Emiliano Unzer

ASCENSÃO E QUEDA DO IMPÉRIO BIRMANÊS DO SÉCULO 16 AO 19

 

Entre o século 16 e 19, a região da Birmânia (atualmente reconhecida por Mianmar), na região do Sudeste Asiático, atravessou por significativo processo de expansões e conflitos. Esses eventos foram provocados pela ascensão de dinastias birmanesas que deixou consequências sobre reinos rivais, como os shans, tais, mons e arracaneses, até sucumbir diante das investidas britânicas no século 19.

 

Em fins do século 13, em 1287, os tempos pareciam turbulentos na corte birmanesa. No ano, o príncipe Thihathu envenenou seu pai, o rei Narathihapate de Pagan e três de seus irmãos. O trunfo de Thihathu foi breve, contudo, pois as sublevações atormentaram seu reino ao ponto do regente se matar com uma flecha. Um de seus sobrinhos tentou depois reassegurar a sobrevivência da autoridade em Pagan, e chegou a sondar alianças com os chineses ao enviar tributos, mas os shans estavam impacientes e, em 1365, resolveram fundar um reino independente com capital em Ava, a montante do rio Irauádi (mapa).

 

Reino de Ava e arredores por volta de 1450. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Kingdom_of_Ava#/media/File:Burma_in_1450.png

 

Os shans, nesse sentido, passaram a perseguir os aliados de Pagan e os budistas, saqueando os templos, mosteiros, e provocando uma grande migração desses para a região do vale do rio Sittang, em Toungou (ou Toungoo). Foi esse local que depois se tornaria o futuro núcleo de um poderio birmanês que conquistaria toda a região meridional do país, em meados do século 16 com a capital em Pegu.

 

Um dos fatores crucias de mudança no cenário comercial e militar birmanês na época foi a chegada de portugueses no século 16. Em 1511, os portugueses tinham capturado a cidade de Malaca, e assim todo o comércio asiático marítimo, dominado pelos muçulmanos, desviou-se e centrou-se a partir do Sultanato de Aceh, no norte da ilha de Sumatra. Aceh comerciava com a região meridional birmanesa, ou a Baixa Birmânia, atraindo para essa região numeroso contigente de mercadores muçulmanos e indianos. Na década de 1550, já havia bairros muçulmanos inteiros, com sua própria mesquita na cidade de Pegu, esta se tornando uma dos principais entrepostos comerciais da Baixa Birmânia na região meridional birmanesa.

 

A contribuição portuguesa decisiva, contudo, foi mais de cunho militar. Por volta de 1530, soldados e mercenários portugueses ofertaram seus serviços para regentes birmaneses locais que viram que seus armamentos de fogo poderiam ser superiores aos canhões fornecidos pelos indianos e chineses. Tabinshwehti (r. 1530 - 1550) (fig.), foi o primeiro líder da Baixa Birmânia, de uma nova dinastia chamada de Toungou (1486 - 1599), que começou a usar tais novos armamentos e soldadesca europeia em combate. E, de fato, as novas táticas em campo e armamentos provaram ser superiores em termos de precisão e rapidez de disparo.

 

Tabinshwehti de Toungou. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Tabinshwehti#/media/File:Tabinshwehti_Nat.jpg

 

Seguiram anos de notável expansão da dinastia Toungou em direção à costa birmanesa. Já na década de 1550, Tabinshwehti e seus sucessores com o uso de novos armamentos e aliados, esses birmaneses tinham criado o maior império da região desde a queda de Pagan em 1287.

 

A dinastia de Toungou floresceu com o domínio de toda a região da Baixa Birmânia e seu lucrativo acesso aos mares asiáticos, e ao interior pelas grandes vias fluviais. Tabinshwehti, assim, concretizou seu plano de buscar dominar as regiões meridionais, ignorando os confrontos com os chans mais ao norte da região de Ava. Nessa sua estratégia meridional, o regente de Toungou conseguiu dominar a cidade de Pegu em 1539 [Aung Thwin & Aung Thwin, 2012, p. 131], local para onde mudou toda a sua corte e tornando-a como capital. Após essa conquista, o rei passou a patrocinar e promover a cultura mon local, e o controle da próspera cidade permitiu ao reino de Toungu organizar mais exércitos contra forças rivais da região e da costa. Com o uso de canhoneiras portuguesas, as ofensivas a favor de Tabinshwehti conquistaram Muttama em 1541, Prome em 1542 e repeliu um ataque dos shans em 1544, conseguindo com isso isolar os shans do acesso ao comércio e contato com os estrangeiros.

 

A cidade de Chittagong, na costa oeste birmanesa, contudo resistiu bem aos ataques e sítios. Não somente ao exército de Toungou como também aos portugueses. Os soberanos dessa cidade deveram lealdade ao reino de Arakan (ou Arracão), cuja dinastia rivalizava com os Toungous. E a prosperidade de Chittagong advinha de seu acesso portuário e para a região indiana de Bengala mais ao oeste. Os reis de Arakan, apesar de serem budistas, adotaram títulos muçulmanos, uma curiosa prática a agradar e manter as ligações com os imperadores muçulmanos mogóis indianos, dos quais dependiam para o comércio e alianças políticas.

 

O envolvimento de Arakan com o império mogol resultou no asilo de Shuja, um dos irmãos perseguidos pelo imperador mogol Aurangzeb (1618 - 1707), o mesmo que tinha aprisionado seu pai, Shah Jahan, numa cela a passar o resto de seus dias a contemplar o mausoléu construído, o Taj Mahal, em Agra. Shuja, uma vez na corte de Arakan, tentou subornar alguns líderes e ministros mas acabou sendo descoberto pelos monarcas locais e foi executado em 1661. Nesse meio tempo, o governador de Bengala, aliado a Aurangzeb, tinha invadido o reino de Arakan e capturou a cidade de Chittagong em 1666 [HARVEY, 2000, p. 147].

 

Depois de repelir os shans em 1544, o rei de Toungou, Tabinshwehti decidiu investir contra o reino de Arakan e Ayutthaya, um reino dos tais mais ao leste. Aparentemente, o soberano birmanês almejava controlar o comércio de toda a região, mas ambas campanhas falharam miseravelmente. Em ambas as cidades, os mercenários portugueses empregados apresentaram notável resistência nessas cidades fortificadas. O sucessor de Tabinshwehti, Bayinnaung (r. 1550 - 1581) (fig.), pela mesma razão, desistiu de sitiar a cidade de Prome. A morte de Tabinshwehti tinha sido feita por seus guardas da etnia mon em 1550, e Bayinnaung cedo aprenderam de que não deveria descuidar dos assuntos da corte, mesmo envolvido em longas campanhas fora da capital do reino.

 

O rei Bayinnaung. Fonte: https://greatmingmilitary.blogspot.com/2018/04/enemy-of-ming-burmese-toungoo-empire.html

 

Bayinnaung, no início de seu reinado, teve que se concentrar em retomar a cidade de Pegu, que tinha sido tomada por um líder local, Smim Htaw, e proclamado sua autonomia. O regente birmanês tomou a próspera cidade em meados de 1552 depois de um longo sítio diante de suas muralhas e com o uso de numeroso contingente de shans, mons e alguns portugueses. Um ano antes, Bayinnaung, contando com a lealdade de muitos soldados tais aliados, expandiu seu império ao tomar a cidade de Ava depois de cinco dias de bombardeio de artilharia. Logo depois, o regente voltou sua atenção mais para o leste, para a capital do reino Lanna, Chiang Mai. Esse reino tai sucumbiu somente em 1558, inaugurando dois séculos de suserania birmanesa.

 

A dominação do reino Lanna serviu ao propósito dos reis birmaneses de Toungou para lançar ataques posteriores contra Ayutthaya, mais ao sul. O que não revelou ser uma tarefa fácil. Ayutthaya caiu diante de Bayinnaung por duas vezes, em 1546 e 1549, fazendo excelente uso da artilharia contra as muralhas defensivas da cidade. Mas sempre houve viva resistência dos tais locais, resultando em repetidas rebeliões e retomada de Ayutthaya fora do controle birmanês. Outras regiões também foram alvo do expansionismo de Bayinnaung, como a de outro reino tai ainda mais ao leste, Lan Xang, atualmente no Laos, entre os anos de 1568 e 1570, e contra um reino shan ao oeste na fronteira com a Índia Mogol, Manipur, que acabou se rendendo em 1560. O império de Toungu vivia seus momentos de auge (mapa).


O império birmanês de Toungou, em seu auge, cerca de 1580. Fonte: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Map_of_Taungoo_Empire_%281580%29.png

 

Logo após a morte de Bayinnaung, contudo, advieram as causas do declínio da dinastia Toungou. O sucessor no trono, Nandabayin (r. 1581 - 1599), de acordo com as crônicas birmanesas, tornou a tomada definitiva de Ayutthaya como sua obsessão que o fez onerar demasiadamente os cofres de seu reino e ignorar todos os outros assuntos de Estado. A sua raiva contra Ayutthaya vinha de um príncipe tai, Naresuan, que tinha vivido em Pegu durante seus anos de cativeiro e observado a fragilidade política do império de Toungu sob Nandabayin, que não se concentrou em manter as lealdades políticas de líderes e regentes locais vassalos pelo império. Aproveitando-se desse cenário, Naresuan, desafiou a autoridade de Nandabayin e proclamou a independência de Ayutthaya em 1592, que resultou numa ampla guerra entre os dois regentes. Ao final dos conflitos, os birmaneses foram derrotados em Nong Sarai, a 120 km de Ayutthaya.

 

Depois de Nong Sarai, Nandabayin passou a concentrar todos seus esforços a vingar a sua ignominiosa derrota, mas a sua rede de lealdade começou a se desfazer. Muitos líderes e aliados se recusaram a mandar seus homens, outros desertaram quando em marcha. E talvez o maior sinal da decadência do seu reinado adveio com uma praga que devastou os campos e o arroz estocado, provocando uma onda geral de fome e descontentamento em 1594.

 

A gota d'água veio para o reinado de Nandabayin quando este decidiu lançar mais outra campanha contra Ayutthaya em 1599. Como resposta, muitos vassalos se rebelaram, outros proclamaram suas independências da dominação Toungou, como Pegu, que tinha buscado aliança contra outros rebeldes em Arakan e mesmo os tais de Ayutthaya. A aliança com Arakan foi crucial, pois permitiu o bloqueio costeiro e naval contra qualquer contato marítimo de Nandabayin.

 

A morte de Nandabayin ocorreu no fim do referido ano, cessando os conflitos contra Pegu. O império Toungou entrou, depois, num longo processo de desagregação política. Em Ava, no norte birmanês, um dos filhos de Nandabayin, Nyaungyan, tomou o poder. Uma filha do falecido regente foi tomada pelos arracaneses para servir no harém real. E na cidade de Siriam (ou Sirião), na Baixa Birmânia, que tinha sofrido durante os conflitos, foi tomada por mercenários portugueses em 1601 sob o comando de um aventureiro chamado de Filipe de Brito e Nicote (1566 - 1613) (Nga Zinga, entre os birmaneses), que buscou fama e fortuna nas terras birmanesas da época.

 

Foi o filho de Nyaungyan, rei de Ava, Anaukpetlun (r. 1605 - 1628), que restaurou a dinastia Toungou novamente no século 17. Este, quando ainda príncipe, tomou o controle do palácio em Ava e proclamou-se rei antes dos seus irmãos e familiares ao saber da morte de seu pai em 1605. Ao tomar o trono, o novo regente de Ava buscou novamente submeter todos aqueles que antes tinham jurado lealdade ao império Toungou. Uma das primeiras iniciativas de Anaukpetlun foi confrontar os rebeldes shans ao norte, um dos mais poderosos reinos birmaneses, para depois consolidar sua dominação na próspera região meridional.

 

Nos primeiros anos de seu governo, Anaukpetlun atacou a cidade de Prome e, em 1610, organizou uma ampla ofensiva contra seu primo, Natshinnaung em Toungou, que se rendeu quase sem nenhuma resistência. Ao descobrir que seu primo continuou conspirando com alguns portugueses, este foi prontamente capturado e morto. Com relação à Arakan e seus aliados, Anaukpetlun teve que lidar com os portugueses sob comando de Filipe de Brito que tinha tomado o controle de Siriam e de quase todo o delta do rio Irauádi. Este aventureiro europeu prosperou enormemente com o controle do comércio birmanês com as rotas marítimas e do vácuo de poder que tinha assolado a região em fins do século 16. E nesse sentido, acabou tendo a autorização do governo português em Goa, na costa oeste indiana, o chamado Estado da Índia, e montou uma alfândega na cidade, visando taxar as relações entre a Baixa Birmânia, a Índia e o arquipélago indonésio. Para tanto, foi agraciado com um título vitalício e hereditário, dando-lhe acesso a nobreza da sociedade portuguesa.

 

Em 1612, Filipe de Brito aliou-se aos regentes de Martaban, vassalos de Ayutthaya, e atacou em conjunto a cidade de Toungou. A queda dessa cidade convenceu Anaukpetlun de que algo deveria ser feito para deter o europeu, cujos domínios impediram o acesso à costa birmanesa. Em 1613, Anaukpetlun atacou as forças de Brito e acabou tomando o controle do forte de Siriam. O português foi capturado e, por ter cometido sacrilégios contra os templos budistas, foi empalado numa estaca de ferro. A esposa do português, Luísa de Saldanha, recusando fazer parte do harém do rei birmanês, virou servente do palácio real. Os soldados de Brito foram poupados e depois serviram como responsáveis hereditários, chamados de bayingyi, pela artilharia do reino de Toungou [Smith, 2011, pp. 274 – 275].

 

O destino de Siriam demonstrou os limites da atuação europeia quando confrontados com forças organizadas asiáticas da época. Pois Portugal, apesar de terem sido pioneiro na presença no continente, nunca teve disponível grande contingente de homens a povoar e controlar além de portos e cidades costeiras estratégicas na Ásia. Há estimativas de que o Estado da Índia, como era chamado o império português pela Ásia, não tinha mais do que 10 mil homens [Newitt, 2015, p. 81].

 

O império de Toungou, restaurado, na primeira metade do século 17, resultou num Estado muito mais centralizado e organizado, a evitar as desagregações de vassalos como ocorreram no passado. Até mesmo as instituições budistas foram controladas e taxadas, a evitar seu excessivo fortalecimento. E todos aqueles pertencentes às famílias nobres e altas autoridades religiosas deveriam residir na capital, Ava. Os estrangeiros, depois de Brito, foram vigiados quando não eram evitados e expulsos de qualquer contato com o império, conferindo a Ayutthaya como novo palco da presença europeia na região do Sudeste Asiático a partir de então.

 

O sucessor de Anaukpetlun, Thalun (r. 1629 - 1648), coroado em 1629 como o oitavo rei da dinastia Toungou, continuou com a política de seu pai em estender a hegemonia pelas regiões birmanesas. Buscou valorizar mais a cultura birmanesa em contraste com os a dos mons que até então tinham influência predominante na corte do império. Foi durante seu reinado que o império de Toungou começou a revelar suas fissuras na estrutura política. Uma vez centralizado, o império tornou-se excessivamente grande e burocrático, com muitos cargos administrativos sendo ocupados por ministros e conselheiros. E foram entre esses que as intrigas contra o trono foram elaboradas.

 

Em 1648, Pindale sucedeu Thalun, e esse regente foi incapaz de conter a sua corte, sendo eventualmente destituído do trono em 1661. Pindale teve uma série de infortúnios na sua vida, pois foi acusado de não pertencer à família real por ter nascido de uma das concubinas de seu pai. Ademais, na esfera externa, Pindale enfrentou incursões dos chineses sob nova dinastia desde 1644, a Qing, nas regiões setentrionais birmanesas. Essa série de desastres desgastou a legitimidade de Pindale, que depois acabou sendo afogado por um meio-irmão seu, Pye, no rio Chindwin.

 

Esse golpe em 1661 provocou uma mudança de lealdades no império Toungou. O novo rei, Pye, acabou sendo influenciado por aqueles que o ajudaram a chegar ao trono imperial: ministros, líderes e conselheiros da corte. A figura do rei, em suma, tornou-se uma mera peça a ser manipulada a atender os interesses políticos. No trono subsequente de Pye, Narawara (r. 1672 - 1673), que governou por nem um ano devido às suas doenças, estava evidente que o palácio real de Ava não era mais do que uma mera sombra da grandeza de seus antepassados. E disso decorreram décadas de instabilidades e emergência de múltiplos centros de poder a rivalizarem entre si o domínio birmanês. Cidades foram fortificadas e muralhadas a proteger de inimigos e bandidos. O último da dinastia Toungou, Maha Dhamma Yaza (r. 1733 - 1752), tentou por mais uma vez retornar o efetivo poder para Ava, mas o declínio era evidente. Pois em 1752, a capital fora invadida e saqueada por uma fulminante esquadra que tinha subido o rio Irauádi.

 

Alaungpaya (r. 1752 - 1756) (fig.), um birmanês natural de Shwebo, foi quem fundou uma nova dinastia, a de Konbaung, em abril de 1752. Descendente de famílias nobres locais, Alaungpaya começou em meados do século 18 reunificar e revigorar a unidade imperial birmanesa uma vez mais. Suas primeiras vitórias nesse sentido foram militares, a começar pelo norte do país, para depois recompensar seus soldados e aliados com terras e controle de recursos naturais. Para recompor a estrutura administrativa, jurídica e religiosa, Alaungpaya concedeu a antigos integrantes do governo de Toungou. Na Baixa Birmânia, Alaungpaya encontrou notável resistência dos mons e uma de suas cidades, a de Siriam, apresentou longa tenacidade no uso de canhoneiras francesas de embarcações francesas de Pondicherry, na Índia Francesa, que estavam ancoradas na cidade. Foi uma benção inesperada a captura desses armamentos por Alaungpaya em 1757 e alguns desses franceses capturados foram depois admitidos como altos funcionários militares a serviço da nova dinastia birmanesa.


Túmulo de Alaungpaya em Shwebo, exemplo da arquitetura birmanesa da época dos Kounbaungs. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Alaungpaya%27s_tomb,_Shwebo.jpg

 

Revigorado depois de Siriam, Alaungpaya depois passou a fustigar a cidade próxima de Pegu, uns 50 km ao norte de Siriam. Foram necessários cinco meses de sítio para capturar a capital dos mons. A ferocidade do saque e pilhagem foi um dos maiores fatores para a quase total obliteração dos monumentos culturais dessa histórica cidade na Baixa Birmânia. Dois anos depois, em 1759, Alaungpaya, uma vez senhor inconteste de toda a região meridional, passou a avançar para cima das terras dos tais, ao leste. A capital dos tais, Ayutthaya, foi sitiada por anos a partir de 1760 que somente foi capturada sete anos depois, com o resultado de um magnífico saque dos seus tesouros imperiais [Baker & Phongpaichit, 2017, p. 268]. A capital tailandesa nunca mais seria a mesma. Na mesma época, houve tentativas de invasões dos chineses a comando do imperador Qing, Qianlong, em 1765. Que resultou numa situação de impasse no norte birmanês e a retomada das relações diplomáticas e envio de simbólicos tributos para Pequim nos anos subsequentes.

 

Não obstante, essas vitórias não se traduziram em anos de paz para a dinastia Konbaung. Em 1782, o quinto filho de Alaungpaya, Bodawpaya (r. 1782 - 1819), tomou o trono de alguns de seus irmãos e primos que não tinham apresentado talento político suficiente. Para tal, Bodawpaya perseguiu sistematicamente todos aqueles que poderiam minar sua autoridade, dando vez a um selvagem massacre. Uma vez no trono, Bodawpaya, mudou a capital do reino para Amarapura (fig.), talvez a afastar-se de conspiradores rivais em Ava. Não seria a última capital dos Konbaung, pois em 1857, a capital seria novamente mudada para Mandalay.

 

Retrato do antigo palácio imperial do Elefante Branco de Amarapura, em 1855. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:White_Elephant_Palace,_Amarapura.jpg

 

Problemas advieram das relações com o reino de Arakan. Pois com esses, os birmaneses de Konbaung começaram a se envolver contra os interesses dos britânicos, presente na fronteira logo ao oeste, na Índia. As convivências com a Índia Britânica rapidamente se deterioraram quando as autoridades arracanesas buscaram o apoio dos britânicos, e esses começaram a enxergar uma possível aliança dos birmaneses com os franceses a ameaçar suas fronteiras na Índia. Ademais, Arakan era considerada como parceira comercial dos britânicos da Companhia Britânica das Índias Orientais (CBIO) que administraram a partir de Calcutá. Vendiam vastas quantidades de madeira (teca) para a crucial construção e manutenção de navios.

 

Foi nesse sentido que foi enviada para Amarapura uma missão britânica liderada por Michael Symes em 1795. Mas que foi ignorada pela corte de Bodawpaya. Depois de uma segunda missão fracassada em 1813, Symes passou a recomendar uma ação mais decisiva contra os birmaneses. As relações passaram a ser violentas a partir da década de 1820. Foi o neto e sucessor de Bodawpaya, Bagyidaw (r. 1819 - 1837), que provocou uma reação bélica dos britânicos, ao mandar perseguir sob comando de um de seus generais, Bandula, alguns fugitivos arracaneses em Chittagong, então sob a proteção da CBIO. Como reação, em 1824, a cidade de Rangum na Baixa Birmânia foi bombardeada por navios britânicos e ocupada. Uma vez na cidade, contudo, os britânicos não conseguiram avançar mais ao interior, devido às condições adversas do clima e doenças tropicais.

 

Bandula, após essa conquista, buscou angariar e reagrupar suas forças a noroeste de Rangum, mas o general acabou sendo morto pelos bombardeios dos britânicos em 1825. Os momentos decisivos ocorreram no ano seguinte, quando houve o envio de navios encouraçados dos britânicos a partir de Calcutá. Um deles, o Diana, a que os birmaneses chamaram de "o demônio de fogo", alcançou Amarapura navegando o rio Irauádi acima e logo foram assinados os termos de paz. Os termos foram tão ultrajantes que provocou a ira de Bagyidaw e mandou castigar o negociante birmanês. Foram cedidos os territórios de Manipur, Assam, Arakan e Tennaserim à supervisão britânica, além do pagamento de quase um milhão de libras esterlinas da época. Assim foram concluídas a chamada Primeira Guerra Anglo-Birmanesa em fevereiro de 1826 [Myint-U, 2001, p. 20].

 

A queda definitiva da dinastia Konbaung se dará após uma série de novos conflitos com os britânicos ao longo do século 19, com a deposição do último rei birmanês, Thibaw Min, em 1885.

 

  

REFERÊNCIAS

Dr. Emiliano Unzer é professor titular de História da Ásia na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes)

 

AUNG-THWIN, Michael & AUNG-THWIN, Maitrii. A History of Myanmar since Ancient Times: Traditions and Transformations. Londres: Reaktion, 2012.

BAKER, Chris & PHONGPAICHIT, Pasuk. A History of Ayutthaya: Siam in the Early Modern World. Cambridge & Nova York: Cambridge University Press, 2017.

HARVEY, G. E. History of Burma. West Waterloo, Ontário, Canadá: Laurier Books, 2000.

MYINT-U, Thant. The Making of Modern Burma. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.

NEWITT, Malyn. Emigration and the Sea: An Alternative History of Portugal and the Portuguese. Oxford & Nova York: Oxford University Press, 2015.

SMITH, Stefan Halikowski. Creolization and Diaspora in the Portuguese Indies: The Social World of Ayutthaya, 1640-1720. Leiden & Boston: Brill, 2011.


6 comentários:

  1. Pude perceber que a religião em momentos era bastante contundente e em outros o sincretismo mostrava um viés político, mas como a dinâmica religiosa representava os clãs? Isso foi fator relevante na rivalidade e na participação europeia no Imperio?
    Victoria Toscani Burigo Fernandes

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    1. De fato, o budismo teravada alavancou a ascensão do império a partir de Pagan nos séculos 10 em diante, principalmente durante o reinado de Anawrahta (r.1044-1077) advindos dos monges e estudiosos Mon , entre a etnia Bamar, a maior que compõe o país. Entretanto, como sua indagação já aponta, isso conviveu com a religiosidade popular birmanesa nas crença em espíritos guardiões , os nats.

      Essa situação perdurou durante a dinastias Taungu e Konbaung, As campanhas expansionistas do período Toungu foram particularmente expressivas na propagação do budismo entre os povos fronteiriços , como entre os povos Shan no norte e leste, e os de Arakan no oeste. Houve inclusive envio de missões budistas ao reino do Sri Lanka , a adornar o santuário do Dente Sagrado de Kandy no século 16.

      A chegada dos portugueses , no século 16, num primeiro momento não trouxe ameaças ao reino birmanês , considerados apenas como potenciais aliados nas estratégias dos governantes nas guerras contra povos da região. Os franceses no século 18 contribuíram para a queda do regime Toungu. O novo período dos Konbaungs, após as guerras contra os siameses, testemunhou um acentuado torto budista , com as Reformulações Sudhamma a partir do século 18.

      Considerando o período histórico do artigo, portanto, essa era a situação religiosa das dinastias birmanesas. Um budismo endossado pelo Estado, com as fluidas alianças (e rivalidades) com nações vizinhas . A partir do século 19, a entrada de missões protestantes britânicas nas regiões de mais difícil acesso irá acentuar ainda mais os desafios de uma futura unidade do país que depois iria se chamar de Mianmar.


      Bibliografia

      Sarkisyanz, E. (1965). The Buddhist Tradition of Burma’s History. In: Buddhist Backgrounds of the Burmese Revolution. Springer, Dordrecht.


      Unzer, Emiliano. (2021). História da Ásia. Amazon.

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  2. Olá, texto de ótima escrita, parabéns!
    Gostaria de perguntar como a interação com mercenários portugueses influenciou a expansão territorial e o cenário militar do Império Toungou durante o século 16?

    Fabiana Fernandes Firmo

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  3. Vamos aos casos em questão. Primeiro, João Caeiro, mercenário português do século 16 a serviço do rei Tabinshwehti.
    Caeiro liderou um grupo de 700 mercenários portugueses - além dos 13 mil homens de Toungu - que, como mosqueteiros e artilharia, lutaram na batalha de Martaban (1540-41).

    Segundamente, esses guerrearam contra as defesas de Martaban, liderados por outro grupo de mercenários portugueses, liderados por Paulo de Seixas. Este chegou mesmo a ser nomeado como vice-rei de Martaban, na região dos mons na Baixa Birmânia. Em situação de iminente derrota, o regente de Martaban, Saw Binnya, mandou carta às autoridades portuguesas, ofertando ser vassalo de Goa.

    Em último momento, Martaban foi derrotada pelas forças de Toungu. De acordo com Fernão Mendes Pinto, Seixas consegui escapar para a Costa do Coromandel , na Índia.

    A analisar isso, evidencia-se a participação de Portugueses na história birmanesa, mas como mercenarios e em busca de glória e ouro, nada indo além disso, sem uma clara evidência de que os súditos da Coroa Portguesa tivessem ter uma mão decisiva nos eventos. Foram ofertados recompensas aos lusitanos na queda de Martaban, mas, como narra-se nos registros, esses temeram an ira de Tabinshewhti de Toungu, e prontamente se retiraram. Após essa vitória Toungu teve grande ganho estratégico ao controlar a foz do Rio Salwee.

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  4. Como a introdução de armamentos europeus pelos portugueses influenciou a estratégia militar e a expansão da dinastia Toungou na Birmânia no século XVI?

    Quais foram os principais fatores que contribuíram para o declínio do Império Toungou após o auge de Bayinnaung, e como a fragmentação política influenciou a geopolítica da região?

    De que forma a relação comercial e cultural entre os reinos birmaneses e os impérios vizinhos, como o Mogol, moldou a diplomacia e a economia da Birmânia durante o período abordado?

    Como as alianças e conflitos com comunidades locais, como os shans, tais e arracaneses, moldaram a trajetória do Império Toungou e sua relação com o budismo na região?

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  5. Luiz Henrique Santana Depollo5 de dezembro de 2024 às 10:25

    Professor Emiliano, fiquei bastante intrigado com sua descrição da chegada dos portugueses na Birmânia, a relação das armas e a aliança, particularmente, me despertou maior interesse. Existiram fatores tanto para incitar quanto para dificultar as tentativas Toungous em conquistar as cidades mais ao leste, como Chittagong e as regiões controladas por Arakan, mesmo com o apoio dos armamentos portugueses?

    Luiz Henrique Santana Depollo

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