COOL E KAWAII:
MEMÓRIA, APAGAMENTO HISTÓRICO E IDENTIDADE NO JAPÃO CONTEMPORÂNEO
A
emergência do Japão como uma potência cultural nas últimas décadas do século XX
e a relativa carência de uma discussão sobre a extensão de sua presença
cultural até anos recentes, não é simplesmente casual, mas um reflexo das
transformações na manifestação cultural japonesa após a Segunda Guerra
Mundial. O que é apresentado como uma cultura híbrida, entre o
“tradicionalismo” e “inovação”, fez parte de uma estratégia de reconstrução
nacional, que buscou consolidar uma identidade exclusiva e única sob a luz da
hegemonia norte-americana.
As
décadas subsequentes à rendição foram marcadas pela ocupação estadunidense
no arquipélago e pela mudança da postura expansiva do período imperial para uma
quase inexistente no cenário internacional. A promoção cultural nesse breve
período podia ser vista negativamente, comprometendo a necessária reinserção do
país na economia mundial. Essa conjuntura foi acompanhada por uma intensa busca
por uma identidade nacional, que havia sido desconstruída com a renúncia do
imperador. Isso abriu espaço para uma disputa ideológica interna por meio da
representação popular da Guerra e como o conflito seria superado. Nesse
cenário, a introversão cultural foi acompanhada por um projeto de esquecimento
histórico dos anos imperiais.
Conforme
aponta Okamoto (1993 apud Marcelo Neto, 2021), uma característica da
historiografia japonesa é que ela tende a voltar suas discussões para um
passado distante, geralmente ao seu período medieval. A bomba atômica, por sua
vez, é parte de um passado que não faz parte do presente, apenas quando pode se
tornar uma ferramenta para justificar ações de uma elite política. Nesses
termos, a memória de guerra do Japão tem sido continuamente imaginada partindo
de sua condição de vítima. Dentro desse campo de análise, questões de sua
contemporaneidade, principalmente no que concerne à Segunda Guerra, ocupam um
espaço extremamente reduzido, quando se quer existentes.
O
surgimento de novas tecnologias na segunda metade do século XX, como o
computador e a internet, criaram uma onda cultural: além de favorecer a difusão
de notícias, eles permitiram que novas formas de retratar a Guerra do Pacífico
fossem produzidas em forma de novels, mangás e animes, com fins
alternativos e distorção da realidade. O posicionamento do governo japonês e a
revisitação de controvérsias em torno de seus crimes de guerra enfraqueceram
suas relações diplomáticas e a incapacidade da sociedade japonesa em
estabelecer uma narrativa cultural dominante, associado à concorrência
ideológica em cima das interpretações dos eventos, agravaram o sentimento
anti-japonês, o qual começou a ganhar maiores proporções, sobretudo nas antigas
colônias do império, como a Coréia do Sul e a China (Seaton, 2007; Nozaki,
2008).
Contudo,
a popularidade dos programas japoneses de televisão e de tecnologias como o walkman
em outros países asiáticos mostrava que o passado colonial do Japão não impedia
que produtos japoneses e, mais especificamente, sua cultura pop se
expandisse. Isso chamou atenção para o
potencial de produtos midiáticos como ferramenta para a difusão de uma nova
imagem nacional que contribuísse para seu restabelecimento político. Assim,
além do investimento tecnológico, percebe-se o desenvolvimento e exportação de
produções audiovisuais, mas com características que a princípio não invocassem
a imagem do Japão e, consequentemente, seu passado colonial.
Nesse
sentido, Iwabuchi (2002) aponta que apesar da influência das tecnologias
japonesas na vida cotidiana, haveria uma ausência de sua presença cultural, ou
seja, que seus produtos eram “inodoros”. O autor cunhou a expressão “odor
cultural” para se referir à associação de determinados produtos à cultura,
estilo de vida e imagens simbólicas do país de origem, muitas vezes
estereotipadas. Conforme explica:
“Aqui,
no entanto, estou interessado no momento em que a imagem do estilo de vida
contemporâneo do país de origem é forte e assertivamente evocada como o próprio
atrativo do produto, quando o “odor cultural” das mercadorias culturais é
desenvolvido. O modo como o odor cultural de um determinado produto se torna
uma “fragrância” – um cheiro social e culturalmente aceitável – não é
determinado simplesmente pela percepção do consumidor de que algo é “Made in
Japan”. Nem é necessariamente relacionado à influência do material ou à
qualidade do produto. Tem mais a ver com imagens simbólicas amplamente
disseminadas do país de origem”. [Iwabuchi, 2002, p. 27] (Tradução nossa)
O
odor cultural de um produto também pode ser associado aos traços raciais ou
étnicos específicos do país de origem. Segundo Iwabuchi (2002), nota-se que nas
três principais exportações audiovisuais do Japão: tecnologias do consumo;
quadrinhos e desenhos animados; jogos de computador e videogames, as
características étnicas são suavizadas ou apagadas. Neles, os personagens não
especificam ou afirmam a nacionalidade, insinuando que as características
culturais desses produtos não fossem fatores relevantes para seu consumo,
diferente das mercadorias norte-americanas.
É
nesse cenário que surge o estilo “mukokuseki”, que se refere a essa
ausência de nacionalidade, também sugerindo a falta de traços étnicos e
contexto racial, como é o caso das produções de Oshii Mamoru, cujos personagens
são deliberadamente desenhados com traços caucasianos. Embora essa tendência
dos animadores criarem seus personagens em estilo mukokuseki apontar
para uma hierarquia cultural dominada pelo ocidente, é justamente a ausência de
traços que remetessem a qualquer tipo de imagem negativa ao Japão, ou seja, que
emitissem “odor cultural” e a incorporação de elementos ocidentais, que tornava
seus produtos comercializáveis em um mundo nos primeiros estágios de
globalização. A estratégia de desenvolver produtos que não evocassem a figura
do Japão, enfatizando sua “fofura” (kawaii) e distanciando-os de uma
imagem negativa que a figura “Japão” poderia causar a fim de criar um “odor
cultural não ofensivo” permitiu a assimilação de seus bens, ainda que
remetessem à figura do Estado japonês minimamente. Nesse sentido, o mukokuseki
também opera como instrumento de despolitização e desconexão histórica,
tornando-se a nova “nacionalidade” dos produtos japoneses (Iwabuchi, 2002;
Yano, 2014).
Na
década de 1990, o Japão passa a ganhar importância no mercado cultural
internacional e com a disseminação das produções japonesas em escala mundial,
essas passam a ter relativa fragrância cultural. A partir disso, Iwabuchi
(2002) aponta a contradição em torno da popularidade da cultura mukokuseki:
ela articula o apagamento de qualquer “japonicidade” perceptível do produto,
mas uma vez que passa a emitir um “odor cultural”, também promove o apelo
universal aos produtos culturais japoneses, dado que seus consumidores criam
uma relação não apenas com o produto, mas com a própria cultura que o envolve.
É
nesse ponto que o potencial dos produtos culturais contemporâneos como
ferramenta para a promoção de uma nova imagem nacional se faz evidentes ao
passo que, como explica Iwabuchi (2002), a identidade cultural do Japão, a
“japonicidade”, é estrategicamente adaptada ou apagada para maximizar o apelo
universal dos bens de consumo. Essa adaptação muitas vezes mistura sutilmente
elementos culturais japoneses com influências globais, especialmente
ocidentais, aludindo a períodos históricos distantes que enfatizam o exotismo e
a singularidade do país. Nesses termos, a contradição identificada pode ser
analisada como um reflexo de um projeto mais amplo de apagamento da memória histórica
recente do Japão, especialmente em relação ao seu passado imperialista, estando
alinhado com estratégias que buscam redefinir a identidade nacional japonesa de
forma a minimizar ou recontextualizar aspectos sensíveis da história.
A
formação de uma nova identidade nacional do Japão já vinha sido discutida anos
antes do fim da Segunda Guerra e não foi um movimento intelectual ausente de
comentários por parte de pensadores críticos dessa noção de “japonicidade”.
Nesse cenário, Tosaka Jun (1900 - 1945) é consideravelmente uma das figuras
mais proeminentes no campo de teorização da produção cultural e crítica
capitalista do Japão Moderno, sua filosofia de análise do cotidiano relaciona
uma expansão da consciência individual em uma subsequente identidade nacional
coletiva que formaria o corpo das “coisas japonesas”. Nessa perspectiva de
produção cultural, a existência é trocada por suas derivações e a ontologia é
substituída pela filosofia (Harootunian, 2013), visto que o discurso sobre o
que seria essencialmente “japonês” existe em uma ambientação lógica onde
conceitos do passado e presente não necessariamente se comunicam em
verossimilhança, mas sim de forma ideológica para a formação de uma identidade
nacional que emana da consciência individual; processo esse que exige uma
reimaginação da história do Japão por meio de um trabalho filológico de
extração de significado de conceitos históricos.
Para
Tosaka, esse arcaísmo e espiritualismo históricos utilizam a filologia para
estabelecer a existência de uma história espiritual que não distinguem o
passado do presente. A consequência dessa troca da forma pela substância, da
vida material para a vida espiritual é a troca de uma história do presente por
uma que pode ser manipulada pelos conceitos impostos à ela e “quais posições
eles ocupam no sistema categórico de significado” (Harootunian, 2013, p. 33)
Na
virada para o século XXI, o projeto cultural do Japão como uma potência nessa
modalidade teve grande apelo ao público jovem por meio da representação de um
estilo de vida urbano e moderno — parte do que é chamado de youth culture
— mais atraente para os jovens que não vivenciaram o imperialismo japonês. Essa
estratégia tinha o intuito de tornar o Japão e a “japonicidade” ou o que era
promovido como “cultura japonesa” e, logo, a simbolização de sua imagem, em
algo cool e singular (Iwabuchi, 2002; Yano, 2014).
“Em
outras palavras, rotular o Japão como Cool-Kawaii disfarça as recessões
econômicas, as controvérsias internacionais e outras realidades cruéis (…) A
afirmação fundamental dessa versão específica do Japão Cool – isto é,
a-histórico, despolitizado, asséptico - na verdade, deixa muitos de seus
críticos inquietos”. [Iwabuchi, 2002, p.259-260] [Tradução nossa]
No
entanto, Iwabuchi (2002) argumenta que o fascínio por uma cultura evocada a
partir do consumo de seus produtos culturais não pode ser associada diretamente
ao estilo de vida ou ideais reais de um país. A realidade construída a partir
dessa via seria uma ilusão monológica, que não reflete a realidade, de fato, da
sociedade japonesa nesse caso.
“Uma
coisa é observar que os textos de Pokémon, por exemplo, estão influenciando as
brincadeiras e o comportamento das crianças em muitas partes do mundo e que
essas crianças percebem o Japão como uma nação legal porque ela cria produtos
culturais legais (cool) como o Pokémon. Outra é dizer que essa influência
cultural e essa percepção de cool estão intimamente associadas a uma apreciação
tangível e realista dos estilos de vida ou ideias “japonesas”. Pode-se
argumentar que o desejo por outra cultura que é despertado através do consumo
de bens (commodities) culturais é, inevitavelmente, uma ilusão monológica”. [Iwabuchi,
2002, p. 33-34] [Tradução nossa]
A
abertura do Japão para o Ocidente durante o final de Edo e começo de
Meiji causa um influxo de produções de costumes ocidentais, diga-se europeus,
começam aos poucos a integrar a sociedade japonesa e o kawaii passa por
uma mudança semântica se aproximando do entendimento atual do termo.
A influência ocidental no cenário
artístico do Japão principalmente ao que tange o kawaii pode ser observado
pelos trabalhos de Nakahara Jun’ichi, que por meio de suas ilustrações retrata
garotas não apenas vestindo roupas de estilo ocidental, mas também com
características fisionômicas europeias. A presença de técnicas ocidentais é
notável na arte de Nakahara, porém ainda mantendo estilisticamente elementos da
arte japonesa, tais como rostos longos e bocas pequenas em mulheres. Essa
hibridização entre âmbitos ocidentais e japoneses é crucial para entender anos
mais tarde como que o mercado de fancy goods será arquitetado. Nakahara
coloca em evidência por meio de suas ilustrações a figura da shoujo, uma
mulher que não é nem menina e nem adulta, e por meio delas instrui as mulheres
tanto os modos de se vestir como de agir e se comportar. A shoujo pode
ser vista como uma criação da sociedade moderna de consumo que começa a levar
em consideração mulheres e crianças também como possíveis consumidores ativos.
Pelo fato da shoujo estar em uma fase transitória da vida, há nela
múltiplas potencialidades do que ela poderá se tornar quando adulta, que por
sua via acompanha um padrão de consumo ilimitado, dado que o processo de
identificação com os produtos é facilitado pela própria ausência de uma
identidade fixa, ponto esse central ao se tratar tanto do consumidor como o kawaii
em si.
“Essa valorização da fase
shôjo é explicada pelo pesquisador e
crítico social Ôtsuka Eiji, no seu livro Shôjo minzokugaku. O autor afirma que
shôjo é um produto inventado pela sociedade moderna, porque, antes disso, havia
apenas as meninas sexualmente imaturas que passavam, a partir do momento da
menstruação, a ser mulheres maduras prontas para assumirem o papel de
reprodutoras e de força de trabalho. Essa obra esclarece, ainda, que essa fase
intermediária, em que as meninas deveriam ser conservadas e sem uso, como um
objeto de troca futura, foi criada pela sociedade de consumo." [Okano,
2014, p. 6]
A
terceira fase do kawaii e a
mais próxima do conceito atual começa a se desenvolver entre estudantes durante
os anos 1970. A autora Sharon Kinsella aponta em seu texto “Cuties in Japan”
que o kawaii tem sua aparição em cartas e bilhetinhos trocados entre
grupos de estudantes com gírias e vocabulários próprios, escritos com letras
mais arredondadas e seguindo modelo de escrita ocidental – horizontalmente da
esquerda para a direita. Kinsella aponta que ao trocar as cartas entre si os
estudantes criam laços afetivos mais profundos com suas produções ao mesmo
tempo que praticam atos de micro-rebeldia ao não utilizarem a caligrafia
japonesa, considerada por muitos como o grande símbolo da cultura japonesa.
Essa origem do kawaii no
rompimento com as rígidas e tradicionais regras de conduta tanto do ambiente
escolar quanto da sociedade japonesa aponta, para Kinsella, uma das
características centrais no entendimento do kawaii como um produto da sociedade de consumo, a dinâmica entre
identidade e rebeldia.
Ainda
nos anos 1970, as grandes corporações não demoraram para perceber a
popularidade do kawaii entre
os jovens e rapidamente começaram a incorporar elementos dessa estética em seus
produtos, fato que leva ao início do mercado de Fancy Goods alavancada
principalmente pela empresa Sanrio. A indústria de Fancy Goods fabrica
um diverso catálogo de produtos desde utilidades domésticas, souvenirs até
produtos feitos com o simples propósito de ser fofo, dispensando critérios de
utilidade prática. Em relação ao design, os fancy goods incorporam elementos artísticos
europeus em detrimento da arte tradicional japonesa, são coloridos em tons
pastéis, principalmente cor-de-rosa e ornamentados ou com personagens (kyarakakuta),
ou com flores, animais e outros adornos que evocam sensações de delicadeza e
conforto. É um aspecto marcante da indústria de fancy goods que ela
busca uma forte ênfase na relação afetiva que seus consumidores podem
potencialmente criar com os produtos; a mais sutil presença de ornamentos fofos
e amigáveis nos mais mundanos do produtos é capaz de produzir uma nova
personalidade de simpatia nos objetos, fazendo com que o consumidor crie laços
afetivos com o produto que superam a relação fundamentalmente financeira entre
consumidor-produto, adentrando a esfera do apego emocional motivada pelos
sentimentos positivos resultantes da compra e, discutivelmente, sentimentos
esses presentes no produto em si. Além da dinâmica entre consumidor e produtos
há também a premissa da criação de laços sociais entre os consumidores e a
formação de uma identidade pessoal baseada inteiramente nesse consumo, ou seja,
um cenário em que ao adquirir um produto adquire-se também a oportunidade de
integrar um grupo social no qual seus integrantes se relacionam por conta de um
gosto comum pelo kawaii. Em um nível individual, o consumidor pode vir a
comprar os produtos motivados por essa vontade de identificação social, como
explica Kinsella:
"O
estilo kawaii confere aos produtos uma atmosfera calorosa e alegre. O que os
processos de produção capitalistas despersonalizam, os designs kawaii
repersonalizam. O consumo de muitos produtos fofos com poderosas propriedades
de indução de emoções poderia ironicamente disfarçar e compensar a própria
alienação dos indivíduos em relação às outras pessoas na sociedade
contemporânea […] Os consumidores modernos podem não ser capazes de conhecer e
desenvolver relacionamentos o suficiente com as pessoas, mas a premissa do
design de produtos fofos era que eles sempre poderiam tentar desenvolvê-los
através dos objetos kawaii.” [Kinsella, 1995, p. 228] [Tradução nossa]
É
com a produção desses produtos que entra em destaque novamente a figura da shoujo
como consumidora e representação do kawaii em si. A shoujo representará
a fase transitória entre a infância e a vida adulta, um período de inocência em
relação às coisas do mundo, coberto com um sentimento de vulnerabilidade em uma
busca latente por pertencimento social em um momento germinativo de sua
identidade. A relação que o kawaii tem com a vulnerabilidade, assim como
a relação profunda que o kawaii tem com o período da infância, dado que
ela por si própria já é um período de formação de identidade, ocasiona uma
decorrente infantilização de pessoas e objetos. O período da infância é marcado
pelo processo de formação identitária sobre os conteúdos do mundo, ou seja, não
há ainda uma enraizada identidade e conhecimento sobre as coisas, é um período
de “blankness”. Esse conceito é bem definido por Christine Yano em “Pink
Globalization” onde é argumentado que o fator crucial para entender o sucesso
da Sanrio na produção de fancy goods e kyarakuta recai nessa
mesma ausência de fortes elementos identitários com os produtos, já que não há
nada que os caracterize além da fofura em si, o consumidor pode projetar
qualquer identidade nele. Além das características gerais estéticas do kawaii,
como formas arredondadas, tons suaves e elementos associados com o feminino, os
produtos da Sanrio, em específico a Hello Kitty, não possuem elementos de
imposição de significado, os personagens podem estar em qualquer lugar e
tomarem qualquer forma já que neles há uma “coisa-vital” da própria “coisa” que
permite essa multitude de significados que o kawaii pode incorporar (Yano,
2014).
É
importante ressaltar que essa ausência de identidade também funciona como
capacidade de adaptação, pois é na ausência que se encontra a potencialidade
para criar múltiplos significados. A propriedade de aplicação em qualquer local
e ocasião é altamente lucrativa para qualquer indústria, tornando assim a Hello
Kitty um personagem, ou objeto, passível de ser vastamente encontrado em uma
infinitude de contextos, o que, por sua vez cria um vínculo fortíssimo entre o kawaii
e o consumismo e uma consequente commodificação dessa personagem.
“Uma
'coisa' como a Hello Kitty torna-se uma substituta para a expressão, mediação,
transformação e objetificação das relações sociais que a produziram e a cercam.
Ela não é simplesmente um objeto ou imagem; ela é especificamente um
objeto/imagem à venda, incumbida com poderes especiais derivados, em parte, das
múltiplas manifestações do excesso do capitalismo tardio. Em suma, o fetichismo
de mercadoria da Hello Kitty vive no excesso e através dele”. [Yano, 2014, p.
23] [Tradução nossa]
A
formação de um discurso de um Japão Cool-Kawaii dialoga com a
conceptualização de produção histórico-cultural apresentada por Tosaka no
sentido de que foi criado um espaço crítico de idealização de uma nova
identidade nacional onde o presente e passado se amalgamam em um
tempo-histórico que por meio do instrumento da filologia corporifica uma
produção cultural que busca dar significado a coisas previamente
despersonalizadas de suas ambientações conceituais. Ao tratar de temas
contemporâneos, a noção de “cotidiano” como a história presente efetiva
apresentada por Tosaka torna-se essencial para que seja possível compreender o
tempo presente sem as distrações causadas pelos discursos que reiteram uma
visão a-histórica, temporalmente ambígua e recondicionada. Nesse contexto, o mukokuseki emerge tanto como um reflexo da
própria despersonalização em busca de uma receptividade global, como também
reforça um apagamento simbólico de identidades e memórias históricas a fim de
evitar suas contradições culturais internas. Nesse sentido, a discussão sobre
no que consiste uma identidade nacional ecoa em questionamentos de autoconsciência
quanto às relações estabelecidas entre indivíduos e coisas do mundo, entre a
subjetividade da experiência humana e os conceitos que constituem o que é concedido
como realidade.
Referências
bibliográficas
Carolina
Akemi Kishiye é graduanda de Ciências Econômicas pela PUC-SP.
Lara
Oushi Escobar é graduanda em Filosofia pelo Departamento de Filosofia da
FFLCH-USP.
HAROOTUNIAN, H. Introduction: The Darkness of
the Lived Moment. In KAWASHIMA, K.; SCHAFER, F.; STOLZ, R. (eds). Tosaka Jun: A
Critial Reader. Ithaca, New York: Cornell University, 2013.
IWABUCHI, K. Recentering Globalization: Popular
Culture and Japanese Transnationalism. Durham: Duke University Press, 2002.
KINSELLA, Sharon. Cuties in Japan: Women, Media
and Consumption in Japan. Honolulu, HI: University of Hawaii Press, 1995.
MARCELLO
NETO, Mario. Entre a bomba atômica e os crimes de guerra: o negacionismo e a
historiografia japonesa em perspectiva. Revista Brasileira de História. São
Paulo, vol. 41, nº87, pp. 37-60, 2021.
NOZAKI,
Yoshiko. War Memory, Nationalism and Education in Postwar
Japan, 1945-2007: The Japanese history textbook controversy and Ienaga Saburo’s
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OKANO,
Michiko. A Estética Kawaii: origem e diálogo. Anais do Encontro Internacional
de Pesquisadores em Arte Oriental. São Paulo: Editora
Universidade Federal de São Paulo, 2014.
SEATON, Phillip A. Japan’s contested war
memories: ‘the memory rifts’ in historical consciousness of World War II. New
York: Routledge, 2007.
YANO, Christine R. Pink Globalization: Hello
Kitty’s Trek Across the Pacific. Durham and London: Duke University Press,
2013.
Primeiramente gostaria de parabenizar pelo texto. Um aspecto que fiquei curioso, a respeito da problematização da identidade cultural japonesa nos dias atuais estar atrelado ao mercado. Como vocês enxergam a relação memória com a identidade japonesa (submersa a uma lógica mercadológica)? Esta dúvida me surgiu pois me parece que da forma como o texto desdobr, os conceitos de cool e kawaii moldam a sociedade japonesa, o que faz com que a identidade japonesa (aqui movidos por costumes, hábitos, tradições, literatura, história) se tornam objetos de consumo. Dessa forma, como ficaria o lugar da memória? Ou ela acaba se reduzindo a uma projeção de um passado imaginado?
ResponderExcluirLevi Yoriyaz
Levi, boa noite! Obrigada pelo comentário! Respondendo a sua pergunta: sim, nesse caso, a memória acaba sendo reduzida a um passado imaginado, sendo reconfigurada pela lógica de mercado e despolitizada. Nesse sentido, ela se torna uma ferramenta essencial para a reconstrução da identidade japonesa em uma que seja "agradável ao consumo global" ao passo que é retomada estrategicamente para produzir uma narrativa que desloca a memória coletiva de uma reflexão crítica para um espaço de consumo estético e mercadológico.
ExcluirLara e Carolina
Boa noite! Parabéns pelo trabalho, achei o tema bastante interessante. Gostaria de saber a opinião de vocês sobre a relação entre a instrumentalização da boba atômica e o apagamento de memória e identidade japonesa. Além disso, hoje em dia, esse apagamento da identidade é auto sustentado ou é mantido pela estrutura governamental?
ResponderExcluirBeatriz Goehler
Boa noite! Obrigada pelo comentário! Em relação à primeira pergunta, a instrumentalização da bomba atômica como parte de um passado imaginado serviu para velar aspectos controversos da memória histórica japonesa e, dessa forma, desestruturar o espaço crítico da memória coletiva para redefini-la por uma que fosse agradável, despolitizada e, sobretudo, atrativa ao consumidor global. Sobre sua segunda pergunta, pode-se dizer que esse apagamento é mantido tanto por estruturas governamentais (por meio de incentivos envolvendo políticas educacionais, parcerias com o setor privado e narrativas oficiais, dentre outras) quanto pela própria sociedade japonesa, que internalizou e reproduz essas dinâmicas de despolitização e esquecimento.
ExcluirLara e Carolina
Boa noite! Meus parabéns pelo tema, é uma excelente discussão.
ResponderExcluirMinha pergunta é em relação a ausência identitária dos produtos kawaii e a identificação por parte de seu público: seria possível que essa ausência fosse vista pelo público como um traço cultural que pode ser atribuído a ilusão criada em torno da fama do Japão como um país colorido e repleto de coisas fofinhas e cujas portas estão abertas para receber os fãs e admiradores da cultura kawaii?
Olá, Hannah! Muito obrigada pelo comentário!!
ExcluirAcreditamos que sim; que essa ausência de fatores identitários do kawaii pode ser vista como um traço cultural criado como mecanismo de soft-power. Apesar das origens do kawaii não estarem necessariamente ligadas a essa questão, é visível para nós que o kawaii é uma categoria altamente atraente e lucrativa para o Japão e isso não foi ao mero acaso. Um dos nossos objetivos do texto foi tentar mostrar como, além da aparência fofa, o kawaii está inserido em um sistema complexo de diversas configurações que permite que ele seja tão prolífico, e a ausência de identidade é uma dessas configurações. Não só essa identidade é complexa internamente, mas ela se comunica externamente também com o projeto de identidade nacional do Japão pós-guerra onde se buscava um apagamento histórico e uma mudança para um país com uma aparência mais suave e gentil. Nesse sentido que encontramos o diálogo entre kawaii e a imagem do Japão contemporâneo.
Lara e Carolina
Olá! Apreciei muito a maneira como você apresentou os elementos culturais do Japão, especialmente pela profundidade com que analisou as influências históricas e sociais no comportamento moderno do país. Seu texto é claro e envolvente, e as reflexões que você compartilhou oferecem uma visão rica sobre a relação entre tradição e inovação no Japão.
ResponderExcluirGostaria de saber, com base nos aspectos que você destacou, como você vê o impacto da globalização nas tradições culturais japonesas, especialmente no que diz respeito à preservação de valores como respeito e hierarquia? Você acredita que essas tradições têm se adaptado de forma positiva ao cenário contemporâneo, ou há uma preocupação crescente com sua possível perda?
Agradeço desde já pela sua reflexão e pela contribuição tão enriquecedora!
Fabiana Fernandes Firmo
Olá, Fabiana! Muito obrigada pelo comentário!!
ExcluirAcreditamos que parte do projeto de criação de identidade nacional do Japão busca preservar esses aspectos socialmente vistos como positivos como coisas integrantes da cultura japonesa, por mais que, efetivamente, eles não sejam sempre condizentes com a realidade. Ao longo do nosso trajeto como pesquisadoras, uma parte muito desafiadora é saber onde colocar as margens do que é realidade e o que é um discurso artificial. Quando tratamos do Japão pelas lentes das artes marciais e samurais, por exemplo, temas sobre hierarquia e respeito são altamente presentes e contribuem para uma imagem positiva do Japão, porém não é absolutamente todo cidadão japonês que terá um grande apego ao bushidô ou o caminho das artes marciais. Existe um certo “gap” entre a imagem e sua forma verdadeira que é muito complexa de ser visualizada até mesmo por quem já viu as imagens inúmeras vezes. Nesse sentido, acreditamos que parte do que é chamado de cultura “tradicional” japonesa é mantido até mesmo por questões da imagem do Japão cool, porém manifestada de modos diferentes de acordo com o movimento histórico e social.
Lara e Carolina
Boa noite! Parabéns pelo texto, acho muito interessante a ideia do cool Japan servir além de um soft power mas também como um método de apagamento de tudo o que foi feito pelo Japão até o final da segunda guerra. Minha pergunta é a seguinte: acredito que pra vocês que fizeram a pesquisa deve ser perceptível o boom desse estilo fancy goods nos apps (tik tok, twitter, instagram), num mundo que hoje já é denunciado, seja por pesquisadores, criadores de conteúdos, mídia etc, o quão isso pode ser problematico em questão das pessoas não quererem estudar ou conhecer mais sobre os estilos que elas buscam ser e também a questão de corpos e infantilização de corpos femininos?
ResponderExcluirDesde já agradeço pela resposta e muitíssimo parabéns pelo texto!
Olá, Vivianne! Muito obrigada pelo comentário!!
ExcluirTemos contato com o boom de fancy goods nas redes sociais e, inclusive, é essa mesma popularidade que nos inspirou a estudar mais sobre os temas de cool e kawaii!
Seu questionamento é muito interessante!! Vendo esses conteúdos, o que mais nos chama atenção é a frequência com que o cool e kawaii são manifestados exatamente dentro dos objetivos de um sistema de pensamento que busca manipular a imagem do Japão fora de suas manifestações históricas-filosóficas-sociais efetivas. Nesse sentido, parte do nosso papel como pesquisadoras recai no trabalho de mostrar que há um sistema de pensamento por trás dessas duas categorias, cool e kawaii, que configuram suas existências e que esse sistema, não é necessariamente orgânico, mas pode ser muito bem artificial e, até de certo modo, danoso, dependendo de como o abordamos. Em um mundo ideal, todos nós aplicaríamos nossas faculdades críticas ao consumir algum conteúdo, porém tratando-se do que temos no momento, acreditamos que o caminho ainda é longo e, aos poucos e esperançosamente, haverão mais pessoas que terão uma visão crítica sobre o consumo inconsciente de conteúdo e a reprodução de comentários que acabam contribuindo negativamente socialmente possa ser freada, como a infantilização de corpos femininos que você mencionou e comentários sobre discursos ideológicos, no sentido de que não se referem à nenhuma realidade que existe de verdade.
Lara e Carolina