantíssimo.
Estou com um texto neste evento que corrobora com a sua temática, e tenho interesse pessoal nesse assunto há décadas, por isso ele me chamou a atenção.
Gostaria da sua opinião, sobre o seguinte apontamento que tive enquanto lia seu artigo: será que podemos creditar esse viés de introspecção pessoal (numa pegada filosófica mesmo) que segue até hoje nessas obras e como devem ser sentidas (segundo o viés do rito oriental, que não devem ser apreciadas no sentido físico, mas apreciadas no sentido metafísico) ao fato de que o Rito Bizantino manteve certos traços mais austeros da doutrina cristã se comparado com o Rito Latino (como se costuma chamar o ocidental ou romano), que sofreu uma abertura artística e bebeu muito mais dos artistas renascentistas, que desejavam por vezes inovar? Ou seja, o bizantino foi mais “conservador” nesse processo do que era usado para a manutenção da fé e o latino foi mais “liberal” ao adotar novas tendências artísticas que surgiam.
Espero ter contribuído com o debate.
Muito obrigada.
Talita Seniuk.
Olá, Talita! Que bom conhecer outras pessoas interessadas nesse assunto! É realmente apaixonante. Muito obrigada pela pergunta, embora não tenha certeza se conseguirei responder. Sua pergunta é muito instigante e me faz pensar muitas coisas. Uma delas diz respeito aos papeis sociais e religiosos que essas imagens prestavam em seus respectivos contextos. Acredito que – e isso é o que mais me fascina – as imagens bizantinas eram construídas com finalidades um pouco diferentes das ocidentais. A transformação física das linhas e cores era o que tornava possível a transcendência de sua matéria. Ou seja, tornavam-se portais para o sagrado. Sua construção era um rito em si. Penso que manter essa forma e dar continuidade a seus significados era também garantir a continuidade dessa relação entre a imagem e o acesso ao sagrado. Existem muitos grupos no Facebook (que adoro!) que mostram muitos desses ícones sendo construídos até hoje e, em grande medida, seguindo as mesmas regras de composição. Ao mesmo tempo, ganharam significados sociais de identidade cultural, tornando-se também símbolos de povos cristãos ortodoxos mundo afora. Penso que as representações ocidentais não seguiram esse caminho. Antes do Renascimento eram muito semelhantes às bizantinas, inclusive, conservando estrutura facial (aqueles olhos grandes, narizes estreitos e bocas pequenas), sombras, geometrias… mas depois, como você pontuou, ganhou outras formas mais “realistas”. Acredito que isso também tenha a ver com suas funções sociais que, dentre várias, se preocupou muito mais com uma “pedagogia” dos não letrados, sintetizar grandes narrativas, dentre outras, que não eram preocupações centrais dos ícones bizantinos. Pelo contrário, a idolatria sempre foi um argumento usado contra eles, antes e depois do iconoclasmo. Manter uma relação tão próxima com essas imagens, como os bizantinos fizeram, trouxe alguns problemas com seus vizinhos muçulmanos, por exemplo. Em paralelo, eu tenho a impressão de que uma vez que o Renascimento forjou uma concepção de imagem religiosa para o Ocidente, esta também pouco se modificou. O Jesus ocidental mais disseminado até hoje é o Jesus forjado no Renascimento, crucificado, tortuoso, semi-nu e realista. Para os ortodoxos, existem outros, como o Pantocrator, na Santa Sofia. Até para os protestantes, me parece que a recusa às imagens se assemelha em muitos aspectos aos argumentos iconoclastas. Esses conservam mais a cruz que qualquer outra representação, assim como os iconoclastas o fizeram. Mas, para além disso, há muitos elementos em comum entre os ocidentais e os ortodoxos. Maria é outro exemplo. Tem muitas imagens do tipo Platytera por aí nas duas igrejas! Elas não eram separadas no contexto temporal onde essas imagens foram construídas. Não sei se respondi, mas podemos continuar dialogando. Novamente, muito obrigada!
ExcluirKerolayne Correia de Oliveira
Olá, Kerolayne. Muito obrigada pela sua resposta. Respondeu sim, ao meu questionamento. Quando você fala nas origens dessas obras de arte, lembrei do verbo utilizado para os falantes que utilizam o alfabeto cirílico, como ucranianos (meu interesse), russos e bielo-russos a priori; que não é desenhar ou pintar um ícone, mas “escrevê-lo” (писати); assim como no caso das pêssankas (ovos escritos à mão). O rito greco-católico, predominante entre os descendentes de ucranianos no Brasil também usa ícones, com obras mais próximas dos traços antigos e já têm também alguns com traços mais “modernizados”. Concordo com você sobre a “pedagogia” que esteve presente do lado Ocidental nessa temática religiosa, exemplo os vitrais medievais “biblia idiotae/idiotorum” (não tenho certeza da grafia) que se preocupavam mais em ensinar do que qualquer outra coisa. Os ícones permaneceram com sua essência de contemplação. Sobre ícones atuais, você conhece o Eduardo Mourov? Ele trabalha com ícones, se não me engano, mora em Curitiba. Vale a pena conferir o trabalho dele, caso não conheça.
ExcluirObrigada pela sua resposta.
Espero ter contribuído com o debate e me coloco à disposição para tratar desse assunto, inclusive com parcerias em pesquisas e trabalhos.
Obrigada, Talita Seniuk.
Olá, Talita! Muito obrigada pela partilha! Adorei saber sobre o belo significado de “escrever”. Me lembrou muito a relação entre a arte e a escrita islâmicas. Titus Burckhardt comenta muito sobre isso. É muito tocante. Vou procurar sobre os ovos escritos à mão! Se tiver alguma indicação bibliográfica, ficaria muito feliz e grata. Já estou acompanhando o trabalho do Eduardo Mourov no Instagram. Não conhecia! Gosto muito do trabalho de Valeria Khrystyna. Não sei se conhece! Ela também tem Instagram. Se chama ‘chepp.project’. É ucraniana e faz lindos mosaicos. Meu e-mail é destaarte@gmail.com (para não perdermos o contato após o fim do evento!).
ExcluirMuito obrigada!!!
Kerolayne Correia de Oliveira
Olá, Kerolayne, bom dia! Adorei o texto da comunicação, me deixou reflexivo sobre a persistência de velhos estereótipos e preconceitos que, perdurando na longa duração, opõem um "oriente" "estático" e "despótico" em oposição à um "ocidente" "liberal" e "inovador". Como você bem apontou, os discursos políticos possuem um poder e uma força tamanha, capaz de mascarar os mais diversos projetos políticos. Lembro das interpretações historiográficas de cariz liberal que destacavam o Renascimento como o nascimento do "homem moderno", do "sujeito" e do "indivíduo", que teria sido sufocado pelo "obscurantismo" do catolicismo e da cultura do Barroco, como podemos perceber em José Antonio Maravall. Você acha que esse preconceito com a arte bizantina é um fenômeno mais localizado, que diz respeito especialmente aos ícones? Ou você acha que é possível extrapolar essa dicotomia e hierarquização com demais movimentos culturais, artísticos e intelectuais não-ocidentais, em que os ícones bizantinos seriam um de vários exemplos?
ResponderExcluirAtenciosamente, Arthur Feller Rigaud Cardoso
Olá, Arthur! Muito obrigada pela pergunta. Acredito que você tenha tocado em um ponto fundamental acerca deste assunto, a meu ver. Penso que as imagens são apenas uma face do esforço eurocêntrico que se preocupou – com finalidades políticas, como você bem pontuou – em construir hierarquias entre as representações. É preciso que existam imagens “atrasadas” para que as renascentistas sejam “avançadas”. Penso que o mito do Ocidente mais “evoluído”, além de racista, promove a segregação entre modos de viver, pensar, se relacionar e, inclusive, fazer imagens. Infelizmente, quando alguns propõem para a História uma meta a ser alcançada, neste caso o “liberalismo” e/ou “modernidade”, tudo vira uma teleologia em direção a eles. Então, por causa dessa mitologia preconceituosa, muitas imagens são intencionalmente diminuídas; consideradas menos inventivas, artísticas e valiosas para a História, inclusive aqui nas Américas, mas também em África e Ásia.
ExcluirKerolayne Correia de Oliveira