GEUM-JA, O CORPO MÓVEL EM CONTRADIÇÃO: UMA ESTÉTICA DO
APRISIONAMENTO EM LADY VENGEANCE (친절한 금자씨) [2006]
No contexto sul coreano do período histórico e
social próximos a trama do longa, de acordo com Kyung Moon Hwang [2017] apenas
nos anos de 1990 os direitos conquistados pelas mulheres garantiam o registro
de crianças e vínculo materno, independente se ocorreu ou não divórcio do
cônjuge, prole fora da institucionalização do casamento etc., essas mudanças
vislumbravam uma maior equidade frente aos homens, embora não garantisse uma
reforma social imediata. Em contrapartida, avançando para os anos 2000, Hwang
[2017] detalha que no período a mulher coreana era majoritariamente retratada
pelos veículos de mídia e do entretenimento, leia-se aqui principalmente nos
K-dramas, voltados aos retratos de interesses materiais, amenidades e uma vida
de consumo. Embora retratada de maneira diferente do que usualmente o papel
feminino era observado na Coréia do Sul dos anos 2000, Lady Vengeance não chega a ser
revolucionário na medida em que o embelezamento de uma protagonista num
contexto de violência e exercendo o seu papel de mãe (mais do que genitora)
tomam conta da estética transmitida pela direção artística, concordando
indiretamente com a pesquisa social de Hwang.
Em complemento, Mulvey afirma que na experiência do
cinema narrativo haveria a construção do prazer visual que é direcionado a
partir do papel do masculino cinematográfico. Isto é, a sexualização da figura
do feminino já estaria incutida na necessidade de prazer do homem socialmente
construído: “A mulher, desta forma, existe na cultura patriarcal como o
significante do outro masculino, presa por uma ordem simbólica na qual o homem
pode exprimir suas fantasias e obsessões.” [MULVEY, 2021, p. 356]. É neste
contexto que a narrativa se molda na apresentação da vingança de Lee Geum-Ja, utilizando o
enquadramento aprisionador da câmera, a montagem dinâmica (temporalmente
fragmentada), e a mise-en-scène (arranjo das roupas de Geum-Ja, da maquiagem, das cores vívidas e escolha artística dos móveis no
apartamento da protagonista). Tudo isso traz a seguinte pergunta: até que ponto
haveria a sua liberdade enquanto figura feminina ao caminhar do encarceramento
a concretização da vingança contra Baek?
Estereótipo da mulher fatal
A percepção do feminino no dormitório hub aponta a
contradição que há na sociedade coreana presente na trama:
Fonte: Lady Vengeance (2006)
O seu apartamento (quarto), é uma espécie de Hub
temporal, em que a experimentação da montagem acontece. Do presente ao passado,
tanto a personalidade quanto as emoções figuradamente femininas de Geum-Ja
são exploradas pelas cores vibrantes voltadas para os tons quentes, com
predominância no vermelho que remete ao sangue que será derramado, a
intensidade dos sentimentos da protagonista contra Baek e a
visceralidade de gerar a sua filha, agora afastada: “A presença da mulher é um
elemento indispensável para o espetáculo num filme narrativo comum, todavia sua
presença visual tende a funcionar em sentido oposto ao desenvolvimento de uma
história, tende a congelar o fluxo da ação em momentos de contemplação
erótica.” [MULVEY, 2021, p. 361]. O momento de pausa na narrativa para a
contemplação estética da personagem enquadrada desloca a intenção de urgência
da protagonista para um lugar de pensamento, isto molda a sua imagem em
contradição com a intensidade das cores. O olhar vago, a posição da mão na cama
e os dedos levemente repousos no queixo procuram uma pose pensada para compor a
fotografia do ambiente. Aqui encontra-se
o início do embate apresentado ao longo do longa-metragem, o espaço restrito da
sua moradia em consonância com a sexualização da protagonista. Os
enquadramentos fechados e no extremo da caracterização entre a beleza puramente
estética da “mulher fatal” e “a mãe santa” predominam na limitação da liberdade
de Geum-Ja.
Estereótipo da mãe santificada
A percepção do que é ser mãe é reforçado
reforçados em contradição com a vingança que ela procura:
Fonte: Lady Vengeance (2006)
O que é ser santa? O trânsito abrupto entre
as qualidades de uma vingadora e uma mãe que deseja se reencontrar com a filha
aparecem nessa tensão entre a cor branca de um vestido longo e a forte
caracterização de uma mulher com vestimenta curta e maquiagem em tons quentes.
O enquadramento fecha a protagonista em posição fetal na medida em que se
debruça sobre o chão. Uma posição de humildade e descanso frente a um poder
maior que diz respeito a cultura cristã. A estagnação em um enquadramento da
imagem que deveria estar em movimento diz respeito aos limites de Geum-Ja
em seu papel estabelecido de mãe vingativa: “A tecnologia fotográfica
[...] e os movimentos de câmera (motivados pela ação dos protagonistas),
combinados com a montagem invisível (exigida pelo realismo), tudo isto tende a
confundir os limites do espaço da tela. O protagonista masculino fica solto no
comando do palco, um palco de ilusão espacial no qual ele articula o olhar e
cria a ação.” [MULVEY, 2021, p. 363]. O papel fixo da personagem perpassa o
olhar masculino, seja ele derivado da construção social embutida no realizador,
ou do que cruza toda uma montagem do que é ser mulher. Na mulher fatal que poderia
também ser mãe santa há um abismo imagético, visto que a câmera prefere ser
colocada de cima para baixo e não na altura da protagonista como nos momentos
de vingança. Essa característica diz respeito ao que Mulvey se refere sobre a
estagnação narrativa e do “protagonista masculino estar solto no palco”, pois
enquanto ela se encontra constantemente limitada pelos papéis enquanto a câmera
formaliza isso (disparidade entre uma personalidade e outra), Baek não
está ali e Geum-Ja nem em movimento estaria. Assim, a câmera mimetiza o
homem e o masculino.
Por outro lado, Deleuze estabelece o que
seria a Imagem-movimento quando afirma que “[...] se perguntamos como se
constituiu a Imagem-movimento, ou como o movimento se emancipou das pessoas e
das coisas, constatamos que isto se deu sob duas formas diferentes [...] da
mobilidade da câmera e por meio do raccord.” [DELEUZE, 2018, p. 48]. Deleuze
remonta ao cinema de atrações, ou mesmo a montagem de atrações o momento em que
a posição da câmera era estática e registrava os personagens caminhando pelo
palco (mesmo do teatro) e isso trazia o movimento que não estava na imagem em
si. Após isso, com a mobilidade da câmera e o raccord (noção de
continuidade de movimento a partir da montagem, ou corte de cena) a imagem de
fato ganha movimento. Mesmo munido de montagem, os trechos de Geum-Ja
são limitados 1) pelo papel pré-estabelecido do que é ser mulher para 2)
limitá-la em enquadramentos onde o antagonista Baek não está presente. Ela não
está em movimento, a única forma de sair da prisão seria pelo pensamento, algo
amplamente observado naqueles momentos de contemplação estético-erótica da
personagem. “O próprio da
imagem-movimento cinematográfica é extrair dos veículos ou dos corpos móveis o
movimento que é sua substância comum, ou extrair dos movimentos a mobilidade
que é a sua essência. “[DELEUZE, 2018, p 45].
Embora Deleuze [2018] institua a Imagem-movimento –
as noções de narrativa, de causa e efeito, de tempo aprisionado – para alcançar
a Imagem-tempo – destituição do tempo e do espaço para a imagem, sendo ela o
pensamento – a sua noção de corpos móveis explica como a fluidez da
movimentação poderia ocorrer sem a montagem cinematográfica, o que poria o peso
do andamento da narrativa nos personagens: “O que acontecia no tempo da câmera
fixa? [...] o movimento não é, assim, liberado por si mesmo e permanece preso
aos elementos, personagens e coisas que lhe servem de móvel ou de veículo.”
[DELEUZE, 2018, p. 47]. Nisso estamos apontando para uma noção que
pode ser referida como a “metaprisão” de Geum-Já em Lady Vengeance,
pois as escolhas aparentes de direção (mesmo que não intencionais), prendem a
personagem em seu papel social opositor de mãe/mulher, seja na trama, seja na
fotografia. O papel do feminino observado em Hwang
[2017] nos indica que as muitas conquistas de emancipação da figura do homem em
território sul coreano só puderam ser almejadas no período dos anos de 1990, o
que aproxima uma obra vista puramente como ficção de uma situação do cotidiano.
Sim, a câmera movimenta-se, há os cortes de cena e o raccord, no entanto a
movimentação ocorre em direção a um único homem: Baek. Enquanto este detém os papéis dados à protagonista. Isto quer dizer
que mesmo na resolução do conflito entre os dois, ela guia o próprio corpo até
ele, em um enquadramento fixo, e não o contrário.
O corpo móvel frente a uma câmera fixa
O aprisionamento de Baek na cadeira não
garante a liberdade de Geum-Ja, pois os seus papéis já estão definidos
desde o início do enredo:
Fonte: Lady Vengeance
(2006)
As cores não são claras nem vibrantes, o
vermelho vinho está presente nas cortinas, a iluminação segue a proposta do
sequestro e da seriedade do processo de tortura que o antagonista sofre (também
pelos pais de outras crianças, vítimas do personagem). O ponto crucial é a
fotografia da resolução da vingança, no encontro entre Geum-Ja e Baek
há o movimento da protagonista em direção a ele, o que é oposto aos momentos de
estagnação e contemplação vividas por ela ao mesmo tempo em que a câmera repousa
e fixa-se, assim como nos momentos supracitados. Ao final, a vingança torna-se
coletiva e toda a narrativa prende-se ao homem, ao masculino.
“Num mundo governado por um desequilíbrio
sexual, o prazer no olhar foi dividido entre ativo/masculino e passivo/feminino.
O olhar masculino determinante projeta sua fantasia na figura feminina,
estilizada de acordo com essa fantasia.” [Mulvey, 2021, p. 361]. O olhar do
masculino permeia Geum-Ja, a aprisionando em enquadramentos fixos e
fechados, em suas camadas separadas e delimitadas entre mulher fatal e mãe
santificada, para desembocar na vingadora. Uma forma de estilização condizente
com a visão do masculino. Baek manipulou toda uma vida da personagem feminina e
ao final o embate da vingadora ocorre dentro dos limites que ele impõe, visto
que Geum-Ja não o executa.
A estética do aprisionamento de Geum-Ja
se mostra na utilização de enquadramentos restringidos dos momentos de
intimidade da personagem, dicotomizando a visão do que seria a mulher fatal e a
mãe santificada. As raízes sociais do olhar masculino frente a uma sociedade em
transformação permeiam a realização do longa, apontando a câmera como
masculina, ditando o enredo e limitando a ação da própria personagem que
finaliza a própria vingança a partir de outras vítimas de Baek. Enquanto
a execução do masculino possa ocorrer, a movimentação de Geum-Ja em
direção ao antagonista encontra-se no limite da liberdade, o que mesmo com a
câmera fixa, não apresenta movimento. Seria a contradição do corpo móvel
feminino em Geum-Ja, no qual a fluidez dos movimentos a guia para uma
única figura, a do olhar do masculino.
Referências
Fernando
de Barros Honda é doutorando em Filosofia pela PUCPR, mestre em Comunicação e
Linguagens com bolsa PROSUP do PPGCom da Universidade Tuiuti do Paraná.
Graduado em fotografia. Pesquisa espectatorialidade no audiovisual e estética
asiática. Tem interesse em história e filosofia da estética. Contato:
ferhonda@icloud.com.
DELEUZE,
Gilles. Imagem-tempo. Tradução: Stella Senra. São Paulo: Editora 34,
2018.
HWANG,
Kyung Moon. A history of Korea: an episodic
narrative. England: Palgrave, 2017. p. 235-245.
MULVEY, Laura. Prazer visual e
cinema narrativo. In: XAVIER, Ismail. A experiência do cinema
(antologia). Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra, 2021.
LADY
vingança. Direção: Park Chan-Wook. Produção: Videolar s. a. São Paulo: Platina
Filmes/Golden Filmes, 2006. 1 DVD. 116
min. NTSC, color.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirTexto muito bom, parabéns! Fiquei feliz de ver o meu filme favorito sendo tema neste simpósito.
ResponderExcluirVocê considera que essa dicotomia nos enquadramentos que a limitam como uma mulher fatal ou mãe santificada prejudicam a existência da Geum-Ja como uma personagem feminina forte na ficção?
Gabriele Diniz Maia
Obrigado, Gabriele! Geum-Ja permanece forte, a meu ver os papéis que lhe são imputados dizem respeito a um contexto social bem específico. Se levarmos em conta que o filme é uma produção podemos correr o risco de esvaziar a arte pela arte, sabe? Portanto, quando fazemos conexões com algumas características sociais do período isso serve para contextualizar e aprofundar o que poderia estar acontecendo no entorno daquela personagem. Sim, Geum-Ja está aprisionada em diversas formas, ao chegar no final da vingança, me parece que ela toma para si as contradições no momento em que enterra o rosto no bolo. A própria contradição de algo doce em comparação com tudo o que vinha acontecendo.
ExcluirCom base na teoria de "Estilo Indireto Livre" de Pasoline (1966), poderíamos concluir que a mise-en-scène é modificada de acordo com o monólogo interior vivido pela protagonista?
ResponderExcluirA resposta para a sua pergunta é "com certeza", Anna! Está aí a grande questão do aprisionamento vivido pela personagem Geum-Ja. A câmera é masculinizada, e o antagonista apresenta o masculino, assim, ambos a aprisionam. As aparentes contradições de mãe santa, vingadora e mulher fatal estão repousos na estética geral da mise-en-scène, principalmente nos momentos citados no texto. Como não podemos ter certeza de qual seria a intenção do realizador – pouco importa nesse caso – podemos inferir que em cada etapa da construção da cena diz respeito ao que Geum-Ja sente, pensa e vive. Embora tudo isso seja uma construção ou aprisionamento moldados socialmente.
ExcluirPrimeiramente, um excelente texto! Gostaria de saber se por esta perspectiva podemos dizer que independente do papel de mãe santificada ou mulher fatal, e até o de vingadora, a protagonista não alcançaria a libertação final? Continuaria ela, mesmo vitoriosa e uma mostra dos direitos conquistados pelas mulheres sul-coreanas, aprisionada ao olhar e poder masculino?
ResponderExcluirOlá, Pedro! Geum-Ja não está liberta, embora esteja vitoriosa. Essa relação com os direitos sociais conquistados pelas mulheres sul-coreanas está clara em toda a luta que a personagem trava contra o masculino. O que a está vigiando (câmera) e o que manipulara os seus passos (Baek). Ou seja, embora conquistados os direitos, a liberdade ainda não é garantida, pois a efetivação na sociedade demanda um esforço maior, ainda que seja uma etapa indispensável e correção cultural.
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