Fernando de Barros Honda

 

GEUM-JA, O CORPO MÓVEL EM CONTRADIÇÃO: UMA ESTÉTICA DO APRISIONAMENTO EM LADY VENGEANCE (친절한 금자씨) [2006]


 Último filme da trilogia Vingança do realizador Park Chan-Wook, Lady Vengeance (também conhecido por Sympathy for Lady Vengeance) apresenta Lee Geum-Ja encarcerada do convívio social por um crime que lhe foi imputado. Ao ser libertada da prisão, segue o rastro de Baek, aquele que a chantageou para aceitar a clausura em seu lugar, enquanto, independente deste ato, sequestra a sua única filha. Entre o comedimento e a disrupção, este seria o ambiente do embate entre a câmera e a montagem que movimentam a imagem e a personagem feminina. Utilizo como análise três momentos distintos do longa-metragem que são retratados em frames, são eles: a mulher fatal, a mãe santificada e a vingadora aprisionada. Eles dizem respeito ao objetivo principal que é elencar a estética do aprisionamento. Laura Mulvey realiza uma análise social da figura do feminino (aqui dito como mulher) em filmes de direção masculina e seus espectadores. Já Gilles Deleuze trabalha o fluxo da narrativa da Imagem-movimento a partir dos corpos que se movem na cena.  Por meio desses autores, ainda que contida pelo olhar da lente e do enquadrado, Geum-Ja permanece no limite da libertação sexualizada da câmera masculinizada.

 

No contexto sul coreano do período histórico e social próximos a trama do longa, de acordo com Kyung Moon Hwang [2017] apenas nos anos de 1990 os direitos conquistados pelas mulheres garantiam o registro de crianças e vínculo materno, independente se ocorreu ou não divórcio do cônjuge, prole fora da institucionalização do casamento etc., essas mudanças vislumbravam uma maior equidade frente aos homens, embora não garantisse uma reforma social imediata. Em contrapartida, avançando para os anos 2000, Hwang [2017] detalha que no período a mulher coreana era majoritariamente retratada pelos veículos de mídia e do entretenimento, leia-se aqui principalmente nos K-dramas, voltados aos retratos de interesses materiais, amenidades e uma vida de consumo. Embora retratada de maneira diferente do que usualmente o papel feminino era observado na Coréia do Sul dos anos 2000, Lady Vengeance não chega a ser revolucionário na medida em que o embelezamento de uma protagonista num contexto de violência e exercendo o seu papel de mãe (mais do que genitora) tomam conta da estética transmitida pela direção artística, concordando indiretamente com a pesquisa social de Hwang.

 

Em complemento, Mulvey afirma que na experiência do cinema narrativo haveria a construção do prazer visual que é direcionado a partir do papel do masculino cinematográfico. Isto é, a sexualização da figura do feminino já estaria incutida na necessidade de prazer do homem socialmente construído: “A mulher, desta forma, existe na cultura patriarcal como o significante do outro masculino, presa por uma ordem simbólica na qual o homem pode exprimir suas fantasias e obsessões.” [MULVEY, 2021, p. 356]. É neste contexto que a narrativa se molda na apresentação da vingança de Lee Geum-Ja, utilizando o enquadramento aprisionador da câmera, a montagem dinâmica (temporalmente fragmentada), e a mise-en-scène (arranjo das roupas de Geum-Ja, da maquiagem, das cores vívidas e escolha artística dos móveis no apartamento da protagonista). Tudo isso traz a seguinte pergunta: até que ponto haveria a sua liberdade enquanto figura feminina ao caminhar do encarceramento a concretização da vingança contra Baek?

 

Estereótipo da mulher fatal

A percepção do feminino no dormitório hub aponta a contradição que há na sociedade coreana presente na trama:

 

Fonte: Lady Vengeance (2006)

 

O seu apartamento (quarto), é uma espécie de Hub temporal, em que a experimentação da montagem acontece. Do presente ao passado, tanto a personalidade quanto as emoções figuradamente femininas de Geum-Ja são exploradas pelas cores vibrantes voltadas para os tons quentes, com predominância no vermelho que remete ao sangue que será derramado, a intensidade dos sentimentos da protagonista contra Baek e a visceralidade de gerar a sua filha, agora afastada: “A presença da mulher é um elemento indispensável para o espetáculo num filme narrativo comum, todavia sua presença visual tende a funcionar em sentido oposto ao desenvolvimento de uma história, tende a congelar o fluxo da ação em momentos de contemplação erótica.” [MULVEY, 2021, p. 361]. O momento de pausa na narrativa para a contemplação estética da personagem enquadrada desloca a intenção de urgência da protagonista para um lugar de pensamento, isto molda a sua imagem em contradição com a intensidade das cores. O olhar vago, a posição da mão na cama e os dedos levemente repousos no queixo procuram uma pose pensada para compor a fotografia do ambiente.  Aqui encontra-se o início do embate apresentado ao longo do longa-metragem, o espaço restrito da sua moradia em consonância com a sexualização da protagonista. Os enquadramentos fechados e no extremo da caracterização entre a beleza puramente estética da “mulher fatal” e “a mãe santa” predominam na limitação da liberdade de Geum-Ja.

 

Estereótipo da mãe santificada

A percepção do que é ser mãe é reforçado reforçados em contradição com a vingança que ela procura:

 


Fonte: Lady Vengeance (2006)

 

O que é ser santa? O trânsito abrupto entre as qualidades de uma vingadora e uma mãe que deseja se reencontrar com a filha aparecem nessa tensão entre a cor branca de um vestido longo e a forte caracterização de uma mulher com vestimenta curta e maquiagem em tons quentes. O enquadramento fecha a protagonista em posição fetal na medida em que se debruça sobre o chão. Uma posição de humildade e descanso frente a um poder maior que diz respeito a cultura cristã. A estagnação em um enquadramento da imagem que deveria estar em movimento diz respeito aos limites de Geum-Ja em seu papel estabelecido de mãe vingativa: “A tecnologia fotográfica [...] e os movimentos de câmera (motivados pela ação dos protagonistas), combinados com a montagem invisível (exigida pelo realismo), tudo isto tende a confundir os limites do espaço da tela. O protagonista masculino fica solto no comando do palco, um palco de ilusão espacial no qual ele articula o olhar e cria a ação.” [MULVEY, 2021, p. 363]. O papel fixo da personagem perpassa o olhar masculino, seja ele derivado da construção social embutida no realizador, ou do que cruza toda uma montagem do que é ser mulher. Na mulher fatal que poderia também ser mãe santa há um abismo imagético, visto que a câmera prefere ser colocada de cima para baixo e não na altura da protagonista como nos momentos de vingança. Essa característica diz respeito ao que Mulvey se refere sobre a estagnação narrativa e do “protagonista masculino estar solto no palco”, pois enquanto ela se encontra constantemente limitada pelos papéis enquanto a câmera formaliza isso (disparidade entre uma personalidade e outra), Baek não está ali e Geum-Ja nem em movimento estaria. Assim, a câmera mimetiza o homem e o masculino.

 

Por outro lado, Deleuze estabelece o que seria a Imagem-movimento quando afirma que “[...] se perguntamos como se constituiu a Imagem-movimento, ou como o movimento se emancipou das pessoas e das coisas, constatamos que isto se deu sob duas formas diferentes [...] da mobilidade da câmera e por meio do raccord.” [DELEUZE, 2018, p. 48]. Deleuze remonta ao cinema de atrações, ou mesmo a montagem de atrações o momento em que a posição da câmera era estática e registrava os personagens caminhando pelo palco (mesmo do teatro) e isso trazia o movimento que não estava na imagem em si. Após isso, com a mobilidade da câmera e o raccord (noção de continuidade de movimento a partir da montagem, ou corte de cena) a imagem de fato ganha movimento. Mesmo munido de montagem, os trechos de Geum-Ja são limitados 1) pelo papel pré-estabelecido do que é ser mulher para 2) limitá-la em enquadramentos onde o antagonista Baek não está presente. Ela não está em movimento, a única forma de sair da prisão seria pelo pensamento, algo amplamente observado naqueles momentos de contemplação estético-erótica da personagem.  “O próprio da imagem-movimento cinematográfica é extrair dos veículos ou dos corpos móveis o movimento que é sua substância comum, ou extrair dos movimentos a mobilidade que é a sua essência. “[DELEUZE, 2018, p 45].

 

Embora Deleuze [2018] institua a Imagem-movimento – as noções de narrativa, de causa e efeito, de tempo aprisionado – para alcançar a Imagem-tempo – destituição do tempo e do espaço para a imagem, sendo ela o pensamento – a sua noção de corpos móveis explica como a fluidez da movimentação poderia ocorrer sem a montagem cinematográfica, o que poria o peso do andamento da narrativa nos personagens: “O que acontecia no tempo da câmera fixa? [...] o movimento não é, assim, liberado por si mesmo e permanece preso aos elementos, personagens e coisas que lhe servem de móvel ou de veículo.” [DELEUZE, 2018, p. 47]. Nisso estamos apontando para uma noção que pode ser referida como a “metaprisão” de Geum-Já em Lady Vengeance, pois as escolhas aparentes de direção (mesmo que não intencionais), prendem a personagem em seu papel social opositor de mãe/mulher, seja na trama, seja na fotografia. O papel do feminino observado em Hwang [2017] nos indica que as muitas conquistas de emancipação da figura do homem em território sul coreano só puderam ser almejadas no período dos anos de 1990, o que aproxima uma obra vista puramente como ficção de uma situação do cotidiano. Sim, a câmera movimenta-se, há os cortes de cena e o raccord, no entanto a movimentação ocorre em direção a um único homem: Baek. Enquanto este detém os papéis dados à protagonista. Isto quer dizer que mesmo na resolução do conflito entre os dois, ela guia o próprio corpo até ele, em um enquadramento fixo, e não o contrário.

 

O corpo móvel frente a uma câmera fixa

O aprisionamento de Baek na cadeira não garante a liberdade de Geum-Ja, pois os seus papéis já estão definidos desde o início do enredo:

 


Fonte: Lady Vengeance (2006)

 

As cores não são claras nem vibrantes, o vermelho vinho está presente nas cortinas, a iluminação segue a proposta do sequestro e da seriedade do processo de tortura que o antagonista sofre (também pelos pais de outras crianças, vítimas do personagem). O ponto crucial é a fotografia da resolução da vingança, no encontro entre Geum-Ja e Baek há o movimento da protagonista em direção a ele, o que é oposto aos momentos de estagnação e contemplação vividas por ela ao mesmo tempo em que a câmera repousa e fixa-se, assim como nos momentos supracitados. Ao final, a vingança torna-se coletiva e toda a narrativa prende-se ao homem, ao masculino.

 

“Num mundo governado por um desequilíbrio sexual, o prazer no olhar foi dividido entre ativo/masculino e passivo/feminino. O olhar masculino determinante projeta sua fantasia na figura feminina, estilizada de acordo com essa fantasia.” [Mulvey, 2021, p. 361]. O olhar do masculino permeia Geum-Ja, a aprisionando em enquadramentos fixos e fechados, em suas camadas separadas e delimitadas entre mulher fatal e mãe santificada, para desembocar na vingadora. Uma forma de estilização condizente com a visão do masculino. Baek manipulou toda uma vida da personagem feminina e ao final o embate da vingadora ocorre dentro dos limites que ele impõe, visto que Geum-Ja não o executa.

 

A estética do aprisionamento de Geum-Ja se mostra na utilização de enquadramentos restringidos dos momentos de intimidade da personagem, dicotomizando a visão do que seria a mulher fatal e a mãe santificada. As raízes sociais do olhar masculino frente a uma sociedade em transformação permeiam a realização do longa, apontando a câmera como masculina, ditando o enredo e limitando a ação da própria personagem que finaliza a própria vingança a partir de outras vítimas de Baek. Enquanto a execução do masculino possa ocorrer, a movimentação de Geum-Ja em direção ao antagonista encontra-se no limite da liberdade, o que mesmo com a câmera fixa, não apresenta movimento. Seria a contradição do corpo móvel feminino em Geum-Ja, no qual a fluidez dos movimentos a guia para uma única figura, a do olhar do masculino.

 

 

Referências

Fernando de Barros Honda é doutorando em Filosofia pela PUCPR, mestre em Comunicação e Linguagens com bolsa PROSUP do PPGCom da Universidade Tuiuti do Paraná. Graduado em fotografia. Pesquisa espectatorialidade no audiovisual e estética asiática. Tem interesse em história e filosofia da estética. Contato: ferhonda@icloud.com.

 

DELEUZE, Gilles. Imagem-tempo. Tradução: Stella Senra. São Paulo: Editora 34, 2018.

 

HWANG, Kyung Moon. A history of Korea: an episodic narrative. England: Palgrave, 2017. p. 235-245.

 

MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER, Ismail. A experiência do cinema (antologia). Rio de Janeiro/ São Paulo: Paz e Terra, 2021.

 

LADY vingança. Direção: Park Chan-Wook. Produção: Videolar s. a. São Paulo: Platina Filmes/Golden Filmes, 2006. 1 DVD.  116 min. NTSC, color.

7 comentários:

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  2. Texto muito bom, parabéns! Fiquei feliz de ver o meu filme favorito sendo tema neste simpósito.
    Você considera que essa dicotomia nos enquadramentos que a limitam como uma mulher fatal ou mãe santificada prejudicam a existência da Geum-Ja como uma personagem feminina forte na ficção?

    Gabriele Diniz Maia

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    1. Fernando de Barros Honda4 de dezembro de 2024 às 19:53

      Obrigado, Gabriele! Geum-Ja permanece forte, a meu ver os papéis que lhe são imputados dizem respeito a um contexto social bem específico. Se levarmos em conta que o filme é uma produção podemos correr o risco de esvaziar a arte pela arte, sabe? Portanto, quando fazemos conexões com algumas características sociais do período isso serve para contextualizar e aprofundar o que poderia estar acontecendo no entorno daquela personagem. Sim, Geum-Ja está aprisionada em diversas formas, ao chegar no final da vingança, me parece que ela toma para si as contradições no momento em que enterra o rosto no bolo. A própria contradição de algo doce em comparação com tudo o que vinha acontecendo.

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  3. Com base na teoria de "Estilo Indireto Livre" de Pasoline (1966), poderíamos concluir que a mise-en-scène é modificada de acordo com o monólogo interior vivido pela protagonista?

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    1. Fernando de Barros Honda4 de dezembro de 2024 às 19:43

      A resposta para a sua pergunta é "com certeza", Anna! Está aí a grande questão do aprisionamento vivido pela personagem Geum-Ja. A câmera é masculinizada, e o antagonista apresenta o masculino, assim, ambos a aprisionam. As aparentes contradições de mãe santa, vingadora e mulher fatal estão repousos na estética geral da mise-en-scène, principalmente nos momentos citados no texto. Como não podemos ter certeza de qual seria a intenção do realizador – pouco importa nesse caso – podemos inferir que em cada etapa da construção da cena diz respeito ao que Geum-Ja sente, pensa e vive. Embora tudo isso seja uma construção ou aprisionamento moldados socialmente.

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  4. Pedro Gabriel de Souza e Costa4 de dezembro de 2024 às 17:33

    Primeiramente, um excelente texto! Gostaria de saber se por esta perspectiva podemos dizer que independente do papel de mãe santificada ou mulher fatal, e até o de vingadora, a protagonista não alcançaria a libertação final? Continuaria ela, mesmo vitoriosa e uma mostra dos direitos conquistados pelas mulheres sul-coreanas, aprisionada ao olhar e poder masculino?

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    1. Fernando de Barros Honda4 de dezembro de 2024 às 20:04

      Olá, Pedro! Geum-Ja não está liberta, embora esteja vitoriosa. Essa relação com os direitos sociais conquistados pelas mulheres sul-coreanas está clara em toda a luta que a personagem trava contra o masculino. O que a está vigiando (câmera) e o que manipulara os seus passos (Baek). Ou seja, embora conquistados os direitos, a liberdade ainda não é garantida, pois a efetivação na sociedade demanda um esforço maior, ainda que seja uma etapa indispensável e correção cultural.

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