KIRISHITAN-MONO, UM
SUBGÊNERO DA LITERATURA JAPONESA MODERNA?
É
impossível estudar os movimentos literários do Japão sem se deparar, em algum
momento, com a representação direta ou indireta do cristianismo na sociedade e
na intelectualidade nipônica. São diversos os textos que dialogam com essa
religião associada ao Ocidente, especialmente em dois momentos históricos: i)
entre a segunda metade do século XVI e o início do XVII; e ii) entre os anos
finais do século XIX até o terceiro quartel do XX. Textos que dialogam com o
cristianismo são amplamente chamados de kirishitan-mono, embora possa-se
identificar diferenças nos tipos de textos aos quais este termo se associa ao
longo da história. Este trabalho tem por objetivo, então, traçar considerações
breves sobre a presença desses denominados kirishitan-mono na literatura
japonesa, apontando diferenças que o termo foi assumindo ao longo dos séculos.
Intenciona-se, ainda, refletir até que ponto essas obras podem ser
entendidas como uma espécie de subgênero dentro da literatura japonesa das
primeiras décadas do século XX.
À
guisa de considerações iniciais, vale recordar que o imortal poeta português
Luís de Camões inicia o principal poema épico da língua portuguesa – Os
Lusíadas (1572) – se propondo a cantar “as armas e o barões assinalados”,
bem como “as memórias gloriosas / Daqueles reis que foram dilatando / a Fé e o
Império” (CAMÕES, 1980, p.75). A precedência da palavra “Fé” sobre o “Império”
nos leva a refletir como o projeto expansionista português do século XVI dava
especial importância para a disseminação da fé cristã (católica) nas terras
aportadas. Assim, tanto quanto o estabelecimento de entrepostos comerciais, a
expansão das missões religiosas eram prioridade na política colonial do reino
português do século XVI.
Quando
os lusitanos chegaram – num primeiro momento, provavelmente de maneira
desintencional – à costa japonesa no início da década de 1540, trouxeram
consigo armamentos, produtos e conhecimento científico até então incógnitos no
Japão (BOXER, 1951; SUZUKI, 1987). Poucos anos depois, ainda na mesma década,
na esteira dos navegadores, aportaram também as missões católicas,
introduzindo, assim, o cristianismo em solo japonês (GONOI, 2018).
Embora
as missões jesuítas não fossem compostas exclusivamente por religiosos de
nacionalidade portuguesa, era da coroa lusitana a tarefa de supervisionar todas
as atividades do projeto missionário na Ásia (BOXER, 1951, p. 155). Desta
forma, a presença jesuíta e o cristianismo no Japão estavam diretamente ligados
à atuação da monarquia portuguesa. É interessante notar como a própria
identidade nacional lusitana desta época estava mais ligada a uma identidade
religiosa do que, de fato, geográfica ou territorial. Sobre este ponto, nos
alerta Eduardo Lourenço, um dos principais intelectuais lusitanos do século XX:
Estabelece-
assim o que o historiador lusitano António Manuel Hespanha (1999) chama de
ligação umbilical entre o império português e o projeto missionário jesuíta,
não apenas do ponto de vista de práxis, mas sobretudo sob o prisma
identitário.
Bem,
uma vez que a ordem católica que era a “ponta de lança” das missões religiosas
portuguesas no Japão era a Companhia de Jesus, é preciso chamar a atenção para
o método de propagação de fé utilizado pelos jesuítas. Discorre Hespanha sobre
o assunto:
“(O projecto missionário jesuíta)
tinha múltiplas exigências no campo dos saberes. Necessitava de conhecer as
religiões orientais, de dominar as línguas, de conhecer costumes e
mentalidades, de aprender as particularidades finas da política local, de
conhecer superficialmente o espaço para nele implantar a fina quadrícula da
administração eclesiástica.” (HESPANHA, 1999, p. 19)
Para
tanto, os missionários estabeleceram métodos diversos e, para época,
inovadores, visando tanto o espalhamento de suas ideias pelas terras em que
assomavam quanto para o envio de informações para Roma ou para Lisboa. Segundo
o historiador Pedro Brocco:
“A Companhia de Jesus
apresenta novos mecanismos de expansão da Igreja Católica centrados na
conversão e na propaganda da fé, apoiada na mobilização do imaginário com o uso
do teatro, de imagens sacras capazes de veicular a vida de santos e os
principais pontos da educação cristã e da catequese, bem como da música e da
imprensa, com a escrita sistemática de cartas, relações e informações das
missões, gentes e territórios ao redor do mundo, que eram copiadas e circulavam
entre os diferentes Colégios da Companhia” (BROCCO, 2021, vol. 1, p. 183).
Assim, tendo a imprensa como
instrumento central na política colonialista lusitana/jesuíta, começaram a
surgir textos
de gêneros diversos que abordam direta ou indiretamente assuntos que envolvem a
língua e a cultura do Japão, bem como os “assuntos cristãos” em território
nipônico. Ainda sobre esta questão, Suzuki (1987, p. 115) aponta que os
jesuítas
“Vê(em) a importância de se levar uma máquina impressora para a produção
de obras que pudessem servir de suporte ao trabalho de catequese e propagação do
cristianismo no país, permitindo que tanto os portugueses, quanto os japoneses
aprendessem e assimilassem, reciprocamente, suas línguas”.
A
impressora encomendada pela Companhia de Jesus e instalada em Nagasaki foi
responsável pela reprodução de um “um vasto material
bibliográfico, conhecido no Japão como Kirishitan Mono” (SUZUKI, 1897, p.
115). Desta forma, a partir do que nos explana Suzuki (1987), chegamos a uma
primeira interpretação do que pode ser entendido o termo kirishitan-mono,
que, literalmente, significa “coisas cristãs”, mas que também pode ser
traduzido como “textos cristãos”: nos
séculos XVI e XVII, o termo assumia o sentido de textos que estavam diretamente
ligados à autoria jesuíta em solo japonês que versavam sobre a religião ou
sobre estudos e impressões acerca da língua, usos e costumes japoneses. Em
outras palavras, eram textos jesuítas, por vezes de autoria de convertidos
japoneses, que eram formulados para a prática catequética ou que ajudavam a
fomentar as missões religiosas. Dentre estes figuravam-se principalmente obras
de estudos linguísticos – tratados gramaticais e dicionários – e traduções. É
uma vasta produção que engloba textos como:
“De Institutione Gramatica (1594),
adaptação da gramática latina de Manuel Alvarez para aprendizes japoneses; Dictionarium
Latino-Lusitanicum, ac iaponicum (1595), com modelo no dicionario de
Calepino; Rakuyōshu (1598), um dicionário de ideogramas; Vocabulario
de Lingoa de Iapam (1603), muito rico em anotações sobre as várias
formas de linguagem e de exemplos tirados de provérbios, de textos literários
antigos; traduções de obras cristãs ao japonês como Fides no Doxi (1592),
Guia do Pecador (1599), Contemptus Mundi (1596);
para a difusão de ideias e princípios cristãos, bem como a tradução das fábulas
de Esopo, Isoho Monogatari (1592), em linguagem coloquial da época, para
servir de auxílio no aprendizado do japonês pelos jesuítas; transcrição em
letras romanas e em linguagem coloquial de Heike Monogatari (1593),
obra original do século XII” (SUZUKI, 1987, p. 115), entre outros.
Séculos
mais tarde, entretanto, este termo parece associar-se a um outro tipo de
produção literária. Deve-se recordar que, desde o final do século XVI, as
restrições à circulação da fé cristã e dos trabalhos missionários foram
aumentando. Boxer (1951, p. 147-149), por exemplo, fala de um édito anticristão
que Toyotomi Hideyoshi (1537-1598) baixou em 1587. O historiador inglês entende
que este édito não teve grande impacto nas missões, uma vez que os jesuítas
continuaram a circular pelo Japão até 1614, quando foram definitivamente
proibidos e expulsos (GONOI, 2018, p. 261). Ao longo dos anos 1633-1640, as
fronteiras japonesas foram sendo gradualmente fechadas de modo quase completo
para o comércio exterior, entrando no chamado “período de isolamento nacional”,
em japonês, sakoku jidai (BOXER, 1951, p. 362).
O
Japão volta a abrir seus portos apenas em meados do século XIX, quando os
Estados Unidos impõem o estabelecimento de tratados comerciais desiguais, o que
culminou no fim do período de reclusão e, em 1867, a derrocada do xogunato e do
então chamado período Edo (1600-1867). Sucedeu-se, assim, a Restauração Meiji
que, grosso modo, foi marcada pela reabertura dos portos e do comércio com
diversas nações; pela retomada de circulação de pessoas e ideias vindas do
exterior; pela circulação de cidadãos japoneses em outros países; e pela
política adotada pelo então novo governo japonês de promover impactantes
alterações sociais, tendo países como França, Alemanha e Inglaterra como novo
paradigma.
É
bastante conhecido que, para além das profundas mudanças em termos de estrutura
administrativa e social ocorridas a partir da década de 1870, a reabertura
nacional promovida pela política do período Meiji (1867-1912) causou enorme
impacto do ponto de vista artístico no Japão. Afinal, para além de novas ideias
científicas e novas tecnologias, japoneses que circulavam no exterior traziam
em suas bagagens uma série de ideias artísticas que passaram a serem
traduzidas, lidas e serviram de inspiração no Japão. Não é à toa que a
historiografia literária japonesa passa a empregar somente a partir do final do
século XIX termos de estéticas cujas nomenclaturas possuem algum paralelo com
movimentos artísticos europeus. Para não me alongar e me restringir apenas ao
universo literário, é a partir desta época que começam a surgir textos que
passam a ser interpretados como pertencentes a um movimento de um “romantismo”
japonês, um “naturalismo” japonês, entre outros movimentos cujo título parece
recordar os estudos literários ocidentais, mas que trazem em si
particularidades que merecem estudos detidos, algo que está fora do escopo
deste trabalho.
Aqui,
importa perceber que este período Meiji foi, então, de muita experimentação e
de circulação de novas ideias. Igualmente, foi nesta época em que as religiões
exteriores ao Japão voltaram a se difundir entre população. Dentre essas,
naturalmente, também o cristianismo. É interessante recordar relevantes
informações trazidas pelo historiador nipônico Gonoi Takashi (2018), que afirma
que a queda do xogunato não foi suficiente para a livre difusão do cristianismo
no Japão do período Meiji. Foi apenas após a promulgação da Constituição do
Império do Japão (Dainippon Teikoku Kenpō), em 1889, que a liberdade
religiosa foi assegurada e o cristianismo voltou a circular livremente (GONOI,
2018, p. 270). Mas, é importante ressaltar que, no Japão oitocentista e
novecentista, já não é o catolicismo a principal vertente cristã a circular.
Segundo Kato (1983, p. 114), é o protestantismo americano o principal “sistema
de pensamento” cristão que se propaga entre os novos intelectuais. Tal fato se
explica pelo fato de, no século XIX, as missões religiosas não estarem mais
dentro dos planos coloniais portugueses. Ainda, segundo Santos (2009, p. 149):
“Se bem que com a reabertura do Japão ao mundo exterior em 1859 os missionários
católicos readquirissem a possibilidade de se estabelecer no país, embora de
forma limitada, ao contrário do que acontecera no século XVI, a abertura de
escolas não foi uma das suas prioridades”.
Assim, ainda de acordo com este estudioso, a
maior parte do sistema educacional que envolvia o cristianismo (o que implicava
também na circulação de ideias) ficava a cargo dos protestantes. Soma-se a isso
o fato de que os intelectuais japoneses que entravam em contato com o
cristianismo buscavam no aprendizado da língua inglesa uma forma de interação
com este(s) novo(s) mundo(s) que estava(m) sendo descoberto(s) no
além-fronteiras nipônicas. Assim, parece-me natural que seus contatos com a
religião cristã se dessem via protestantismo norte-americano.
Acontece
que o cristianismo, nesse novo momento de difusão, causou dois impactos no meio
intelectual japonês. O primeiro corresponde à ideia do cristianismo como uma
espécie de “filosofia da paz” em um Japão que, como forma de sobrevivência no
cenário global oitocentista, investiu fortemente em um militarismo e na entrada
em guerras internacionais (IRIYE, 2008). Assim, o cristianismo surgiu como um
discurso pacifista e antiautoritário, como explica-nos Kato. Cito:
“O
protestantismo abriu caminho para uma posição intelectual que transcendeu
completamente o poder do estado Meiji e tornou possível uma crítica fundamental
do sistema. Não foi surpreendente que a vasta maioria daqueles que se
declararam contra a guerra com a Rússia (1904-1905) eram cristãos, assim como
os fundadores do Partido Socialista Japonês. O cristianismo não criou a
preocupação social desta geração de intelectuais, mas a posicionou em uma direção
antiautoritária.” (KATO, 1983, p. 115, tradução minha).
Tal
constatação faz com que deixemos de nos espantar quando percebemos que muitos
importantes nomes da literatura japonesa novecentista refletiram sobre e, em
alguns casos, até se converteram – mesmo que temporariamente – ao cristianismo
ao longo de suas carreiras intelectuais. Nomes como Akutagawa Ryūnosuke
(1892-1927), Arishima Takeo (1878-1923), Shiga Naoya (1883-1971), Osanai Kaoru
(1881-1928) e Dazai Osamu (1909-1948) são alguns dos mais canônicos que
apresentam diálogos com o cristianismo em suas obras, mas a lista, por certo, é
muito mais extensa.
Ainda,
enquanto uma corrente de pensamento estrangeira que impacta intelectual e
socialmente no Japão, o cristianismo surgiu como tema de textos históricos de
ficção (romances, contos e peças de teatro) que retratavam o primeiro contato
do povo japonês com os europeus, ou seja, entre a segunda metade do século XVI
e a primeira metade do XVII. Explicando-me melhor, se, por um lado, o contato
seiscentista entre portugueses e japoneses impactou na vida política e social
nipônica, sendo um período marcado por uma grande circulação de novas
tecnologias e ideias no arquipélago, por outro, os períodos Meiji e, o
seguinte, Taishō (1912-1926) também foram marcados por um grande fluxo do novas
tecnologias e ideias que se propagavam pelo Japão. Desta forma, muitos
intelectuais do Oitocentos e do início do Novecentos voltaram seus olhos para o
século XVI e entenderam-no como uma espécie de “espelho” da sua então
atualidade. Ou seja, retrataram e metaforizam o passado para refletir sobre o
presente. Desta forma, não são poucos os números de personagens portugueses
e/ou jesuítas que surgem em textos literários nipônicos como o “Outro”
ocidental ou como um personagem-tipo da alteridade que pode abranger muito mais
do que o discurso religioso.
Assim,
chegamos a uma segunda definição do que podem ser os kirishitan-mono.
Tais textos, no início do século XX, podem ser entendidos como aqueles que
retratam cristãos (figuras históricas ou ficcionais), assim como estrangeiros
de origem portuguesa, espanhola, francesa ou italiana dos séculos XVI e XVII e
que versam, em maior ou menor grau, sobre este contato entre povos ou
pensamentos diferentes. Podem, ainda, estabelecer diálogos literários com o
texto sagrado do cristianismo, a Bíblia. É possível encontrar também retratos
de cristãos – japoneses ou estrangeiros – do tempo presente, embora estes
textos pareçam ser em menor quantidade.
Seja
como for, o ponto central destes kirishitan-mono novecentistas é que
eles transcendem o caráter eclesiástico que o nome parece carregar e
configuram-se em leituras sociais de seu tempo. Em outras palavras, não
se deve pensar que os “textos cristãos” japoneses apresentam-se como obras de
caráter doutrinárias ou religiosas. Se, por um lado, também circularam textos
com esses objetivos, por outro é bastante significativo o corpus de
obras que usam o cristianismo como uma metáfora da alteridade e que, a partir
desse contato seiscentista, repensam as relações dos japoneses com os “Outros”
e, principalmente, consigo mesmo. Assim, os kirishitan-mono surgem como
ferramenta de autorreflexão e autocompreensão da intelectualidade japonesa
moderna, seja no plano individual, seja no plano coletivo.
A
significativa quantidade de obras que surgem ao longo dos séculos XIX-XX sobre
esta temática nos permite propor os kirishitan-mono como uma espécie de
subgênero da arte japonesa moderna, principalmente na primeira metade do
Novecentos. Entre criações ficcionais e recriações de episódios históricos,
desde o pioneiro poema dramático Hōrai kyoku (Canção do Monte Hōrai, 1892), de Kitamura Tōkoku (1869-1894), até Chinmoku
(Silêncio, 1966), de Endō
Shūsaku (1923-1996), são diversos os textos que transitaram pelo cristianismo,
dentre os quais merecem destaque Nanbanji mon zen (Em frente ao templo Nanban, 1909), de Kinoshita Mokutarō; Kirishitan
Yashiki (A Residência cristã, 1913), de Okamoto Kidō (1872-1939); Seibo
– Santa Maria (Santa Maria, 1923), de Matsui Shōyō
(1870-1933); Kirishitan Nobunaga (1926), de Osanai Kaoru; Sawano
Chūan (1927), de Nagata Hideo (1885-1949), sem mencionar pelo menos
dezessete contos do renomado escritor Akutagawa Ryūnosuke (1892-1927); além de
ficções dos já mencionados Shiga Naoya (1883-1971), Arishima Takeo (1878-1923)
e Dazai Osamu (1909-1948).
A
literatura japonesa parece ter singular interesse pela história de Hosokawa
Tama Gracia (1563–1600), filha do renomado general Akechi Mitsuhide (1528-1582)
que se convertera para o cristianismo e morrera em meio às tramas políticas que
levaram à ascensão do xogunato Tokugawa, em 1600. A sua circulação entre os
principais nomes históricos seiscentistas somado à conversão ao cristianismo,
além da morte trágica, faz a história de Hosokawa Tama Gracia ter um especial
apelo na modernidade. Nadehara (2014), em seu estudo, identifica e compara ao
menos quatro ficcionalizações para teatro, produzidas entre 1903 e 1959, da
história da mártir nipônica. Fazem parte do corpus analítico de Nadehara
as peças Hosokawa Tadaoki no Tsuma (1903), Kawatake Mokuami (1816-1893); Garasha (Gracia, 1906), de Fujisawa
Kosetsu (1875-1945); Garasha: Hosokawa Fujin (1959), da dramaturga
cristã Tanaka Sumie (1903–2000); além do texto Hosokawa Gracia Fujin (1940),
do padre católico alemão radicado no Japão, Hermann Heuvers (1890–1977).
Não
obstante este curto e parcial arrolamento dos kirishitan-mono na
literatura japonesa, vale ressaltar que, por certo, o cristianismo adquiriu
matizes bastante distintos nas obras que surgem (KATO, 1983, p. 115), o que
apenas amplifica a curiosidade e a importância do que aqui propusemos ser uma
espécie de subgênero literário. É especialmente interessante como, nesses
retratos históricos japoneses, a língua portuguesa surge como ferramenta para a
criação de uma “cor local” para as ficcionalizações. Entretanto, a extensão
deste texto não me permite a exploração da temática, que deverá ser destrinçada
em outra oportunidade. Encerro estas breves considerações reforçando o especial
interesse que textos como os kirishitan-mono japoneses têm. Certamente,
para nós, falantes de língua portuguesa, interessa pela curiosa relação de
representação e alteridade que surge em torno da língua que nos une. Mas, mesmo
para aqueles pouco interessados em assuntos religiosos ou de alteridade, os kirishitan-mono
interessam por ser um instrumento importante para a autorreflexão japonesa do
início do século XX. É um território ainda por se explorar nos Estudos
Japoneses em língua portuguesa e são textos que carecem de (e merecem) novas
traduções e novos estudos. Fico com a esperança de que estas considerações deem
alguma contribuição para a incitação da curiosidade e do debruçamento em cima
deste universo literário ainda pouco conhecido.
Referências
José Carvalho
Vanzelli é professor e pesquisador na Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Atua no Programa de Pós-graduação em Letras da instituição e foi docente da
área de Japonês do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas (DELEM-UFPR) entre
2022 e 2024. Foi, ainda, docente na Hankuk University of Foreign Studies (HUFS
– Coreia do Sul) entre 2014 e 2015. Possui pós-doutorado pela UFPR. É mestre e
doutor em Letras pela USP. Graduado em Letras (Português-Japonês) pela USP.
Atualmente, suas pesquisas centram-se principalmente nos temas: literatura
japonesa; representações do Japão nas literaturas de língua portuguesa; e
diálogos entre literatura, teatro e cinema.
BOXER, C. R. The Christian
Century in Japan. Berkeley e Los Angeles: University of California Press,
1951.
BROCCO,
Pedro. Linguagem e Colonização: análise comparada das missões jesuítas
no Brasil e no Japão (1549-1587). Porto Alegre: Editora
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Luís de. Os Lusíadas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora,
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Takashi. Iezusukaishi ni yoru kirisuto-kyo no senkyō to jihi no kumi. Nihon Gakushiin Kiyō, Tóquio, v. 72, p. 261-272,
2018.
HESPANHA,
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RODRIGUES, Ana Maria (Coord.). O Orientalismo em Portugal. Porto:
Edifício da Alfândega, 1999. p. 15-37.
IRIYE, Akira. Japan’s
drive to great-power status. In: JANSEN, Marius B. (Ed.). Cambridge
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LOURENÇO, Eduardo. A “Peregrinação” e a
crítica cultural indirecta. In: PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação.
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NADEHARA, Hanako. The Emergence of a New Woman: the history of the
transformation of Gracia. Tōkyō Joshi Daigaku Kiyō
Ronshū, Tóquio, v. 64, n. 2, p. 107-119, 2014.
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Contribuição do cristianismo no ensino no Japão, séc. XVI-XXI. In: Colóquio
“Cristianismo no Japão: universalismo cristão e cultura nipónica”, 2007,
Fátima. Actas [...]. Lisboa: Fundação AIS, 2009. p. 125-154.
SUZUKI, Tae. Padre Ioão Rodriguez:
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Japoneses, São Paulo, v. 7, p. 113–127, 1987.
Ola professor José! Muito bom ler seu texto! Tenho especial interesse pelo cristianismo japonês também, principalmente a relação dele com movimentos de libertação social que estavam surgindo por todo o Japão.
ResponderExcluirQueria fazer alguns comentários e levantar algumas questões.
Entendo quando você propõe uma alteração noo eixo da forma de cristianismo com a legalização da fé no período Meiji, mas acho que cabe uma relativização nesse aspecto, o que você acha? Sei que o espaço para escrever é curto e isso acaba fazendo a gente ter que escolher o que deixar de fora e, por isso, faço o questionamento. De todo modo, realmente o protestantismo ganhou muita força em Meiji. Nao sei se tanto por influência tão forte e marcante assim dos Estados Unidos. Isto é, acho que os holandeses tiveram um papel importante, conquanto "escondido", nesse aspecto também já que a medicina japonesa, mesmo pre Meiji, tinha forte influencia de lá. Não acho que dê pra descartar o papel dos ingleses também. O Exército da Salvação chegou bem precocemente no Japão (1895) e promoveu uma serie de trabalhos de assistência social direta, como era característico da organização. Mas o que quero dizer com a relativização dessa mudança de paradigmas é que, principalmente nas áreas próximas de Nagasaki, o catolicismo ainda continuou com bastante força. Além disso, os marinistas também estavam ativos no período com suas escolas, para não falar da Universidade de Sophia, que tem origens nas atividades da Companhia de Jesus, e do ortodoximso que também existia no país, ainda que em menor grau etc. Mas é como você pontuou, houve uma mudança substancial na percepção do cristianismo no Japão. Gostaria de saber mais de você sobre uma possível relativização dessa infuência.
Meu segundo questionamento/comentário mescla um pouco do meu interesse às questões levantadas por você. Eu acho especialmente interessante como o cristianismo ganhou tanta proeminência no discurso radical japonês. Quero dizer, não é como se o cristianismo não fosse operacionalizado nessa linha em outros lugares, Tolstói, talvez, é o exemplo mais citado. a teologia da libertação aqui na nossa América latina também é bastante relevante nesse aspecto. Mas a própria base que formatou o Exército da Salvação, por exemplo, também dialogava abertamente com o socialismo de então. De todo modo, acho interessante como o cristianismo chegou com essa força no país. Lembro de Tsuji Jun, um intelectual do período, que comentava que o socialismo do país era uma mistura de idealismo cristão com o naturalismo e acho que faz bastante sentido. Lembro também de Kan'no Sugako que, em seu diário escrito na prisão enquanto aguardava e execução de sua pena capital, compara o socialismo radical ao cristianismo. Lembro de Kaneko Fumiko que se envolveu com o exército da salvação antes de ser condenada a prisão por alta traição etc. os exemplos são muitos e isso me deixa sempre com vontade de pensar nessas questões com mais profundidade. Você teria algum comentário sobre esse aspecto?
Volto a agradecer o texto! Foi uma surpresa muito boa encontrar seu trabalho aqui!
Felipe Chaves Gonçalves Pinto
Olá, Felipe. Tudo bem? Muito obrigado pela leitura e pelas sugestões! Certamente são algumas questões que estão me fazendo pensar.
ExcluirOlha, eu acredito que você já resumiu bem a situação. Certamente, uma relativização ou pelo menos uma ponderação mais demorada caberia em um texto de maior fôlego, principalmente no que tange a essa questão do cristianismo em Meiji-Taishô. Mas, como o espaço é curto, as reflexões acabam abarcando algumas questões de caráter mais geral.
Além disso, minha preocupação principal nesta comunicação está especificamente no campo literário (pelo menos nos autores que entraram para o cânone). Então, a lista de autores que mencionei foram alguns que, em maior ou menor grau, foram influenciados pelo movimento cristão-pacifista “mukyôkai” de Uchimura Kanzô, que teve no protestantismo norte-americano um referencial. Somando isso ao que outros historiadores da literatura (no caso, trouxe o canônico Kato para essa discussão mais geral) colocam, é que acabei pensando na influência do protestantismo estadunidense no período. Agora, certamente, como você diz, o cenário é mais complexo. De fato, a Sophia University é talvez a mais famosa universidade fundada por católicos no Japão e me parece que há certa de outras 40 universidades de origem católica no país. Mas, há também uma série de outras denominações do protestantismo que também investiram na abertura de espaços educacionais. Santos, que trouxe ali no texto, por exemplo diz: “os Anglicanos fundaram a Universidade Rikkyō 立教em 1874, os Congregacionalistas criaram Dōshisha 同志社 em 1875, os Metodistas abriram a Tōkyo Eiwa Gakkō 英和学校 (a actual Aoyama Gakuin 青山学院) em 1883, e os Presbiterianos erigiram a Eichi Yobiko 英知予備校 (a actual Meiji Gakuin 明治学院) em 1887. Tohoku Gakuin 東北学院 (1886) em Sendai, Kwansei Gakuin 関西学院 (1889) em Kobe e Momoyama Gakuin 桃山学院 (1890) em Osaka são alguns outros exemplos de universidades de raiz protestante abertas em cidades de província” (p. 149). Enfim, tudo isso só mostra como, de fato, a discussão pode ser ampliada em um texto de maior fôlego. A situação dos holandeses/ingleses no período sengoku também é passível de discussão, embora a “briga” da época (pelo menos no campo religioso) me pareça estar mais entre os católicos (jesuítas, dominicanos e franciscanos, por exemplo) mesmo. Enfim, para não me alongar demais, a ideia geral do texto é apenas apontar essa “perda de força” geral do catolicismo enquanto projeto colonial em Meiji, mas que retorna na literatura como metáfora para outras discussões que o meio artístico vai acabar promovendo. E como a noção associada ao termo “kirishitan-mono” vai ganhando novos significados.
Agora, do seu segundo comentário, no fundo, apenas compartilho o interesse por esse caráter de associação do idealismo cristão com esses movimentos sociais, principalmente os de esquerda/resistência. No caso de alguns autores (penso no teatrólogo Osanai Kaoru, por exemplo, que no fim da vida foi até flertando com ideias de extrema-direita), o cristianismo também foi sendo absorvido de modo a agregar a uma noção de espiritualidade muito específica, o que mostra o caráter fragmentado desse “sujeito moderno de Meiji” que teve contato com esse(s) cristianismo(s).
Enfim, não sei se agreguei muita coisa aos seus comentários, mas queria agradecer novamente a interação por aqui. Há coisas que ainda seguirei refletindo e, certamente, incorporando nos debates sobre o tema. Muito obrigado.
José Carvalho Vanzelli
Olá, José!
ResponderExcluirPrimeiramente, parabéns pelo texto! Eu não conhecia muito sobre o assunto e achei bem interessante.
Como você sabe, a minha pesquisa se volta mais para a história coreana. Entretanto, devido as relações entre Japão e Coreia, não pude deixar de refletir sobre algumas semelhanças.
Na Coreia, o maior movimento de resistência em relação a ocupação colonial japonesa foi o Movimento Samil (1919) e, uma das maiores bases para essa manifestação foi o cristianismo. Porém, sendo utilizado como uma filosofia política, como você mesmo cita, uma "filosofia da paz".
Como a religião cristã influenciou em diversas ideias, atitudes e, inclusive, manifestações no oriente, eu gostaria de saber se houve alguma manifestação semelhante ao Movimento Samil no Japão. Não sob uma perspectiva de resistência coreana, mas sim em relação a insatisfação popular japonesa para com o seu próprio governo.
Além disso, você saberia dizer como os Kirishitan-mono, utilizados sob esse viés de "filosofia da paz" eram vistos pelo governo japonês durante os períodos Meiji e Taishō? Pois mesmo após a liberdade religiosa assegurada em 1889, a religião cristã ainda não era muito bem vista pelo império japonês, certo?
Desde já agradeço,
Gabrielly Fernanda Spizamilio Silva
Olá, Gabrielly. Tudo bem? Obrigado pela leitura e pelo comentário. Seu interesse pela história coreana traz uma reflexão de aproximação entre os movimentos japoneses e coreanos bastante interessante.
ExcluirBem, pensando na data do Movimento Samil, certamente é possível encontrar alguns paralelos do massacre promovido pelo governo japonês na Coreia com a repressão que existia no próprio Japão. Grosso modo, o período das décadas de 1920-1930 é quando o movimento (e a arte) proletária japonesa, os movimentos de esquerda e de oposição ao governo ganharam maior força, o que faz com que tenham sido paulatinamente sufocados pelo governo. Apenas para ficar no exemplo mais famoso, recordo aqui do Kobayashi Takiji, que escreveu o romance Kani Kōsen (“navio-caranguejeiro”, em tradução livre), talvez a obra da literatura proletária japonesa mais famosa (há traduções para o português do Brasil). Ele foi capturado em 1933, torturado e morto, mas a causa mortis oficial divulgada pelo governo foi “ataque cardíaco”. Ou seja, tudo idêntico ao que foi visto em diversas ditaduras que estavam acontecendo na Europa na época ou mesmo na brasileira, a partir de 64. Enfim, este pequeno exemplo é só para ilustrar que, sim, movimentos de oposição ao governo existiam no Japão e recebiam tratamentos tão pesados quanto o visto na Coreia. Sugiro que dê uma olhada no trabalho do colega Felipe Chaves Gonçalves Pinto que comentou aqui em cima. Embora eu não tenha deixado nenhum comentário no texto dele, o li e é bastante interessante os resgates que ele tem feito da intelectualidade desse período. Fora isso, se procurar sobre o movimento proletário e a literatura proletária japonesa, certamente encontrará informações que poderão proporcionar um paralelo interessante com o Movimento Samil da Coreia.
Agora, sobre como os “kirishitan-mono” utilizados sob esse viés de "filosofia da paz" eram vistos pelo governo japonês durante os períodos Meiji e Taishō, eu precisaria fazer uma pesquisa mais aprofundada para te responder com precisão. A princípio, minha suspeita é de que esses textos não enfrentavam grandes problemas, ainda mais quando o cristianismo aparecia como histórico e como metáfora. Além disso, nem todos os textos que resgatam os contatos com o cristianismo do séc. XVI necessariamente faziam uma reflexão social no sentido de se opor ao governo. Muitas vezes, era uma leitura mais geral, para tentar entender uma sociedade que se transformava. Em outras palavras, não necessariamente isso desaguava em uma discussão política diretamente. Seja como for, acho que uma investigação mais a fundo pode trazer uma resposta mais precisa para essa sua questão. Manterei ela em mente e devo incluí-la também em debates futuros sobre o tema. Muito obrigado pela reflexão!
José Carvalho Vanzelli
Olá José,
ResponderExcluirAchei sua abordagem dos usos da tradução cultural interessantíssima! Como não sou da área de letras, infelizmente acabo tendo pouco contato com interpretações desse tipo de documentação pelo viés da linguagem.
Enquanto lia, acabei me lembrando das polêmicas e acaloradas discussões dentre os intelectuais japoneses, especialmente os intelectuais budistas, ante à perspectiva da autorização do governo para as zakkyochi 雑居地 começando no bakumatsu. Se me lembro corretamente (já tem muitos anos que tive contato com esse material, de forma indireta através da pesquisa de uma colega), um dos maiores medos desses intelectuais era a possibilidade destas áreas acabarem sendo uma via de entrada para o cristianismo e suas ideias. Como você veria reações de resistência como essas a partir da lente de análise que você trouxe no seu texto?
Me lembrei também de um livro que eu gosto muito, The Invention of Religion in Japan, você conhece? Caso ainda não conheça, eu recomendo demais, porque acho que você vai encontrar lá várias interseções com noções centrais que você utiliza na sua pesquisa, mas por um viés historiográfico de ponta na atualidade.
Abraços!
Larissa Redditt
Olá Larissa, tudo bem? Muito obrigado pela leitura, pelo comentário e pela indicação bibliográfica. Sempre bom ter colegas de outras áreas do conhecimento nas conversas.
ExcluirBem, sobre a indicação bibliográfica, não tive acesso a este livro. Não o conhecia. Me parece um material muito valioso. Então, muito obrigado pela dica. Vou atrás dele com certeza!
Já em relação à intelectualidade japonesa (especialmente budista) ser contra as zakkyochi, no bakumatsu/Meiji, por conta da possibilidade de entrada do cristianismo, confesso que já ouvi falar algo nesse sentido na cidade de Kobe mas nunca me debrucei sobre nenhum material muito aprofundado sobre isso. Então, não saberia dizer nem se é algo específico de Kobe (ou de cidades portuárias, como Yokohama, Hakodate, Shimoda e Nagasaki também) ou algo geral no país. Certamente, é algo a ser estudado num futuro próximo. Seja como for, essa postura que você menciona, me recorda bastante a relação entre budistas/cristãos no próprio período Sengoku, em que aconteciam debates teológicos entre os missionários portugueses e os monges. É interessante que, além de relatos históricos portugueses e japoneses que contam alguns desses episódios, há também a ficcionalização desses encontros na literatura. A oposição e as características que normalmente são creditadas aos budistas (impacientes, violentos, ríspidos) é muito curiosa, ainda mais quando lido a partir de um espaço em que o Budismo é popularmente associado a características totalmente opostas.
De todo modo, para não deixar sua pergunta sem resposta, posso compartilhar uma hipótese, a ser comprovada ou não com uma leitura mais extensa de pesquisas e textos literários. Minha suspeita é que provavelmente há na literatura também representações e movimentos que buscam fazer esse tipo de oposição. Ou seja, representações do cristianismo não para incorporá-lo a um pensamento, mas para fazer uma oposição. No entanto, ainda não me deparei com nenhum texto que consiga ler por essa chave. Já encontrei o cristianismo como metáfora para relativizações, no sentido de criticar uma adoção excessiva de ideias estrangeiras, mas nada que argumentasse em direção a um banimento total do cristianismo (seja como religião, seja como metáfora de “ideias estrangeiras’).
Mas, seguirei atento a esta questão também. Agradeço muito sua reflexão, que traz uma perspectiva que ainda não tinha dado muito atenção. Obrigado.
José Carvalho Vanzelli