A QUEDA DA ÚLTIMA UTOPIA: IMAGINAÇÕES DE
FUTURO E TECNOLOGIA NO ROMANCE VAGABONDS (2016)
DE HAO JINGFANG
Este texto
medeia as perspectivas de futuro e tecnologia no cenário literário-inteletual
chinês, elegendo Hao Jingfang, em hipótese ainda a ser explorada no decurso do
mestrado da presente autora, de que sua trajetória acadêmica e ficcional nos
permite uma observação do cenário contemporâneo na China, no que tange às percepções,
que se entrelaçam, entre tempo e técnica; futuro e tecnologia. A abordagem
proposta se fundamenta na ideia de "circulação cultural", que concebe
a cultura como uma entidade dinâmica, na qual seus produtos são ativados pela
mesma força sociocultural. Essa energia cultural, que flui através de textos
gerados canônicos e de "textos menores", literários e não literários
de uma determinada época, é o motor que impulsiona as complexas relações de
poder nas sociedades modernas
(GALLAGHER; GREENBLATT, 2001).
Logo, a
ênfase não está em encontrar um ponto de ancoragem externo à obra de arte para
garantir uma interpretação literária, mas em situar a obra em relação a outras
práticas de representação que operam na cultura em um determinado momento de
sua história (GREENBLATT, 1991). Nesse sentido, é importante buscar compreender
como a perspectiva de um Novo Historicismo pode ser repensada na China do
século XXI. Como Andrea Riemenschnitter (2015) apontou, o desafio da
compreensão das narrativas chinesas não passa tão somente pela leitura calcada
no uso do instrumental teórico ocidental, mas, também, de como essa intervenção
requisita entender os usos e adaptações realizadas pelos chineses em um
movimento de hibridização de suas leituras canônicas em diálogo com distintas
perspectivas geoculturais.
Isto posto,
é necessário apresentarmos brevemente autora e obra, para enfim tratarmos de
hipóteses levantadas por essa pesquisa, e suas conclusões preliminares. Hao
Jingfang é uma das mais bem-sucedidas escritoras chinesas da atualidade. Nasceu
em 1987 na cidade de Tianjin — uma das principais metrópoles da China
continental — e graduou-se em Física na Universidade Tsinghua, onde, em 2013,
obteve seu doutorado em Economia. Entre 2013 e 2018, desempenhou a função de Diretora
Adjunta do Departamento de Pesquisa I na Fundação Chinesa para o
Desenvolvimento (CDRF). Atuou como pesquisadora no Instituto Berggruen em 2019
e 2020, estudando as formas que o desenvolvimento tecnológico impacta a
cognição coletiva. Sua carreira de escritora se divide e é inspirada pela sua
atuação profissional: embora seus interesses se espraiem para a área de
Educação e empreendimentos privados, é sua trajetória acadêmica que Han
salienta ter forte influência em sua escrita (LI, 2019). Após a publicação de
alguns contos em revistas especializadas, em 2014 lançou sua primeira novela,
intitulada Folding Beijing. Em 2016,
o livro, através da tradução de Ken Liu para o Inglês, foi laureado na
categoria de Melhor Novela no Prêmio Hugo (Hugo
Awards) — a mais distinta premiação do gênero de ficção-científica mundial.
Hao tornou-se, então, a primeira mulher chinesa a ganhar o prêmio. Em 2016,
publicou seu primeiro romance, Vagabonds,
traduzido para a língua inglesa (2020), também por Ken Liu.
A
narrativa de Vagabonds inicia no ano
de 2190 na Terra, no ano 40 em Marte; 30 anos após uma violenta guerra de
independência que tornou Marte, antes colônia terráquea, em um autônomo governo
comunista, que se opõe frontalmente às estruturas capitalistas da Terra. Luoying
Sloan, a protagonista, é neta do cônsul marciano, Hans Sloan e, aos 13 anos,
foi selecionada para integrar o Grupo Mercúrio, o qual reuniu os jovens de mais
destaque de Marte para que estes passem seus anos de formação na Terra — gesto de
aproximação diplomática entre os dois planetas. Acompanhando o retorno de
Luoying após cinco anos na Terra, observamos o
desencantamento com o que seria a utopia marciana, e suas dificuldades em
conciliar os modos de vida que conheceu na Terra àqueles de Marte. Suas tentativas
de promover reformas em seu planeta natal e, ao mesmo tempo, formular uma nova
identidade, tornam Luoying uma figura perpetuamente à margem, errante; incapaz,
por fatores endógenos e exógenos, de conciliar as distintas noções de
temporalidade e individualidade que vivenciou em ambos os planetas.
Tanto quanto
no caso de outros/as autores não europeus, a recepção dos livros de Hao é
ambivalente. Enquanto as obras de Hao são lidas como 'sinofuturistas' no
ocidente (Cixin, 2006), parte da crítica chinesa localiza estes novos autores
em uma “New Wave” da ficção-científica. Segundo Gabriele de Seta (2021), o
primeiro uso do termo ‘sinofuturista’ se encontra no ensaio de 2003 Fei ch'ien rinse out: Sino-futurist
under-currency, escrito pelo músico e teórico cultural Steve Goodman.
Inspirado pelo movimento Afrofuturista, Goodman combinou referências
tradicionais chinesas, sindicatos do crime organizado e redes de comércio
clandestino com a popularização da cibernética e da informática, pressupondo
uma turbulenta ascensão da Ásia Oriental (ibid.).
No entanto, argumenta Virginia L. Conn (2021), há uma dualidade observável
neste projeto. Ao passo que a narrativa sino-orientalista é reconhecida, e, em função disso, encontra recusa por parte de certos
autores a dialogarem com a categoria sinofuturista, outros utilizam dessa
popularidade instrumentalizando-a, com propósito de expandir a visão de mundo e
projeções de futuro chinesas.
Xia
Jia (2016), intelectual e autora de ficção, afirma que as ponderações
contemporâneas de autores chineses se situam em um longo debate, acadêmico e
político, sobre uma perspectiva de fracasso do comunismo e uma crise
capitalista, acompanhado do processo de globalização e novas formas de
sociabilidade no cotidiano chinês. Não obstante, Xia argumenta que as relações
sino-ocidentais se materializam nas leituras e assimilações de arquétipos e
temas comuns à ficção científica produzidos no Ocidente. Há, em sua leitura, um
desejo de operar nessas fronteiras entre China e Ocidente; fronteiras entre
conhecido e desconhecido, eu e outro, Oriente e Ocidente. Esta pesquisa parte
do princípio de que a autora analisada, Hao Jingfang, localiza-se nessa
“fronteira”, uma vez que a narrativa de seus livros explicita uma crítica às
circunstâncias internas à sociedade chinesa, enquanto, simultaneamente, emprega
leitmotive em diálogo com seu público
global, especificamente em Vagabonds,
após a repercussão de Folding Beijing
em países como Estados Unidos e Inglaterra.
A
questão da temporalidade, central ao nosso problema, tem como cerne categorias
interpretativas de futuro, utopia e distopia. Fátima Vieira (2010) alega que
utopia tem sido definida, historicamente, a partir de quatro características:
a) os elementos da sociedade imaginada; b) a forma literária na qual a
imaginação utópica se cristaliza; c) a função da utopia; d) o desejo por uma
vida melhor, causado por um descontentamento pela sociedade na qual se vive.
Essa última característica, na percepção de Vieira, seria a mais importante,
uma vez que a autora entende utopia como uma questão de atitude, uma reação a
um presente indesejável e aspiração por possíveis alternativas — em
concordância com Ernst Bloch, que via a esperança como principal energia da
utopia. No caso da distopia, a imaginação de outras realidades se subsidia,
parcialmente, em pessimismo e uma possível “irreversibilidade quanto à direção
histórica” (Silva, 2016) dos aspectos mais prejudiciais da sociedade. No
entanto, de acordo com Vieira (2010), as representações de futuros distópicos
frequentemente são encaradas como cenários a serem prevenidos. Elas servem como
um meio de conscientização das questões prementes, com o propósito de estimular
melhorias nos âmbitos político e social.
O
gênero da ficção científica — que usualmente discute configurações utópicas e distópicas
— foi introduzido a leitores chineses no início do
século XX, primeiramente através de traduções de romances baseadas em traduções
japonesas. O intelectual e político reformista Liang Qichao cunhou o termo kexue xiaoshu (ficção científica) pela
primeira vez na história do idioma. Esta seria a primeira “era de ouro” da
ficção científica chinesa, a qual durou cerca de dez anos, entre 1902 e 1911,
com a produção de inúmeros romances e novelas que conjugavam temas como
fantasia científica, utopias políticas e otimismo tecnológico (Song, 2015).
Pode ser dito, à vista disso, que desde os fins da Dinastia Qing, a ficção
científica chinesa “foi instituída principalmente como uma narrativa utópica
que projetou o desejo político de reforma da China num mundo idealizado e
tecnologicamente mais avançado” (ibid).
Lu Xun, entretanto, ainda que principal tradutor de Júlio Verne, eventualmente
optou por investir em um gênero literário realista, capaz de expor os perigos
do confucionismo para a sociedade. Logo, durante grande parte do século
XX, a ficção científica permaneceu à margem da literatura moderna chinesa
(Song, 2018). A renascença do gênero atribui-se à publicação do romance China 2185 de Liu Cixin em 1989. Desde
então, para além de Liu Cixin, figuras como Han Song, Chen Qiufan, Fei Dao e
Hao Jingfang têm se destacado no movimento nomeado “New Wave”. Apreende-se,
portanto, que uma das características distintivas da ficção científica na China
é sua estreita relação, poética e política, com os projetos de futuro do país.
No
contexto contemporâneo, sublinha-se que o declínio relativo da hegemonia
estadunidense no âmbito geopolítico alterou as relações externas de diversos
países, em especial a China, que vem tendo a oportunidade de estabelecer-se
como uma grande potência emergente. Desde 2013, Xi Jinping tem adotado uma
política externa proativa, e, neste mesmo ano, estabeleceu novos objetivos para
a nação, que denominou de “o sonho da China” (Carriço, 2013), ligado a uma
iniciativa de alterar o comportamento padrão do país; na esfera diplomática, o
desígnio é expandir o sonho e o mundo chinês, pela defesa do “desenvolvimento
pacífico, cooperação e benefício mútuo” (Benjamin; Pennaforte; Schierholt;
2021). Song
atribui a esses empreendimentos político-culturais um avivamento das
literaturas utópicas e distópicas na China (Song, 2021). Assim, as mais
recentes produções dessa “New Wave” — incluindo os livros de Hao — dialogam e,
sobretudo, confrontam o “sonho da China”, propondo um debate sobre a
ambiguidade de dilemas morais pertinentes a este projeto e sofisticadas
representações do poder da tecnologia ou das tecnologias de poder (Song, 2018).
Assim,
debates concernentes à tecnologia, sejam eles literários, acadêmicos etc, se
manifestam com propósitos interculturais, questionando problemáticas
etnocêntricas e pensando alternativas discursivas no escopo de seus objetivos.
O filósofo Yuk Hui (2020) elabora o conceito de tecnodiversidade como resposta à
narrativa dominante na história e filosofia das ciências, as quais, muitas
vezes, se concentram no desenvolvimento tecnológico ocidental e ignoram
histórias e práticas tecnológicas de culturas não-ocidentais, desconsiderando,
inclusive, o papel chinês como um centro de produção de tecnologias na era
pré-republicana (Needham, 1968). A tecnodiversidade questiona, portanto, a
supremacia das abordagens ocidentais, apontando para novas possibilidades que
surgem do encontro entre a tecnologia e culturas anteriormente colonizadas.
Isso promove um diálogo intercultural que amplia nossa compreensão da natureza
multifacetada da tecnologia e suas potenciais trajetórias de desenvolvimento. O
conceito é fundamental para nós uma vez que expõe as possibilidades de
diferentes entendimentos de técnica, tal qual retratado no romance na relação
entre natureza, ferramenta e intervenção ecológica nas sociedades de Terra e
Marte. Retomando,
então, ao procedimento anteriormente iniciado, chamando atenção ao artigo
intitulado Interpreting Socialism and
Capitalism in China: A Dialectic of Utopia and Dystopia, escrito por Roland
Boer e Zhixiong Li. Em suas observações, os autores introduzem a ideia de uma
dialética entre utopia e distopia, conectada às tensões entre capitalismo e
comunismo na China pós-socialista; em suas palavras, “a distopia pode surgir da
utopia, e a própria definição de utopia requer uma presença distópica ou, pelo
menos, a sua ameaça”.
A utopia crítica incorporada por Hao se
circumscrenve, portanto, na relação inerente entre distintas imaginações de
futuro; e, particularmente em seu caso, o seu atrelamento ao desenvolvimento
tecnológico observado nas últimas décadas, e suas ameaças ao ecossistema
político e natural do mundo. Na perspectiva do crítico Lyu Guangzhou, Vagabonds tem seu êxito enquanto utopia
crítica ao criar uma “negação da negação”, um processo infinito de
transformação. Ele compara a história de Luoying à jornada de Shevek em Os Despossuídos, de Ursula K. Le Guin, e
sugere que os debates entre socialismo e capitalismo, entre ordem e liberdade,
são como um ciclo interminável, representado por um laço de Möbius. Essa
dinâmica reflete tensões entre utopia e distopia, mas também aponta para a
esperança de um futuro além do pós-socialismo, uma nova alternativa que supere
os dilemas dos sistemas atuais. De acordo com Lyu, “A própria utopia, de fato,
despertou a esperança por uma alternativa e por um mundo supostamente melhor
para os esquerdistas na Terra. Mas é também uma utopia ambígua, aberta a
desafios e reflexões. Assim, ela evoca sua própria esperança no sentido
blochiano de 'ainda-não'."
Referências
Giovana do Nascimento Bruno é Mestranda em História Social da Cultura (PUC-Rio)
Orientador: Prof.º Dr.º Henrique Estrada (Dept. de História-PUC-Rio)
Co-orientador: Prof.º Dr.º Pedro Silveira (FFLCH-USP)
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Olá, Giovana.
ResponderExcluirMuito importante a forma como o seu texto destaca como a ficção científica pode servir como um campo para debates interculturais e políticos, especialmente quando explora as contradições entre sistemas ideológicos.
A fim de ampliar o debate, se possível comente um pouco sobre o questionamento seguinte: Como a noção de tecnodiversidade apresentada por Yuk Hui pode contribuir para uma compreensão mais ampla das críticas ao "sonho da China" nas narrativas de Hao Jingfang?
LEITOR: Márcio Douglas de Carvalho e Silva
Prezado Márcio, agradeço imensamente pela sua leitura e pergunta! O conceito de tecnodiversidade de Hui nos permite explorar distintas visões sobre tecnologia e seus usos, compreendendo-a como parte da cultura e da História e, nesse sentido, não como um processo evolutivo unívoco e universal. Enquanto ferramenta heurística para a análise do livro de Hao, a tecnodiversidade, na minha perspectiva, além de expandir a própria ideia de tecnologia, privilegia o estudo da narrativa em sua relação política e ideológica, possibilitando a investigação que Hao — assim como outros autores do movimento sinofuturista — oferece novas alternativas e relações com a tecnologia, novas formas de articulação entre tecnologia e temporalidade. Hui, em seu livro "The question concerning technology in China: an essay in cosmotechnics", aponta para um desenvolvimento tecnológico chinês contemporâneo pautado por uma percepção a qual ele denomina Ocidental, de lógica sobretudo capitalista, baseada em ideias como progresso e evolução, que seriam danosas especialmente pelo momento de crise climática que vivemos. O “sonho da China”, então, acaba por representar esse caminhar em direção a uma perspectiva e uso de tecnologias de poder perigosas, ignorando o próprio histórico filosófico sobre a técnica da China antiga até o século XX. Dessa forma, entendo a tecnodiversidade como um caminho para avaliar o projeto tecnológico chinês atual, suas críticas e as alternativas propostas, como o faz Hao; é necessário ter cuidado, é claro, com o posicionamento crítico de Yuk Hui ao Estado chinês, e certas diferenças entre Hui e Hao, compreendendo, também, em que medida ambos contrariam ou se coadunam com o projeto de inserção internacional do PPCh. Em suma, questionar qual o espaço da ficção e da imaginação na formulação de temporalidades, espaços e histórias alternativas em Vagabonds.
ExcluirComo você enxerga o papel da literatura de ficção científica na promoção de reflexões sociais e políticas em um mundo cada vez mais globalizado?
ResponderExcluirEm Vagabundos, você explora dois sistemas sociais contrastantes. O que inspirou essa abordagem, e como esses sistemas dialogam com as sociedades atuais?
Qual a importância de pensar futuros possíveis, especialmente em países com grandes desigualdades sociais e econômicas, como o Brasil?
A China aparece frequentemente como um exemplo de progresso tecnológico, mas também enfrenta críticas sociais. Como essas tensões moldam a ficção científica no país?
LUZIA MARIA PEREIRA ROCHA
Prezada Luzia, muito obrigada pelas interessantes perguntas! Irei respondê-las separadamente.
ExcluirA ficção científica é um espaço fértil para exploração, seu caráter especulativo inspirado por hipóteses formuladas na realidade empírica, ambiciona promover um estranhamento cognitivo; isto é, sugerir imagens ou realidades criativas que divergem das contingências do real-cotidiano, porém por meio de uma abordagem que mantém continuidade com o contexto de sua criação. Sua popularidade, que alcança o nível global (ainda que com predomínio de autores estadunidenses e europeus em termos de leitores e recepção crítica), permite que diversas visões de mundo ganhem notoriedade. O diferente, o estranho, o Outro, ganha voz, e, em mundo de tendência globalizante e insistente sincronização cultural/política/econômica etc, essas reflexões se tornam centrais para que dicotomias e esforços homogeneizantes sejam confrontados.
A inspiração advém do meu interesse na relação entre literatura e realidade. As sociedades criadas por Hao dialogam com o cenário pós-socialista chinês e disputas políticas entre países com modelos de governo e percepção sobre indivíduo, História e tempo distintos, mas chamo atenção que Terra e Marte não operam como espelho de, por exemplo, Estados Unidos e China, respectivamente; diria exatamente o oposto, a exploração da ambiguidade em ambas as sociedades e suas limitações se interseccionam com questões internas à China e ao PCCh, e outras experiências que influenciaram Hao. Ainda, saliento que minha abordagem é pautada pelo Novo Historicismo, o qual, apropriando-se da concepção de cultura de Clifford Geertz, propõe que se tome a cultura metaforicamente como um texto, passível de ser interpretado A metodologia proposta se fundamenta na ideia de "circulação cultural", que concebe a cultura como uma entidade dinâmica, na qual seus produtos são ativados pela mesma força sociocultural. Essa energia cultural, que flui através de textos considerados canônicos e de "textos menores", literários e não literários de uma determinada época, é o motor que impulsiona as complexas relações de poder nas sociedades modernas. Logo, a ênfase não está em encontrar um ponto de ancoragem externo à obra de arte para garantir uma interpretação literária, mas em situar a obra em relação a outras práticas de representação que operam na cultura em um determinado momento de sua história.
3) Creio que a imaginação é fundamental, particularmente pelo momento que tem sido experienciado e amplamente discutido — o Antropoceno. Países como o Brasil, como dito, aqueles que enfrentam grandes desigualdades e sofrem de maneira mais intensa com a crise climática. Nesses cenários, afunilam-se perspectivas de futuro, em especial aquelas que se propõe positivas, ou que buscam enfrentar os problemas vivenciados ao redor do mundo. Assim, a imaginação, o exercício imaginativo, tem um potencial construtivo considerável para que se pensem novas formas de viver e estar no mundo.
4) A ficção científica chinesa sempre esteve em relação próxima com projetos políticos ou o Estado chinês, considerando a relevância da literatura utópica e sua afinidade, e certa participação, no gênero de ficção científica. Os avanços técnicos e o crescimento do discurso tecnológico não apenas na China, mas em todo mundo, dada sua influência, provocam questionamentos acerca dos caminhos escolhidos no âmbito social e político. Em Hao, destaco a ideia de ecotopia, isto é, a escrita de uma literatura utópica e de ficção científica que centraliza a importância do cuidado com a natureza, e a imaginação de uma tecnologia que se diversifica e ressignifica, em busca de uma harmonia com o cosmos.
Estimada Giovana, parabéns pelo instigante texto. Gostaria de saber se sua análise de Vagabonds permitiu diagnosticar novas atitudes de grupos sociais chineses em relação ao passado, isto é, se trata-se de uma obra que, em caráter de ficcionalização do futuro, produz novas imagens e sentidos do passado.
ResponderExcluirLEITOR: Thomáz Fortunato
Prezado Thomáz, muito obrigada! E obrigada pela pergunta, de fato é um tema muito interessante que atravessa a narrativa de Vagabonds. As conjecturas e temporalidades apresentadas, de fato, buscam desvendar novos significados no passado e orientar a atenção coletiva tanto para o que está ausente no presente quanto para os caminhos a serem trilhados em direção a um futuro desejado; certas ausências, ou excessos, de imagens, memória e sentidos atribuídos, são fundamentais na formulação de ambas as sociedades criadas por Hao. Um fator que me chama atenção é a experiência da Modernidade e sua herança, e a contestação da premissa da centralidade da experiência europeia na sua construção, ou que este seria o télos a ser seguido ou que desenvolve-se naturalmente. Conforme observa Koselleck, há uma sincronização da ideia de tempo e História a partir do século XVIII. Países na periferia ou fora do Ocidente tomam essa sincronização como meta, um posicionamento que Hao, na minha análise até então, se mostra crítica. Há, então, tanto um diálogo com o cenário mundial de globalização, mas em uma perspectiva sinocentrada. Nesse sentido, a agenda literária de Hao tem como foco a reinterpretação da história e das influências culturais chinesas em um mundo globalizado. Ela explora diversas formas de pensamento que se conectam de maneira crítica e propositiva com várias culturas contemporâneas ao redor do mundo, sugerindo uma nova escrita ficcional sobre a construção da Modernidade, questionando a universalidade desse processo e, também, seu impacto na China.
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