MULHERES DE CONFORTO CHINESAS: SILENCIAMENTOS, VOZES E RESISTÊNCIAS DE CORPOS SUBALTERNOS (1931-1945)
Durante o
período da Segunda Guerra Mundial, o Japão se destacou como potência
imperialista e buscou dominar diversas regiões hoje pertencentes à Coreia do
Sul, Taiwan, China, e outros países do Leste Asiático. No contexto
expansionista, em 18 de setembro de 1931, o exército imperial japonês fez sua
primeira invasão oficial à Manchúria. Essa região no nordeste da China, é hoje
conhecida como Dongbe, e foi invadida em princípio por se tratar de um local
estratégico economicamente para a industrialização japonesa que estava em
expansão. Naquele momento, a Manchúria possuía 90 por cento do petróleo da
China, 70 por cento do seu ferro e 55 por cento do seu ouro [Paine, 2012,
p.15], logo, a invasão japonesa era estrategicamente localizada.
Dentro do contexto desse
expansionismo imperial japonês, o termo “Mulheres de conforto” – traduzido do
japonês 慰安婦 [Ianfu], ou do inglês Comfort Women – passou a ser utilizado para se referir às
mulheres asiáticas, que possuíam entre 14 a 30 anos, em sua maioria, as quais
foram submetidas à situação de escravidão sexual pelos membros do exército de
países reconhecidamente pertencentes ao Eixo, no caso desse estudo pelos
membros do exército imperial japonês. Durante os anos 1930 e 1940, o exército
imperial japonês instalou “estações de conforto”, ou “estações de conforto
militares” – traduzidos do japonês 慰安所 [Ianjo] e 従軍慰 安婦 [Jugun ianfu] – foram
espalhados pela maioria dos países com regiões dominadas pelo Japão, como
Coreia do Sul, China, Taiwan, Filipinas e outros. Ademais, muitas estações de
conforto eram “móveis”, acompanhando os soldados na linha de frente. Esses
lugares eram utilizados pelos soldados e pela marinha para manter as meninas e
mulheres, onde pudessem visitá-las quando fosse de sua vontade e onde essas
mulheres ficariam isoladas da sua comunidade. Muitas vezes, as mulheres eram
levadas de seus países para servirem os soldados nas linhas de frente, por
isso, diversos prédios que foram desocupados durante as expedições militares
eram usados como estações e pontos de conforto [Tanaka, 2003, p. 10].
Tendo este
contexto em mente, o presente projeto propõe analisar os testemunhos de doze
mulheres chinesas – a saber, Lei Guiying, Zhou Fenying, Zhu Qiaomei, Lu
Xiuzhen, Yuan Zhulin, Tan Yuhua, Yin Yulin, Wan Aihua, Huang Youliang, Chen
Yabian, Lin Yajin, e Li Lianchun – como fontes primárias. Essas mulheres foram
as poucas sobreviventes que decidiram se pronunciar sobre as violências
sofridas durante o período de funcionamento do Estado Fantoche japonês na
região da Manchúria, na China, o Manchukuo, e durante os ataques em Xangai,
conhecidos como o primeiro e segundo “Shanghai Incident”, na época um
importante centro comercial da China [Paine, 2012, p. 15]. Desses ataques,
muitas mulheres foram levadas para o mercado de mulheres de conforto,
destinadas a servir ao exército imperial com seus corpos e sua integridade.
Atitudes como essas foram justificadas na época como uma forma de evitar
futuros ataques às mulheres civis, conforme a intenção do General Okamura
Yasuji, Vice-Chefe do Estado-Maior do Exército Expedicionário de Xangai, ao
implementar estações de conforto para a marinha japonesa em 1936 - uma ação que
não tem fundamento comprovado [Tanaka, 2003, p. 10].
A presente
pesquisa utilizará os testemunhos presentes na obra “Chinese Comfort Women
Testimonies from Imperial Japan’s Sex Slaves”, dos pesquisadores Peipei Qiu, Su
Zhiliang e Chen Lifei, e terá o livro como uma das bibliografias essenciais.
Esta é uma importante obra para as pesquisas do tema, uma vez que foi o
primeiro livro publicado em inglês a reunir pesquisas e relatos sobre as
mulheres chinesas, especificamente, que foram submetidas à posição de “mulher
de conforto”. O livro trata dos assuntos envoltos no período da dominação
imperial japonesa na China e em outros países do Leste Asiático, como também
dos movimentos de reparação histórica que foram fomentados por feministas
coreanas, durante os anos 1990, em defesa das ex-mulheres de conforto. Os
pesquisadores trazem na obra imagens e testemunhos, redigidos entre 1998 e
2008, de ex-mulheres de conforto como uma estratégia para destacar a gravidade
do problema, que permanece sem solução. Dessa forma, ao trazer à tona esses
relatos, os pesquisadores buscam enfatizar que a violação da moral e
integridade dessas mulheres permanece e não foram restituídas, especialmente
por um abandono pelo Estado e sociedade chineses.
Entre as
doze mulheres entrevistadas, a maioria delas era do meio rural e foi retirada
de suas famílias forçosamente. Algumas relatam a participação, própria, de
amigos e/ou familiares no Partido Comunista Chinês, o que tornava sua
experiência como “mulher de conforto” ainda mais violenta – além dos abusos
sexuais, eram também submetidas à tortura. Entretanto, a maioria delas não
relatou interesse por política, não foi alfabetizada e em toda sua vida foi
coagida a manter o silêncio sobre suas experiências – para não ser excluída de
uma sociedade com rígidos padrões de pureza e submissão, como a corrente
neoconfucionista idealizava.
Para uma análise
profunda dos padrões morais que moldaram a inserção social das mulheres de
conforto, é imprescindível examinar alguns aspectos que envolvem o
Confucionismo e o Neoconfucionismo e suas origens, tendo em vista a sua
importância nas bases ideológicas e culturais que influenciaram a percepção e o
tratamento de mulheres na sociedade chinesa. Confúcio [ou 孔子 Kong Zi] foi um pensador chinês que viveu
entre 551 AEC. e 479 AEC., e apesar de ter tido uma influência considerável e
ter os Grandes Clássicos chineses atribuídos a seus discípulos, não
necessariamente é a figura central desta tradição filosófica. Esta ideia pode
ser resultado de uma tradução incorreta do termo 儒
[Ru], trazida ao Ocidente por jesuítas do século XVIII [Rosenlee, p. 5, 2006],
sendo, na verdade, um complexo conjunto de ideias e ensinamentos de Anciãos que
surgiram antes mesmo de Confúcio.
Entendendo a
problematização acerca do termo Confucionismo, será usado ao longo do projeto o
termo 儒, ou 新儒 [xin ru], referente
ao Neoconfucionismo, a fim de evitar um possível orientalismo
epistemologicamente limitante. A conjuntura filosófica foi oficializada na
China e se tornou dominante em países do Leste Asiático, com os quais
estabeleceu relações a partir da Dinastia Han [de 206 AEC. até 220 EC.],
havendo modificações ao longo da Dinastia Song [960 EC. até 1279 EC.] e Qing
[1644 EC. a 1912 EC.]. Neste último período, a repressão contra a mulher
chinesa, baseada nos pensamentos dessa filosofia, se tornaram mais opressivos –
como a retomada do costume de enfaixar os pés, objetivando a redução da
liberdade da mulher, e a prática da castidade entre as viúvas [Ebrey, 2003, p.
21] – talvez por uma aproximação epistemológica com a definição do feminino.
Por muito tempo, na língua chinesa não havia uma palavra que definisse a mulher
da forma que é entendida hoje: um indivíduo do gênero feminino; o que haviam
eram palavras relacionadas à feminilidade ou ao papel social do feminino, como 妇女 [fu’nu], em tradução literal “esposa” e
“filha” [Rosenlee, p. 46, 2006]. Hoje o caractere 女 ainda é utilizado para identificar as
mulheres, porém, é imprescindível que se entenda como a evolução da linguagem
pode impactar na existência e opressão da feminilidade, pois uma vez que não há
um termo que designe a individualidade de alguém, isso por si pode fazer parte
da opressão, justamente pela falta de reconhecimento deste como um ser
independente e como um indivíduo.
Em continuidade,
entendendo a pluralidade de 儒, entre os pensadores
e estudiosos da Dinastia Han, Ban Zhao [班昭], se destacou ao
escrever livros – em especial, Os Mandamentos Femininos [em chinês, 女誡, nujie] – que
determinavam os padrões ideais de comportamento para uma mulher, seja dentro de
casa, com sua família, ou mesmo em relações sociais externas. Esses ideais
serão discutidos no decorrer deste texto com mais profundidade, sendo
importantes arcabouços teóricos e sociais para entender o papel feminino
segundo o olhar geracional chinês. As idealizações sobre o comportamento
feminino foram retomadas durante a Dinastia Qing como forma de racionalizar e
controlar os movimentos de emancipação feminina, fomentados por mulheres
ativistas – como a anarcofeminista He-Yin Zhen.
Os
principais debates sobre a sistematização do sistema de mulheres de conforto, e
a negação do Japão quanto às responsabilidades de Estado sobre o sistema, se
concentram em comunidades acadêmicas da Coreia do Sul e Japão, porém se
estendem a outros países asiáticos e alguns na América do Norte. Eles se
diferenciam, especialmente, na divisão entre aqueles com uma ideologia marxista
em contraponto com aqueles de ideologia ultranacionalista – essencialmente
escritores japoneses [Norma, 2018, p. 45]. Os primeiros buscam,
ideologicamente, analisar a violência e degradação humana durante o período de
guerra. Assim, sustentam a narrativa contada por estudiosos humanistas e
relatada pelas próprias mulheres, que foram submetidas ao sistema de conforto.
Os segundos sustentam uma narrativa de não-responsabilidade do Estado Imperial
japonês na implementação de um sistema de conforto, que teria sido supostamente
privado e sem o financiamento do Estado. Defendem, portanto, não ser
responsabilidade do Governo Japonês reparar os danos causados no período da
guerra.
Seja pela
dificuldade em averiguar a situação dessas mulheres, devido à extensa queima de
documentos no momento de derrota japonesa, ou pela falta de denúncia pelo
Governo Chinês, as violências às mulheres de conforto não foram consideradas
crimes de guerra pelo Women’s
International War Crimes Tribunal [Totani, Tokyo War Crimes Trial, 185 apud Qiu
et al., 2014, p. 165], o que denuncia a urgência de dar voz às mulheres
chinesas oprimidas durante as ações imperialistas japonesas. A partir dessa
temática, a presente pesquisa se justifica por pretender explorar os
depoimentos dessas doze mulheres como fonte primária e prova essencial de
violência institucionalizada, perpetrada pelo exército militar japonês. Assim
como visa resgatar as vozes que foram oprimidas pelo discurso de moralidade do 儒, o qual as torna cúmplices da própria
violência.
A pesquisa
busca desmistificar os estereótipos de gênero acerca das experiências femininas
das mulheres de conforto, para um público brasileiro pouco familiarizado com as
experiências não epistemologicamente ocidentais e ocidentalizadas. Além disso,
pretende ter um impacto positivo no meio acadêmico brasileiro ao trazer a
discussão sobre as mulheres de conforto do Império Japonês ao Brasil,
oferecendo uma perspectiva alternativa para tratar os acontecimentos da Segunda
Guerra Mundial – entendendo o sistema de conforto como um aspecto do fascismo
japonês – e, ampliando o campo de pesquisa das relações Brasil e China, que nas
últimas décadas encontra-se numa expansão econômica e cultural. Pretende também
explorar o impacto devastador da guerra sobre as mulheres, visando oferecer uma
análise mais abrangente do conflito Sino-Japonês e destacando como o regime fascista
japonês afetou parte da Ásia de maneira sistemática e brutal.
Consoante ao
arcabouço teórico-metodológico, para além das contribuições de Peipei Qiu, Su
Zhiliang e Chen Lifei, a pesquisa utilizará os estudos sobre história da
mulher. Ao levar em consideração a especificidade do sujeito mulher e das
vivências femininas no contexto chinês, os escritos de He-Yin Zhen e Ban Zhao
serão o norte desta pesquisa. Por outro lado, será utilizada a formulação de
subordinação do corpo feminino de Gayatri Chakravorty Spivak e outros conceitos
fundamentais discutidos no influente ensaio “Pode o Subalterno Falar?”, que
serão aplicados para oferecer uma análise mais abrangente das mulheres de
conforto chinesas, não apenas como sujeitos femininos subalternos, mas igualmente
como símbolos da dominação imperial japonesa sobre a China e suas fraquezas.
Primeiramente, para
utilizar um olhar anarcofeminista recente sobre o problema das mulheres de
conforto, os conceitos abordados por He-Yin Zhen, 何殷震, [1884 a 1920], uma proeminente teórica
feminista e editora fundadora da revista Natural
Justice,
serão utilizados. O periódico anarcofeminista, Natural Justice, ativo em meados do século XX, reivindicava
direitos das mulheres chinesas e questionava as aparentes liberdades concedidas
pelos homens às mulheres chinesas – como o fim da tradição de enfaixar os pés,
ou o acesso à escolarização – que teriam como fundamento uma autoafirmação
masculina em torno da europeização do homem chinês, uma “civilização” deste
[Liu et al., 2013, p. 2].
Os escritos
de He-Yin Zhen exploram não apenas a opressão das mulheres na China, seja no
passado imperial quanto no seu presente – período de decadência da dinastia Qing – mas, explora também as condições
de vida das mulheres no Japão industrializado e faz uma análise geral das lutas
anarquistas e socialistas em todo o mundo. A anarquista também indagava sobre a
importância da reputação da mulher – esta que havia sido reafirmada pela
historiadora Ban Zhao, apresentada a seguir – e criticou seus contemporâneos
autodenominados progressistas, mas que sustentavam as teses de Ban Zhao em
torno da estima de uma moça para sua comunidade. Mesmo que esta fosse algo
externo à mulher, uma vez que dependeria do meio social em que ela vivia e o
quão moralistas seriam as pessoas ao seu redor. Assim, as análises dela,
conforme traduzidas e discutidas no livro The
Birth of Chinese Feminism, de Lydia H. Liu, Rebecca E. Karl e Dorothy Ko,
auxiliarão a desenvolver um olhar que considera o contexto na China, das
mulheres que viveram naquele período e naquele meio histórico-social específico
de seu tempo e localidade.
Em segundo plano, a
pesquisa terá como base teórica os fundamentos da função social da mulher
reiterados e redefinidos por Ban Zhao, a primeira historiadora mulher da China,
presente entre os importantes pensadores da Dinastia Han [206 AEC. até 220
EC.]. A historiadora traz, em seu livro 女诫 ou Os Mandamentos Femininos [em tradução livre], uma
moralidade através de uma releitura do clássico The Mother of Mencius, trazendo ideais comportamentais sobre a
reputação de uma mulher e como sua reputação poderia trazer à ruína de sua
família.
Nesse
contexto, determina em seus escritos três pontos cruciais para a boa reputação
de uma mulher: humildade, diligência e sacrifícios contínuos. A humildade
estaria associada a não comentar sobre seus feitos, colocando sempre o outro –
seu pai, marido ou filho – em primeiro lugar, deixando a si mesmo em segundo
plano, aceitando insultos e suportando maus-tratos. A diligência, por sua vez,
indica que uma boa mulher nunca deveria recusar-se a assumir o trabalho
doméstico e deve completar tudo o que precisa ser feito de forma organizada e
cuidadosa. Enquanto os sacrifícios, em consonância, implicam uma relação servil
de uma esposa a seu marido, incondicionalmente e incontestavelmente, colocando
a mulher em uma posição sempre secundária em sua vida, reforçando como a
submissão é construída socialmente desde a infância até sua vida adulta.
Apesar de
escritos séculos antes das experiências aqui trabalhadas, esses três
fundamentos, reafirmados por Ban Zhao, ajudam a compreender a falta de denúncia
de muitas das mulheres chinesas, vítimas do sistema de conforto, devido à
importância social da reputação de uma mulher e como ela impacta a conquista de
um marido e família. O impacto dos escritos de Ban Zhao permaneceu na sociedade
chinesa por séculos, tendo influência de certa forma até hoje [Jin W; Zhao H,
2007, p. 3]. Nesse sentido, impactou a forma como a sociedade chinesa entendeu
o problema das mulheres de conforto e como elas mesmas procuraram se inserir na
sociedade, a fim de poder exercer ao máximo seu papel como mulher.
Como já
mencionado, as análises de Spivak serão de grande importância neste estudo,
considerando que aborda em seu trabalho seminal as questões de vozes e da
representação do subalterno, destacando como os grupos marginalizados
frequentemente são silenciados e suas vozes não são plenamente ouvidas nos
discursos dominantes. Aplicando essa perspectiva, a pesquisa busca entender as
mulheres de conforto como vítimas duplamente silenciadas: primeiro, pela
opressão patriarcal interna [tardiamente reforçada por um esforço de Estado,
que buscava associá-las a inimigos de Estado] e, segundo, pela violência
imperialista externa.
Spivak ensaia uma
discussão presente em análises Marxistas de discursos de desejo, poder e
opressão: o sujeito oprimido tem um desejo intrínseco de tornar-se o sujeito
opressor uma vez que busca tornar-se o sujeito dominante [SPIVAK, 2010, p.44].
Dessa forma, pode-se ponderar o Estado Chinês apropriando-se desse desejo do
povo chinês, oprimido pelos esforços militares japoneses, e utilizando-se da
opressão contra a mulher de conforto transformando-a em um inimigo de Estado.
Deste modo, a mulher subjugada e violentada anteriormente pelos soldados
japoneses [a ideologia imperialista externa], é novamente subjugada e
abandonada pelo Estado Chinês, reforçando os ideais trazidos por 儒, de que o silêncio como esquecimento seria
uma solução mais adequada do que a denúncia como caminho para reparação, pois o
silêncio preservaria a mulher e sua reputação, assim como a reputação de sua
família.
Em outro
aspecto, é importante entender a dominação sobre os corpos femininos como uma
manifestação da dominação imperial japonesa, refletindo não apenas o controle
físico e psicológico sobre as mulheres, mas também a imposição de um poder
imperial sobre a nação chinesa. A subjugação das mulheres de conforto não foi
apenas um ato de violência de gênero, mas também uma extensão da estratégia de
dominação imperial, que visava humilhar e subjugar a China de forma mais ampla.
É nesse aspecto que os argumentos de Spivak se encaixam bem neste projeto. Ao
perceber a partir das ideias de Althusser sobre o “terceiro Reich” alemão, que
a violência, em uma instância específica, tem intenção em si, não sendo
exclusivamente uma consequência de uma construção estrutural violenta. Deste
modo, as violências causadas pelos soldados japoneses, realmente, derivaram-se
de um ciclo de violência construído pelos traumas sofridos no ato de matar ou
ser morto, nas linhas de frente; mas ao mesmo tempo, os soldados tiveram um
desejo, que poderia ser evitado, de causar o mal às mulheres de conforto e este
desejo era fomentado pelo Império japonês como uma estratégia de dominação e
humilhação da soberania chinesa em seu território [ALTHUSSER, 1983, p.215 apud SPIVAK, 1942, p.28].
Portanto, os conceitos
de Spivak ajudarão a revelar como a opressão das mulheres de conforto é
indissociável das dinâmicas de desejo, poder e dominação; não sendo apenas uma
violência individual, mas algo coletivo e internacionalizado contra a soberania
chinesa. Esta abordagem oferece um olhar mais amplo: o sistema de conforto foi
uma estratégia política intencionalizada pelo expansionismo japonês, assim como
o abandono das mulheres, no momento do pós-guerra, foi uma ação pensada pelo
Estado chinês como uma ferramenta de unificação de narrativas nacionais contra
o inimigo externo japonês. Com essa relação é possível traçar como as mulheres
de conforto foram duplamente oprimidas, primeiro pelo imperialismo japonês e
depois pelo patriarcalismo chinês sustentado pela narrativa do 新儒.
Referências
O texto
trata-se de uma apresentação do projeto de Iniciação Científica, idealizado
pela graduanda em história pela Universidade Estadual de Campinas, Isabella
Padula, que busca estudar o sistema de dominação imperial sobre as “mulheres de
conforto”. Como colaboradora e orientadora do projeto, a Dra. Rozely Menezes
Vigas Oliveira, professora e pesquisadora de pós-doutorado em História da Ásia
no IFCH-UNICAMP, membro do Projeto Temático “Direitos de propriedades e
ocupação territorial: as sesmarias do Rio de Janeiro entre os séculos XVI e
XIX”, coordenado pela Prof. Dr. Marina Machado (UERJ), e da comissão
organizadora da Rede de Pesquisadores Visões da Ásia.
EBREY,
Patricia. Women and the Family in Chinese History, 2003. Disponível em:
https://www.taylorfrancis.com/books/9781134442935. Acesso em:
15 ago. 2024.
JIN, Wen; ZHAO,
Hui-ying. 重评班昭《女诫》的女性伦理观, 2007. Disponível em:
https://mqikan.cqvip.com/Article/ArticleDetail?id=26155388&from=Article_index. Acesso em:
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LIU, Lydia He; KARL, Rebecca E.; KO,
Dorothy. The birth of Chinese feminism: essential texts in transnational
theory. New York: Columbia University Press, 2013.
NORMA, Caroline. Comfort Women and Post-Occupation
Corporate Japan, 2018. Disponível em: https://www.taylorfrancis.com/books/9781351185264. Acesso em:
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PAINE,
S.C.M. The Wars for Asia, 1911-1949. New York: Cambridge University Press,
2012.
QIU, Peipei; SU, Zhiliang; CHEN,
Lifei. Chinese comfort women: testimonies from imperial Japan’s sex slaves.
Oxford: Oxford University Press, 2014.
ROSENLEE,
Li-Hsiang Lisa. Confucianism and Women: A Philosophical Interpretation, State University of New York
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SPIVAK, G. Chakravorty. Pode o
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TANAKA, Yuki. Japan’s comfort women:
sexual slavery and prostitution during World War II and the U.S. occupation.
London: Taylor & Francis e-Library, 2003.
Olá, Isabella! Parabéns pela idealização desse projeto! Me alegra ver o caso das “mulheres de conforto” ser cada vez mais estudado aqui no Brasil. Também estou pesquisando sobre elas, mas me concentrei nas coreanas e aqui eu puxo minha pergunta:
ResponderExcluirVocê teve muita dificuldade em achar fontes que falam sobre as “mulheres de conforto” chinesas, tendo em vista que os (poucos) estudos que se tem, focam principalmente nas vítimas coreanas e japonesas?
Atenciosamente, Camilly Evelyn Oliveira Maciel
Olá, Camilly! Primeiramente, obrigada pela pergunta. Fico feliz em saber que há mais pesquisadoras engajadas no assunto, inclusive, quando tiver algum material interessante e puder compartilhar, fico feliz em receber por email!
ExcluirRespondendo à pergunta, as fontes sobre as "mulheres de conforto" chinesas são realmente mais difíceis de achar, quando comparado ao caso coreano. Um autor que ajudou demais na minha pesquisa foi o pesquisador e professor Su Zhiliang e, também, a pesquisadora e professora Chen Lifei. Ambos fazem um trabalho excelente e amplo quanto ao caso chinês, e até fazem pesquisas em outros campos, que não necessariamente a história. Esses pesquisadores me deram um caminho sobre como pesquisar e achar fontes acerca das mulheres de conforto chinesas, e a partir deles encontrei o Chinese Centre for ‘Comfort Women’ Research, pensado pelo professor Su, além de outros museus digitais com fontes materiais. Além disso, como comentei no texto, o livro "Chinese Comfort Women Testimonies from Imperial Japan 's Sex Slaves" fornece uma gama de fontes orais, registradas e traduzidas pelo professor Su e outros pesquisadores, o que tem uma importância tão grande quando nos deparamos com a falta de fontes devido à queima de arquivos e objetos pelos japoneses.
Espero ter respondido, e agradeço novamente pelo interesse no texto!
Atenciosamente, Isabella Padula.
Olá, Isabella!
ResponderExcluirÉ muito bom ver pesquisas que investigam como “mulheres de conforto”. Eu também estudo esse tema, com foco nas interações de gênero e sexualidade na perpetuação dessa violência. Gostaria de saber como você analisa a desigualdade na construção e preservação das memórias dessas mulheres no âmbito historiográfico, especialmente considerando que muitas produções acadêmicas parecem concentrar seu enfoque na Coreia do Sul. Além disso, na sua opinião, quais são os maiores desafios para dar visibilidade a essas memórias em contextos acadêmicos ? Atenciosamente, Larissa Mikaely de Farias
Olá, Larissa! Muito obrigada pela sua pergunta!
ExcluirAdorei saber que você estuda essa questão com foco em interações de gênero, particularmente tenho muito interesse nesse quesito também. Se puder me enviar por email materiais de estudo que reflitam esse quesito ficarei muito grata!
Respondendo à primeira pergunta, acredito que a desigualdade quanto à quantidade de pesquisas historiográficas acerca do sistema de conforto na Coreia do Sul ou em outros países do Leste Asiático se dê pelo interesse político que o ocidente encontrou na Coreia do Sul e pelos interesses internos de formação de memória nacional, por parte da China. Vou me abster de falar sobre outros países por eu não ter muita propriedade.
No caso da China, conforme fui formando uma base bibliográfica para meu projeto de pesquisa, e com discussões com minha orientadora, um dos motivos para o caso das mulheres de conforto ser pouco estudado é que não é algo interessante para a formação da memória nacional no momento da Revolução Chinesa. No sentido de que: a revolução impôs nas "mulheres de conforto", mesmo que elas fossem chinesas, uma visão de traidoras da pátria e servidoras dos japoneses. Assim, no momento da Revolução foram deixadas à margem da sociedade. E, uma vez que isso ocorreu, o imaginário coletivo assimilou as mulheres de conforto como "o inimigo", (ou parte dele), o que reflete até hoje na falta de interesse em entendê-las como vítimas e testemunhas do sistema de conforto.
Porém, não é assim em sua totalidade.
Hoje, o problema do sistema de conforto é tratado nos livros didáticos chineses hoje, o que indica um profundo estudo sobre o assunto (pois para estar em um material didático teve que ser adaptado à uma linguagem não acadêmica, ser um assunto estabelecido e já houveram discussões sobre a melhor forma de levá-lo em sala de aula), o que indica um fomento à discussão. O que é muito bom.
Enquanto na Coreia do Sul, as mulheres de conforto foram tão abandonadas e deixadas à margem da sociedade quanto na China, mas por motivos diferentes. Um produto sociocultural que reflete isso muito bem, e de forma dinâmica, é o quadrinho GRAMA - que traz a história de uma "mulher de conforto".
Respondendo à segunda pergunta, no momento o que percebi ser minha maior dificuldade é ter acesso à fontes materiais chinesas, ou que estão na china, por muitos museus não terem acervos virtuais.
Espero ter respondido às perguntas, obrigada novamente por fazê-las.
Atenciosamente, Isabella Padula.
Olá, Isabella,
ResponderExcluirEm primeiro lugar parabéns pela tua pesquisa! Chegou a vez de dar voz as mulheres dentro das pesquisas academicas e da historiografia! Te recomendo a leitura da obra As boas mulheres da China de autoria de Xinran, pode contribuir muito com a temática que tu pesquisas. Uma dúvida que me surgiu é de como a sociedade chinesa lida com esta temática, se ocultando ou debatendo sobre. Obrigada!
Isabella, obrigado pelo texto! Li com bastante interesse sua pesquisa e espero que seu projeto dê muitos frutos!
ResponderExcluirLogo no início de seu texto me surgiu uma questão que não havia pensado até então. Você comenta que as ditas "mulheres de conforto" "foram submetidas à situação de escravidão sexual pelos membros do exército de países reconhecidamente pertencentes ao Eixo". Isso significa que não foi só o Japão que cometeu tais crimes e outros países do Eixo também participaram disso? Sempre que ouso e leio sobre essa questão, é o nome do Japão que aparece com mais destaque e, ao ler seu texto, fiquei com essa dúvida. Se você puder me ajudar a entender melhor essa questão eu ficaria muito grato!
Felipe Chaves Gonçalves Pinto
Olá, Felipe! Fico muito feliz com sua pergunta.
ExcluirQuando estava procurando bibliografias para minha pesquisa me deparei com a mesma indagação e poucas fontes que pudessem respondê-la.
Algo que me fez colocar essa afirmação no texto, foi pensar nos países que foram parte do Eixo, ou o apoiavam, mas não necessariamente são conhecidos por isso aqui no Ocidente. Como a Birmânia ou Myanmar, Tailândia, Vietnam (pré-revolucionário) e outros países do Leste Asiático. No livro "Unfolding the Comfort Women Debates" de Mari Kimura, e no livro "The Comfort Women" de Gerge Hicks, são mencionadas as 'estações de conforto' em países como a Birmânia e Vietnam, além disso, especialmente no caso da Birmânia, é mencionado como as 'estações de conforto' eram luxuosas e como as mulheres recebiam 'luxos' dos oficiais e generais (que não eram necessariamente japoneses, mas vários oficiais de outros países do eixo frequentavam as 'estações'). Porém, realmente não encontrei menções específicas sobre os principais países do Eixo que conhecemos no Ocidente, Itália e Alemanhã, o que não necessariamente os torna excludente da responsabilidade das atrocidades acometidas contra as "mulheres de conforto" no leste asiático, por conta dos apoios políticos, econômicos, e por não ter como provar que nunca frequentaram estações de conforto japonesas. Isso se deve muito pela queima de documentos no momento da derrota japonesa na Guerra, que infelizmente escondeu fontes que nunca poderemos recuperar.
Mas no caso da Birmânia, uma coisa é certa: quem frequentava as estações de conforto 'mais luxuosas' eram cargos mais relevantes dos exércitos. Os autores mencionados acima até comentam como chegavam algumas tecnologias como gramofones nas estações.
Deixarei a seguir um trecho do livro do Hicks que fala sobre as 'Estações' da Birmânia, em tradução livre:
"De acordo com um relatório de guerra psicológica dos Estados Unidos sobre uma estação de conforto no norte da Birmânia, durante a maior parte do tempo não houve escassez de bens de primeira necessidade. Também houve muitos luxos, como gramofones. As mulheres tinham sido incluídas em reuniões desportivas, piqueniques e festas, e era mais do que provável que as tropas acolhessem favoravelmente a companhia feminina nessas ocasiões, para além da função principal das mulheres. Noutras áreas, sobreviveu uma fotografia de mulheres de conforto num encontro desportivo em Taiwan. Todos os tipos de organizações no Japão durante a guerra insistiram no exercício físico para o seu pessoal." (Hicks, 1994, p.66)
Mais uma vez, obrigada pela pergunta e pelas boas palavras!
Atenciosamente, Isabella Padula.
Primeiramente gostaria de lhe parabenizar pelo importantíssimo tema abordado!
ResponderExcluirComo vc deixa claro no seu texto, as mulheres chinesas sofreram dupla violência: patriarcalismo chinês e imperialismo japonês
Gostaria de saber se as mulheres dos outros países, como Coreia do Sul e Filipinas que foram vítimas dessas estações de conforto japonês, tiveram algum apoio de suas nações pós guerra, ou assim como as chinesas, sofreram e sofrem com o patriarcalismo?
Olá Isabela. Gostei muito do seu texto e fiquei interessado em saber como será o desenvolvimento de sua pesquisa. Você toca em temas sensíveis, seja em termos dos direitos humanos (aqui pensando principalmente no direito à memória), seja em termos de uma discussão feminista sobre gênero, e mesmo sobre a história da China no contexto asiático de forma geral. Nesse último caso, fiquei curioso para saber se há algum posicionamento do governo da China continental, ou mesmo de Taiwan, sobre esse triste episódio. No mais, parabéns pelo projeto e pela pesquisa.
ResponderExcluirRobson Lins Souza Damasio de Oliveira
Olá Isabella,
ResponderExcluirPrimeiramente, parabéns pelo ótimo projeto de pesquisa! Gosto de mídia asiática e de pesquisar a respeito da história da Ásia, então já ouvia ouvido falar a respeito das mulheres de conforto, mas via abordagens apenas da perspectiva coreana. Achei interessante e muito importante a abordagem dessa temática do ponto de vista chinês. Assim, mesmo que o recorte dessa pesquisa seja a China, você chegou a pesquisar a respeito das mulheres de conforto em outros países? Se sim, notou alguma particularidade do contexto chinês? O aumento da violência com as mulheres com algum envolvimento, ou parentes envolvidos, no partido comunista chinês seria algo particular?
Olá, Karen. Muito obrigada pela pergunta!
ExcluirSem dúvidas, a participação, correlação ou participação de familiares ao partido comunista, Guomidang, era uma particularidade do "sistema de conforto" implementado na China. Dentre os 12 relatos de mulheres que estudo, uma delas relata a participação no partido, participação essa que nunca foi reconhecida pelos seus companheiros mesmo após o final da guerra (por ela ser considerada "traídora", uma vez que "serviu aos interesses japoneses", quando na verdade ela havia sido sequestrada e levada ao sistema de conforto) e outra delas relata a participação de um familiar, um tio ou irmão, não me recordo com exatidão. Mas sim, é um diferencial.
Nos relatos elas contam como a violência com elas era mais pessoal, levavam-nas muitas vezes a cavernas ou lugares mais afastados para violentá-las tanto sexualmente como fisicamente em busca de respostas sobre o partido comunista. Uma delas conta também como sua família estava ameaçada caso ela tentasse fugir... de fato, um diferencial muito cruel.
Acredito que outra particularidade era de que as mulheres chinesas geralmente ficavam na própria China, diferentemente das "mulheres de conforto" coreanas que eram levadas à outros países, principalmente à China, sob domínio japonês.
Mais uma vez agradeço pela pergunta, e espero tê-la respondido.
Atenciosamente, Isabella Padula.
Olá Isabella! Primeiramente parabéns pelo seu texto, pouco sabia sobre essas mulheres de conforto que sofreram atrocidades do facismo do Japão, pois o que acaba ficando mais em vogue são as mulheres de conforto coreanas. Minha dúvida é a seguinte: assim como as coreanas, essas mulheres tem uma parcela de apoio das mulheres mais novas? que talvez por um pensamento diferenciado da geração de suas mães e avós, possa estar aberta a levantar debates e ajudar na causa do não esquecimento dessas mulheres. E se houver, tem havido pressão por parte delas ao Estado e ao Japão em busca de reconhecidas e ressarcidas de alguma forma?
ResponderExcluirDesde já agradeço pela atenção e novamente parabéns pelo excelente texto!
Olá Isabella!!! Parabéns pelo seu texto !
ResponderExcluirNão conhecia as mulheres de conforto chinesas, só tinha conhecimento das coreanas. Em tempos de grande visibilidade coreana você acredita que dramas/series, como o k-drama Tomorrow podem ser usados como uma lente contemporânea para compreender os impactos psicológicos e sociais das violências históricas, como as sofridas pelas mulheres de conforto chinesas, especialmente no que diz respeito ao silêncio e à ressignificação da dor?
Olá, Maria! Obrigada pelo interesse no meu texto.
ExcluirGostei muito da sua pergunta. Já assisti o Kdrama que comentou mas não me recordo se comentam algo sobre as "mulheres de conforto", porém acredito que especialmente em casos como este, que ocorreu no leste asiático, usos de produtos socioculturais são extremamente importantes para criar uma memória coletiva sobre esses acontecimentos. Principalmente se considerarmos a quantidade de bens materiais e fontes materiais que foram perdidas durante a derrota japonesa, pois muito foi queimado para ocultar os crimes de guerra. Nesse caso em específico, em que poucas "mulheres de conforto" ainda estão vivas, produtos socioculturais como estes podem sim ser ferramentas fundamentais de difusão histórica.
Posso trazer dois exemplos de produtos socioculturais que fizeram isso de forma excelente: o primeiro, um quadrinho produzido na Coreia do Sul que fala justamente sobre, e na perspectiva, de uma mulher de conforto coreana. O quadrinho se chama GRAMA, inclusive, fica a recomendação.
Outro exemplo seria do anime Golden Kamuy, que fala sobre o povo Ainu do Japão. O contexto é totalmente diferente mas foi usado nesse sentido: de propagar um aspecto histórico, no caso deste anime uma cultura e um povo originário do Japão, e criar uma memória coletiva sobre um genocídio, que foi o que ocorreu com eles, que pouco se comentava antes.
Para finalizar minha resposta, recomendo assistir o filme 二十二, uma produção chinesa que retrada justamente a situação das mulheres de conforto. O filme começou a ser produzido em 2014 e foi lançado na China em 14 de agosto de 2017, Dia Mundial do Memorial das Mulheres de Conforto. No início da produção, haviam 22 mulheres, vítimas do sistema de conforto, ainda vivas. Porém no momento do lançamento, restavam apenas 8. O que mostrou a urgência de uma produção nacional a cerca deste asunto. Caso tenha interesse, https://www.youtube.com/watch?v=VZ1wyuhIDj0 .
Mais uma vez, agradeço pela pergunta e espero tê-la respondido :)
Atenciosamente, Isabella Padula.