Felipe Chaves Gonçalves Pinto

 

O “SHUKI” ENQUANTO VOZ DAQUELES QUE VIVEM À MARGEM: O CASO DE KANEKO FUMIKO [1903-1926] E SEU O QUE ME FEZ SER ASSIM?


Este texto busca investigar as possibilidades de resistência que o “shuki [memórias]” e seus congêneres, enquanto voz daqueles que vivem à margem, podem oferecer enquanto gêneros contra-hegemônico. Para tanto, será enfocado a obra Nani ga watashi wo kôsaseta ka, O que me fez ser assim? [ou O que me fez fazer isso?], de Kaneko Fumiko [1903-1926]. A proposta argumentativa é de que a escrita de si, quando praticada por sujeitos marginalizados, pode oferecer subsídio para resistir às estruturas opressivas que os circundam. Deste modo, o objetivo é sublinhar a relação entre a marginalização e a escrita de si com o intuito de sugerir que mesmo entre as obras literárias, que são produtos culturais a serviço da manutenção de certa hegemonia social [Silva, 2004], este gênero caracteriza-se por sua qualidade de resistência [Moreira, 2019].

 

Kaneko Fumiko foi uma niilista e anarquista acusada de Alta Traição no que ficou conhecido como Caso Park Yeol [1923; sobre o caso, cf. Tachibana, 1933] e, inicialmente, foi condenada à pena de morte por planejar um atentado contra a família imperial japonesa. Posteriormente receberia indulto e teria a pena total suavizada, mas em 1926 é encontrada morta em sua cela, provavelmente após tirar a própria vida [sobre as condições de morte da autora, cf., especialmente, Yamada, 1996, pp. 237-241].

 

Kaneko compôs em cárcere uma autobiografia, Nani ga watashi wo kôsaseta ka [2013a] e diversos poemas tanka, agrupados, posteriormente, em uma coletânea, Gokuchû kashû [2013b]. A autora, enquanto enfrentava ininterruptamente duras penas financeiras e mentais, esteve em embate direto com as estruturas de poder em seus mais diversos níveis [Raddeker, 1997]. Nascida em uma família disfuncional e frágil financeiramente, até os oito anos de idade não possuía registro de nascimento e, portanto, não podia usufruir de nenhum direito básico pretensamente assegurado pelo governo, como, por exemplo, a educação formal [Tanaka, 2020]. Devido a esta condição, foi ativamente marginalizada, o que deixou marcas profunda em sua subjetividade.

 

Após os oito anos, é registrada como filha de sua avó materna, tornando-se legalmente, então, irmã de sua mãe. O registro era a precondição exigida para que a avó paterna a levasse junta a si para a Coreia, então colônia japonesa, com a promessa de educá-la. Na Coreia, Kaneko logo descobre que as promessas da avó não se cumprirão quando passa a ser tratada como empregada da família. Em meio a maus-tratos e humilhações rotineiras, aos 13 anos, após outro episódio de abuso físico e psicológico provindo da família paterna, tenta cometer suicídio. Contudo, insuflada por uma espécie de precoce consciência de classe em que se identifica com os oprimidos de todo o mundo, desiste do suicídio e fantasia uma vingança que só pode ser consumada em vida. Nas palavras da autora:

 

“Eu me recostei no salgueiro e comecei a pensar sossegadamente. Se eu morresse aqui, o que será que minha avó e o pessoal diriam sobre mim? Minha mãe e o pessoal diriam que eu morri por quais motivos? Não importa o tamanho da mentira que contem, eu já não estaria mais aqui para dizer: ‘isso não é verdade’./ Ao pensar nestas coisas, eu cheguei à conclusão: ‘eu não posso morrer’. Era isso, eu preciso, junto a todos que sofrem, me vingar de todos aqueles que nos fazem sofrer. Era isso, eu não poderia morrer” [Kaneko, 2013a, 123-124].

 

Nessa chave, a leitura que a autora faz das crianças que sofrem maus-tratos dos adultos, dos interioranos, em contraste com os citadinos, que são sistematicamente explorados, dos coreanos então colonizados e com os quais convivia diariamente na Coreia, dos trabalhadores que conheceu profundamente quando começa ela própria a trabalhar em Tóquio, dos animais, principalmente dos cães [sobre a relação com os cães, cf. Kaneko, 2013a, p. 153], que são tratados com particular crueldade etc., essa leitura soma-se para dar substância a um posicionamento político precoce que vai ter enquanto resultado a radicalização de suas ações e pensamentos.

 

Kaneko, em um movimento próprio de uma intelectual orgânica [Gramsci, 1982], estabelece enquanto base de seus pensamentos e ações um particular niilismo e anarquismo finissecular que tem como principais modelos teóricos Nietzsche e Stirner [Kaneko, 2013a, p. 271]. O modelo, contudo, é ressignificado por desenvolvimentos próprios que, enquanto resultado, dão em uma filosofia de vida mais próxima, analógica e anacronicamente, de um absurdismos camusiano. Diante da falta de significado do mundo, Kaneko busca seus motivos, mesmo que não acredite neles, para continuar a encarar e combater as inequidades que a oprimem:

 

“Mesmo que eu não compactuasse completamente com os pensamentos socialistas, eu acreditava na existência de um verdadeiro trabalho próprio para mim. Se esse trabalho realmente iria se realizar ou não, não nos dizia respeito. Bastava que acreditássemos ser nosso verdadeiro trabalho. Fazer esse trabalho era o que dava forma a minha verdadeira vida” [Kaneko, 2013a, pp. 275-276].

 

Assim, mesmo tendo por certo a falibilidade do movimento comunista nem por isto deixou de combater ao seu lado, ainda que em uma atitude abertamente dissidente. Já que, nas palavras da autora, que era identificada diretamente como uma subjetividade no seio do povo oprimido, ela “definitivamente não consegui aceitar o pensamento socialista assim como ele lhe era oferecido. O socialismo pregava que buscava a revolução em prol dos povos oprimidos, mas restava a dúvida se o que ele realmente fazia era em prol do bem-estar destes povos” [Kaneko, 2013a, p. 275]. Invariavelmente, foi devido a uma acusação ligada a esse posicionamento que Kaneko foi condenada.

 

É em cárcere que, seguindo a orientação do juiz de seu caso, começa a escrever suas anotações para explicitar sua formação subjetiva e seus motivos, o que, se pouco, permitiu que sua voz fosse ouvida não só às margens da sociedade, de onde é oriunda, mas também em seu núcleo mais duro: aquele que monopoliza o direito à violência. A autora, sobre o seu texto, pontua:

 

“Depois do interrogatório, o juiz ordenou que eu tentasse escrever algo sobre minha história. [...] Talvez por meio desta disposição pouco utilizada, o juiz esperava chegar a algo em meu passado que pudesse explicar a razão para eu ter feito uma coisa tão atroz. [...] De qualquer forma, isso não importa. Eu simplesmente escrevi o relato de meu desenvolvimento assim como me foi ordenado. E é isto que compõe meus escritos [shuki]” [Kaneko, 2013a, p. 16].

 

A consciência de gênero discursivo parece estar presente nas elaborações da autora. Kaneko não denomina seu texto como autobiografia [jijoden] ou reminiscências [kaikoroku], mas sim de shuki que pode ser traduzido, ainda que o termo em português não seja tão específico quanto o em japonês, como memórias. A diferenciação é importante pelo recorte sociopolítico sugerido. Isto é, em aspectos de gênero discursivo [cf. Bakhtin, 1986], uma autobiografia ou uma reminiscência, tal qual os moldes japoneses, são gêneros que só são mais facilmente aceitos socialmente quando registram o sucesso de pessoas bem cotadas socialmente. É, neste sentido, pouco provável que a autobiografia de uma pessoa comum seja lida e aceita como tal. Por outro lado, o shuki seria o gênero de preferência das pessoas comuns ou daquelas que se tornaram conhecidas por motivos socialmente desprestigiados, como a prisão ou os crimes cometidos [cf. Yamashita, 2008; Baba, 2014].

 

Assim, o shuki caracteriza-se por registrar eventos ordinários de pessoas que levam uma vida comum, ou daquelas que passaram por experiências extraordinárias por terem cometido atos condenados por determinada ideologia hegemônica. Nesse sentido, sob o viés da teoria dos gêneros, o shuki é o gênero socialmente apropriado para pessoas que são marginalizadas e que desejam escrever sobre suas vidas e questões pessoais. É dessa forma que elas podem expressar com mais eficácia sua “voz” em sociedade. Seria plausível, observando as colocações da autora apresentadas anteriormente acerca da própria produção, dizer que Kaneko tinha alguma, mesmo que difusa, consciência do poder deste gênero quando elaborou seus escritos de cárcere.

 

Escritos de cárcere, apesar de presumida pouca boa vontade do público exterior para com estes [Colvin, 2021, p. 21], tiveram uma relativa alta circulação no Japão de então [Soeda, 2016, p. 16]. Parte desta circulação pode ser entendida, tal qual a proposta foucaultiana [Foucault, 1999], como uma necessidade de espetacularização do sofrimento que visa diminuir, através da sublimação, a culpa daquele que puni [isto é: a sociedade e os sujeitos que a compõem]. Nesse sentido, o que atraí a atenção para estes escritos é, antes, uma generalizada vontade voyeur do que um interesse pelo outro, encarcerado, enquanto sujeito propriamente dito [Colvin, 2017, p. 458].

 

Fato exemplificado em “Diário de um Detento”, que narra enfaticamente: “mais um metrô vai passar, com gente de bem, [...] a caminho do centro, olhando para cá, curiosos é lógico. Não!, não é não, aqui não é o zoológico. Minha vida não tem tanto valor quanto seu celular, seu computador” [Prado, Mano..., 1997].

 

O ponto é que, nesta linha, os escritos carcerários, mesmo aqueles que efetivamente chegam a ter uma circulação relativamente alta, seguem tacitamente ignorados em um nível mais elementar. Isto é, a partir do momento em que se desumaniza o detento como aquele que não é digno de identificação, priva-se também os seus escritos de serem lidos enquanto uma obra que possa ser apreciada estética e/ou socialmente, já que estaria privada de subjetividade e, portanto, neste sentido, de humanidade [Colvin, 2021].

 

Os escritos carcerários, devido sua própria condição de ser, trazem muito de testemunho e podem ser descritos como “ficções memorialistas” [Oates, 2014, p. 15], apesar de não se limitaram a isto. O texto de Kaneko também pode ser diretamente associado a uma noção de testemunho tanto em sua acepção política [denúncia social] quanto em uma noção rigorosamente legal [material de um interrogatório], o que o torna, neste sentido, um texto prototípico.

 

Essa preferência pela materialidade dos fatos enquanto recurso narrativo nesses textos aponta para um desejo de fazer-se ouvir, uma vontade de resistência que tem como objetivo não se calar ou ser calado, de se impor, enquanto marginalizado, sobre as instituições de poder, como a prisão, os tribunais, o patriarcado etc., mas também contra a literatura [Beverley, 1992, p. 96]. Assim, esses escritos carcerários podem ser lidos enquanto forma de resistência contra-hegemônica, enquanto, na tipificação de Harlow, Literatura de Resistência [1987].

 

Deste modo, Literatura de resistência contradiz uma série de pressupostos da literatura dita de elite. Ela é comparativa, mas nem sempre ligada a um idioma nacional; é abertamente política, às vezes anônima, mas sempre pressionando os limites dos gêneros estabelecidos [Kaplan, 1992, p. 120]. A ruptura mais expressiva, talvez, seja a desconstrução da noção de autoria individual burguesa e da criação de uma autoria “coletiva” que, no coletivo, valida o discurso e a identidade do sujeito que escreve [cf. Kaplan, 1992, p. 121].

 

Neste sentido, a literatura de resistência de cárcere, Harlow recorda, não é composta almejando a criação de um eu individualizado burguês, mas sim enquanto um documento de coletividade que busca, através da experiência pessoal, ser testemunho de sofrimentos compartilhados que foram perpetuados pelo núcleo hegemônico de poder [Harlow, 1987, p. 120]. Mesmo no universo carcerário, existe uma diferença entre os escritos daqueles que foram presos por “crimes comuns” e os daqueles que foram presos pelo teor político daquilo que escreviam ou fizeram [Harlow, 1987, p. 120]. Para aqueles, a escrita normalmente surge enquanto refúgio e/ou descoberta pós-encarceramento, para estes ela assume ainda mais força política de resistência. O texto de Kaneko se encontra nesta última categoria. Kaneko foi presa acusada de planejar um atentado contra a vida do imperador e estava empenhada em uma batalha discursiva contra as opressões em seus muitos níveis [Raddeker, 1997].

 

Kaneko, nessa linha, sabia do poder das palavras e as empregava tendo isto em vista. Como exemplo, elenca-se o fato de que Kaneko, em interrogatório, conta que quando, ainda em liberdade, estava elaborando uma revista revolucionária que iria publicar, escolheu como título da revista o sintagma Futoi seijin, que em tradução corriqueira poderia ser vertido como “Coreano balofo” [Kaneko, 2013c, p. 307]. A autora esperava escapar da censura e, ao mesmo tempo, demarcar o posicionamento combativo através deste artifício, já que, à margem da revista, uma nota indicava que “futoi”, “balofo”, deveria ser lido como “futei”, “fora-da-lei” [cf. Yamada, 1996, pp. 103-104].

 

Junto a esta perspectiva, poder-se-ia ainda apontar para o próprio título da autobiografia, O que me fez ser assim?, e seu caráter ambíguo. Se, enquanto forma, remete ao ato confessionário emulando algo d’As confissões, de Rousseau, por exemplo, como Yasumoto [2020] propõem, acredita-se que, em nível de conteúdo, o texto mescla algo de Ecce Homo, de Nietzsche [cujo subtítulo é justamente “como alguém se torna o que é”] com, principalmente, um ataque aberto às estruturas de poder, o que soma para construir uma noção de coletividade através da experiência compartilhada de sofrimento, traço que é característico de uma Literatura de Resistência, como comentado anteriormente.

 

Essa construção de coletividade ainda é verificável, por exemplo, quando a autora, lamentando-se por, devido sua condição de não-registrada, não poder frequentar as escolas, assevera:

 

“Escolas primárias e secundárias foram levantadas. Também foram feitas escolas para mulheres, escolas técnicas, universidades e centros de estudos. As filhas e filhos dos burgueses vestiam roupas ocidentais, calçavam sapatos e alguns até mesmo cruzavam os portões destas construções de automóveis. Mas no que tudo isso me diz respeito? Isso, por acaso, me fez um tanto mais feliz?” [Kaneko, 2013a, p. 26].

 

Em seguida, arremata: “claro que naquela época eu ainda não tinha entendido que a felicidade de todas as pessoas é sustentada pela tristeza de terceiros”. [Kaneko, 2013a, p. 26-27]. O que a autora relata é a experiência pessoal de segregação que sofreu na infância devido a sua condição, mas essa experiência só se constrói através da coletividade do sofrimento imposto pelas elites locais, como a passagem anterior sugere. Nesse sentido, nem mesmo os laços sanguíneos superam este elo de opressão/segregação que, interligado, forma o sujeito em coletividade. A autora, remontando as humilhações que um empregado coreano sofria na mão de sua família paterna, revolta-se:

 

“Ah!, o contraste entre aquelas ofensivas brincadeiras do lado de dentro e o coração desolado do lado de fora! Mesmo eu sendo só uma criança, não: exatamente por eu ser só uma criança, foi que naquele momento eu odiei minha avó e tia com meu puro senso de justiça como nunca voltaria a odiar novamente” [Kaneko, 2013a, p. 89].

 

E esse “como nunca voltaria a odiar novamente” é significante, além de demarcar uma precoce linha ética que delimita o que a autora está ou não disposta a aceitar. O elo que une a subjetividade de Kaneko ao mundo material é antes um que foi construído pela opressão/segregação do que aquele que pode ser deduzido de laços sanguíneos, como pressupõe o lugar-comum.

 

Essa rebelião contra a própria família extrapola-se em uma que funde, em um único desejo, vontades parricidas, regicidas e deicidas [Raddeker, 1997, p. 18]. Isto é, Kaneko, ao contar sua própria história, pontua frequentemente que “não mais obedeceria a meu pai. Não: eu não me dobraria mais a tirania de meu pai. Eu precisava me proteger com minhas próprias mãos” [Kaneko, 2013a, p. 179].

 

Essa insubordinação leva a uma construção semelhante quando planeja o atentado contra o príncipe japonês que, na lógica imperial de então, assume um papel de um pai de toda nação que é descendente direto dos deuses que criaram o país [cf. Gluck, 1985; Halliday, 1975]. Nisso, a vontade motora de Kaneko encontra raízes nesse intuito regicida/deicida/parricida [que foi o que efetivamente a levou à prisão] e, obliquamente, na vontade de obliterar a existência e influência do próprio pai, seja o pai de todos [em lógica freudiana], seja o pai biológico.

 

Seguindo, a vontade revolucionária é expressa também da seguinte maneira: “Ah!....... Como eu gostaria de fazer algo! Queria lutar sem me importar em sacrificar minha própria vida pelo bem de nossa classe de oprimidos” [Kaneko, 2013a, p. 250]. Assim, é possível notar que lutar, dar a própria vida pela, nas palavras da autora, “nossa classe de oprimidos”, não é martírio, mas sim precondição para fazer-se sujeito contra a vontade opressora. E, nisso, ao contar a própria vida, contar as opressões que sofreu, relatar tudo que a fez ser como é, dando então resposta ao título de sua obra, cria, enquanto narradora, sua própria subjetividade que só é possível ao dar forma e conteúdo para a experiência de uma coletividade de oprimidos.

 

Esse posicionamento rebelde, contra-hegemônico de Kaneko e sua obra que busca na coletividade meios com que se fazer sujeito é ainda uma expressão sincera da mais pura esperança, apesar de toda a falta de perspectiva, o que pode ser verificado expressamente no texto:

 

“Quanto a mim, meu maior desejo é que estes escritos fossem lidos por todos os pais do mundo. Não, não só pelos pais, gostaria que estes escritos fossem lidos por educadores, políticos e sociólogos que tentam fazer a sociedade um lugar melhor, que fossem lidos por todas as pessoas do mundo” [Kaneko, 2013a, p. 17].

 

Por fim, são estes traços que se identifica enquanto formas de resistência que a escrita de si, mais especificamente através do gênero shuki, quando praticada por sujeitos marginalizados, pode assumir. Esse teor testemunhal, que também pode ser encontrado teorizado no Japão sobre a tipificação de “kikigaki” por exemplo [Satô, 2023, pp. 292-304], possibilita que sujeitos marginalizados possam, através da experiência individual, construir uma noção de coletividade que permite o fortalecimento subjetivo por tanto tempo negado pelas elites. Ou, em sua forma contrário, possibilita, através da percepção de coletividade, a narração de experiências pessoais, possibilita a voz. A questão ainda é a mesma: ter a possibilidade de falar e ser ouvido, ter a possibilidade de entender-se enquanto sujeito em uma verdadeira alteridade.

 

E, encerrando, cita-se a autora novamente:

 

“O que me fez ser assim? Eu mesma não tenho nada mais a dizer sobre isto. Basta que eu tenha deitado aqui a história de meia vida minha. Para os leitores que tiverem a sensibilidade este registro é o suficiente para entender. Eu acredito nisso./ Eu descanso agora, calma e serenamente, este pincel que rabiscou estes rústicos registros. Que haja felicidade sobre todos aqueles que eu amo!” [Kaneko, 2013a, p. 288-289].

 

 

Referências

Felipe Chaves Gonçalves Pinto é doutorando e mestre pelo Programa de Pós-graduação de Estudos Japoneses Internacionais e Avançados da Universidade de Tsukuba [UT], Japão. Também possui mestrado em Língua, Literatura e Cultura Japonesa pela Universidade do Estado de São Paulo [USP], Brasil. Atualmente pesquisa a (auto)representação do sujeito pobre e suas implicações na literatura brasileira e japonesa em uma perspectiva comparatista e interseccionaria.

Contato: felipe-chaves78@hotmail.com

 

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4 comentários:

  1. Felipe, obrigado pelo prazer de ler um de seus textos sobre essa literatura que me parece dissidente em relação ao conjunto literário japonês. Acho que em meio aos clássicos, tão elogiosos, resgatar a obra de Fumiko Kaneko é uma espécie de alerta. Acredito que a obra tenha sido, talvez, alvo de uma certa invisibilização, não é? Também me peguei pensando que, extrapolando o limite do texto, Fumiko represente a materialidade dos ordenamentos sociais nipônicos, de tipo uchi x soto, honne x tatemae, não é? Fiquei com a sensação de que há em sua obra uma crítica ao Japão como ele se engendra no tradicionalismo. Gostaria muito de ouvir sua opinião sobre isso. Do mais, eu parabenizo a pesquisa porque a acho desafiadora. Me faz pensar até ser uma pesquisa revolucionária, que busca colocar em vertigem a imagem que temos da cultura japonesa. Mesmo que essa não seja mais orientalista como antes, ainda vejo muito exotismo e positividade na imagem que temos do Japão - o que eu considero um problema. Abraços, querido. Sucesso sempre!

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    1. Olá, Mateus!
      Fico muito contente com sua leitura e seu caloroso acolhimento do texto, muito obrigado! Kaneko é uma autora que, para mim, sintetiza uma série de questões que dão o rumo do que procuro desenvolver academicamente.

      É como você pontuou, apesar do nome de Kaneko e de seu companheiro terem ganhado todas as manchetes de jornais japoneses de então, houve um, por parte do núcleo hegemônico, silenciamento quanto aos textos e ideias da autora. Talvez fosse o esperado, tendo em vista o crime pela qual foi condenada, mas ainda é sintomáticco que tão pouco tenha sido dito sobre Kaneko e companhia. Aliado a isto, o Japão passava por um período especialmente violento aos pensamentos dissidentes, o que pode ter contribuido para esse alheamento generalizado. De toda a forma, a obra de Kaneko foi publicada em 1931 por uma editora dissidente. Nomes como Hayashi Fumiko tiveram acesso a obra de Kaneko e a receberam muito elogiosamente. Hayashi, por exemplo, afirma que Kaneko é a maior escritora proletária japonesa que se terá notícia, ainda que não tenha escrito esse gênero. Mas, apesar disso tudo, sua obra foi muito pouco trabalhada criticamente. Menos ainda é dito sobre a riqueza literária da produção da autora e de seu potencial rebelde.

      Quanto aos elementos de crítica presente na obra, a sua percepção, novamente, vai certeramente ao ponto! Kaneko estava empenhada em construir uma contra-narrativa ao mito do Estado japonês. A autora, muito didaticamente, reconstrói a própria vida em contraponto a narrativa de que o Japão se modernizava e de que todos, então, eram cidadãos iguais perante a lei. Mas não para aí. Há uma crítica ao lugar da família no ordenamento social japonês que é exemplificada pela figura do próprio pai, mas que chega também à mãe que é descrita como "fraca e dependente dos homens". Essa crítica não é, contudo, nuclear e encontra correspondentes na ordenação social e cultural do Japão. Enquanto exemplo, pontual, cito o seguinte episódio. Em um momento de fragilidade, Kaneko se afeiçoa a um tio materno, que era monge budista. Este tio é descrito na narrativa como um homem que estava sempre atrás de garotas novas e virgens. Kaneko descobre, posteriormente, que o tio e o seu pai haviam firmado compromisso para que ela se casasse com o tio. O casamento é desfeito porque Kaneko, então com 17 anos, começava a explorar as próprias potencialidades e o tio suspeitava que ela não mais era virgem etc. Kaneko, nessa oportunidade, critica severamente a moral religiosa do país.

      Há ainda muitos outros exemplos, mas me contenho para não ficar muito longo esta que deverei ser uma breve resposta. Concluindo, sim há esse elemento de crítica ácida e contundente contra o tradicionalismo japonês, mas que vai além e sintetiza-se em uma crítica contra o pai, o deus e o imperador, que formam juntos a mesma simbologia opressiva e que, Kaneko acredita, está na raiz das segregações do mundo.

      Muito obrigado pelo comentário, Mateus! concordo muito com o que você disse! Há tanto na positividade quanto na negatividade acrítica doses de um orientalismo e exotismo que precisam ser combatidos. O trabalho com Kaneko é parte de um desejo de mostrar um Japão mais próximo das dores comuns ao povo comun do qual fazemos parte enquanto seres humanos que somos.

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  2. Bom dia, achei seu texto interessante porque dialoga um pouco com um dos meus textos apresentados aqui mesmo no Simporiente, também sobre um autor asiático de esquerda que foi preso e morto. Fiquei curioso sobre as influências ocidentais dessa autora. Você cita Nietzsche, Camus, Stirner, entre outros. Kaneko Fumiko cita esses autores diretamente ou os estudiosos que inferem as influências que ela recebeu? Outra questão : ela não demonstra influência de autores ou do pensamento japonês? Não há influências ou empréstimos epistêmicos do budismo, por exemplo?
    Um abraço.

    Tiago Ferreira

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    1. Olá Tiago!
      Obrigado pelas questões! Li seu texto sobre o Jit Phumisak, não fazia ideia desse universo na Tailândia. Posteriormente gostaria de te perguntar algumas coisas sobre a ideia de literatura no país e correntes de pensamentos, mas deixarei para outra oportunidade.

      Sobre os pontso que você colocou, Kaneko cita nominalmente e referencia as ideias de Nietzsche, Stirner, Kropotkin e Rousseau. A associação com o absurdismo camusiano é, entretando, uma extrapolação anacrônica minha e teve com intuito apenas tentar localizar o leitor que, por acaso, não tenha tanta familiaridade com o pensamento da autora.
      As leituras de Kaneko são esparsas e pouco sistemáticas, normalmente frutos de recomendações de terceiros. Além disso, a autora não teve educação formal e, talvez por isso, não operacionaliza diretamente nenhum pensamento que possa ser associado com uma epistême budista. Há, contudo, traços de lugares comuns do pensamento hegemônico de então ainda que não identificados enquanto tais. Uma moral confucionista aparece aqui e alí quando ela trata a questão da educação de crianças. A recepção do mutualismo kroptikiano também é feita, penso eu, meio que em diálogo com alguns preceitos budistas de unicidade que são bastante difundidos. Isto é, parece haver uma associação entre a ideia de que todos são uma única existência e o imperativo da ajuda mútua: se é-se uma única existência, a vida só faz sentido se for harmónica e cooperativa. Ainda assim, pensadores japoneses que a autora cita são todos contemporâneos seus. Nomes como Ôsugi Sakae e Ishikawa Takuboku (Takuboku mais enquanto poeta do que crítico propriamente dito) aparecem em sua obra.

      Muito obrigado pelas questões, Tiago!
      abraços,
      felipe

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