CORRUPÇÃO MORAL E DECLÍNIO IMPERIAL: A REPRESENTAÇÃO DA ÁSIA NO
PENSAMENTO POLÍTICO PORTUGUÊS (SÉCULOS XVI E XVII)
Uma das principais figuras do Iluminismo
francês dos séculos XVII e XVIII, Montesquieu, ao teorizar sobre a separação
dos Poderes em seu De L'Esprit des Loix,
em 1748, construiu toda a sua reflexão a partir da constante comparação entre
os costumes e as instituições políticas europeias com a dos povos da África,
Ásia e Américas. Elemento essencial na construção de seus argumentos,
frequentemente “esquecido” e ignorado pelos seus apologistas e leitores, a
teoria do determinismo geográfico e da inferioridade dos povos não-europeus com
base no clima corresponde à pedra angular na qual o autor organiza suas ideias
sobre a suposta “superioridade” da organização política europeia, sempre em
comparação com a dos não-europeus, tidos por “inferiores”, “despóticos” e
“imperfeitos” [Montesquieu, 1996].
Se a teoria da separação dos três Poderes
representa um marco na história do pensamento político europeu, a teoria do
determinismo geográfico possui um desenvolvimento próprio que, à sua forma,
impactou direta e indiretamente a reflexão política na Época Moderna. A noção
de ser a Ásia, especialmente a Índia, terra de luxos e riquezas, onde imperam
os “vícios” como a “cobiça”, cujas “delícias” corrompem moralmente os homens e
enfraquecem soldados valorosos, terá particular circulação na teorização
política em Portugal entre os séculos XVI e XVII. Essa circulação está atrelada
ao contato dos portugueses com os povos asiáticos, decorrente da centralidade
da Ásia na política imperial portuguesa.
O império ultramarino português, desde o
início do século XVI, era ancorado, em sua parte oriental, no chamado “Estado
da Índia”. Esse termo designava o conjunto dos territórios, estabelecimentos,
bens, pessoas e interesses administrados, geridos ou tutelados pela Coroa
portuguesa no Oceano Índico e mares adjacentes, do cabo da Boa Esperança ao
Japão [Thomaz, 1994, p. 207]. Ou seja, uma região político-administrativa que
considerava como “Ásia” toda a região que ia da costa oriental da África,
incluindo o golfo Pérsico, até o Japão e Timor, em sua extensão máxima [Boxer,
2002, p. 55].
Pelo menos desde os primórdios da expansão
portuguesa em África e Ásia, houveram vozes contrárias à empresa ultramarina
por razões diversas. As críticas iam desde a futilidade dos gastos financeiros
e humanos com o envio de homens para guerrear em lugares distantes e incertos,
passando pelo medo do despovoamento do reino e o crescente abandono do campo
aos centros urbanos ligado ao comércio, até o temor de uma corrupção moral e
espiritual dos portugueses causado pelo contato com as riquezas e especiarias
asiáticas [Cruz, 1998; Godinho, 1983, 2019].
O receio de uma corrupção moral e decadência
dos costumes, ligado, num primeiro momento, ao contato com a Ásia e suas
riquezas, corresponde ao que pode ser chamado de “geografia da corrupção”. Como
apontado por Adriana Romeiro:
“No imaginário da Época Moderna, determinados
espaços geográficos exerciam uma influência nefasta sobre a integridade dos
indivíduos. E isso se devia aos mais diferentes motivos: por serem pródigos em
riquezas, excitando a cobiça; por serem livres de impedimentos morais ou
legais, favorecendo a luxúria ou a soberba; por serem distantes, enfraquecendo
o temor do castigo…” [Romeiro, 2023, p. 74].
Acreditava-se que o clima, os astros e as
estrelas, variando conforme a localização geográfica, possuíam propriedades
“corruptoras”, influenciando as pessoas, degenerando os costumes, etc [Ibidem,
p. 74]. Todos esses elementos eram frequentemente conjugados na representação
da Ásia, seja nos discursos críticos e condenatórios à empresa asiática, seja
nas reflexões e debates em torno dos rumos da política imperial. A
representação “viciosa” da Ásia nesse período, portanto, é dotada de um viés
moral, outro político, em que ambos eram conjugados nos discursos da época.
Nesse sentido, a representação de uma Ásia
“danosa”, lar de vícios e imoralidades, corruptora dos costumes, remonta à um topos literário que permaneceu e
circulou na Europa ao longo dos séculos desde a Antiguidade Clássica, pela pena
de autores conhecidos, como Políbio, Cícero, Tito Lívio, Flávio Vegécio, entre
outros, desde pelo menos o século 3 AEC [Giacomoni, 2011]. Nessa lógica, o
enfraquecimento dos soldados e a decadência política eram decorrentes do
declínio moral, desenvolvidos a partir dos vícios como a “cobiça” e a
“avareza”, gerados pelo contato com as “delícias”, “riquezas” e “luxos” asiáticos.
Danos no corpo e na alma seriam os resultados dos efeitos perniciosos causados
pela ociosidade, um dos vários resultados do contato com o “Oriente” [Cruz,
1998].
A preocupação moral era central na reflexão
política da Época Moderna, uma vez que a sociedade era entendida enquanto um
corpo político. A partir da metáfora do corpo místico, [Kantorowicz, 1998]
concebia-se o rei enquanto “cabeça”; o “coração” composto pelos conselheiros,
magistrados e juízes; os demais estamentos como diferentes “membros”, cada qual
com sua função única para a manutenção da ordem, o bom funcionamento do
organismo e a busca pelo “bem comum” [Romeiro, 2023; Subtil, 1997]. Era
necessário que a sociedade como um todo e, centralmente, o rei e os
magistrados, cultivassem as virtudes cardeais e teologais, afastando-se dos
vícios e dos pecados, para que a sociedade não fosse “corrompida”, evitando que
o corpo político do reino “adoecesse” e, em último caso, “declinasse” e
“morresse”. O fim dos impérios e a “morte” das repúblicas tinham como uma das
principais explicações, portanto, a corrupção moral e o adoecimento espiritual
da sociedade, tal qual o “adoecimento” e “morte” do corpo humano [Romeiro,
2017; Xavier, 1998].
É no meio dessas preocupações morais e
políticas que floresce a tratadística sobre a influência dos astros e do clima,
o determinismo geográfico, na constituição dos homens e dos povos de diferentes
lugares do planeta. Pelo menos desde a Antiguidade Clássica, já haviam autores
que teorizaram sobre a influência dos astros na saúde e na mente dos homens,
como as teorias médicas dos filósofos Hipócrates, Cláudio Galeno, ou mesmo no
pensamento de Sócrates, Platão, Aristóteles e Cícero, entre outros. No entanto,
esses autores, devido ao desconhecimento da geografia do globo terrestre, não
desenvolveram mais do que algumas conjecturas no assunto, sem aprofundar suas
reflexões. Será em meados do século XVI, com o teórico e jurista francês Jean
Bodin, que a Europa verá um maior refinamento, tendo o autor desenvolvido uma teoria
baseada em “leis gerais” que relaciona o meio ambiente em que determinado povo
vive com suas instituições civis e religiosas [Gerbi, 2010, p. 37].
Com Jean Bodin, portanto, populariza-se a
teoria da diferença dos povos a partir da variedade geográfica, destacando a
sua importância para o governo. Devido ao seu conhecimento acumulado mais vasto
sobre as demais regiões e povos do planeta, Bodin propõe uma repartição da
Terra em três regiões, dividindo o globo em faixas paralelas que formam zonas
climáticas relativamente uniformes, caracterizando os homens de cada região,
ponderando elementos de norte a sul e de leste a oeste.
O aspecto político do determinismo geográfico
é destacado no quinto livro de seu Les
six livres de la République [1576], quando Bodin reforça – após discorrer
sobre os efeitos geográficos e climáticos nos povos, divididos entre as regiões
“meridionais e setentrionais”, “ocidentais” e “orientais” – a importância de se
conhecer a “natureza” de cada homem e república de forma particular, adequando
a melhor forma de governo para cada situação. É fundamental conhecer o
“particular” das Repúblicas devido à “diversidade dos povos”, com o objetivo de
“acomodar a forma da coisa pública à natureza dos lugares e as ordenanças
humanas às leis naturais” [Bodin, 2011, p. 11].
No século XVI, portanto, antigos preconceitos
e representações negativas dos asiáticos passaram a incorporar de forma mais
direta a reflexão política na Europa, somado a um maior desenvolvimento da
teoria do determinismo geográfico e da influência do clima e dos astros nos
diferentes povos do planeta. Em Portugal, o primeiro elemento, as
representações de uma Índia idílica, lar de delícias e corruptora de costumes,
ancorada na literatura latina clássica, usada nas explicações histórica da
decadência e queda do império romano, já estava bem ancorada e difundida no
reino desde os primeiros anos do século. Não apenas diversos autores
proeminentes da literatura portuguesa valeram-se imensamente desse topos como forma de criticar a expansão
portuguesa na Ásia, [Cruz, 1995; 2000] como eles os incorporaram no próprio
debate político sobre os rumos do império.
É o que vemos quando, em meados da década de
1540, um conselheiro do rei envia um parecer sobre qual projeto colonial seguir,
se a expansão territorial no Marrocos ou o senhorio da Índia. Ao advogar pelo
primeiro, argumenta contra a empresa asiática comparando Portugal com o Império
Romano: da mesma forma que o último corrompeu-se e declinou pelo contato com as
“delícias” asiáticas, também os portugueses haveriam de se corromper,
arruinando-se e decaindo junto com o reino. Pergunta:
“quem causou a Ruína dos Impérios do Mundo
senão as delícias de Asia? [...] E qual foi a causa por que se perdeu Dário,
senão a molícia com que os do seu exército estavam ordenados de pérolas, joias
e sedas, quando pelejou com Alexandre. Quem destruiu Roma senão as delícias de
Ásia, com que os Romanos ficaram tão debilitados que foram presa de todos os
Povos da Europa? [...] o esforço do Romano era já de todo acabado pelos vícios”
[Cruz, 1997, p. 176].
Essas representações permanecerão na produção
discursiva portuguesa por muito tempo, seja através da literatura, seja através
do debate político. Será em finais do século XVI, no entanto, que o topos da corrupção dos costumes pelo
contato com a Ásia incorporará de forma mais direta a reflexão política nos
moldes da teoria do determinismo geográfico. Em Portugal, essa “assimilação” se
dará de forma gradual através da reflexão política de autores italianos, como
Gerolamo de Franchi Conestaggio e Giovanni Botero, a partir da década de 1580.
Dono de uma das principais polêmicas políticas
e literárias em Portugal em finais do século XVI e início do XVII, Conestaggio
foi autor de uma obra grandemente criticada e rebatida em toda Península
Ibérica, a Dell'unione del regno di
Portogallo alla Corona di Castiglia, de 1585. [Manuppella, 1957] Nela, o
historiador italiano narra a morte do rei D. Sebastião e o processo de
incorporação da coroa de Portugal à Monarquia Hispânica, dando início à chamada
“União Ibérica” [1580-1640]. Um elemento interessante de sua obra é o fato de
que, para Conestaggio, a explicação principal para a derrota dos portugueses em
Alcácer Quibir no norte da África [1578], resultando no desastre e morte do rei
D. Sebastião, foi justamente o enfraquecimento das forças e do vigor militar
português por terem sido:
“corrompidos com os presentes daqueles povos
ricos com a mercancia, passaram a gozar do que ganharam, não reconhecendo o
doador de tantas graças e benefícios, e convertendo as rendas das comendas
militares em delicados usos, tornaram-se ociosos, fúteis, afastando-se
inclusive daquelas cerimônias que os cristãos fiéis guardam para Deus”
[Conestaggio, 1610, p. 6v, tradução nossa]
Para Conestaggio, o que ele chama de
“corrupção de costumes e delicadeza do Reino” fora introduzido pelos “Presentes
da Ásia”, deixando o corpo político do reino enfermo, não sendo possível obter,
durante a infância de D. Sebastião, um “remédio” conveniente. Afinal, não era
possível recuperar em tão pouco tempo “um povo corrompido com a vida licenciosa
e livre em que se encontrava, ao sumo rigor e moderação de seus maiores”
[Ibidem, p. 6v, tradução nossa].
A obra de Conestaggio foi amplamente lida e
discutida, com diversas réplicas e críticas sendo produzidas em Portugal e na
Espanha nas décadas seguintes [Manuppella, 1957]. Outro autor italiano, de
grande influência na Península Ibérica, foi o jesuíta e teórico político
Giovanni Botero, autor do tratado Della
Ragion di Stato, de 1589. Se Conestaggio reproduziu e popularizou a
representação da corrupção moral e militar dos portugueses a partir do contato
com a Ásia e suas “delícias”, Botero matizou essa noção com a teoria do
determinismo geográfico, reformulado primeiro por Bodin, difundindo ambas
noções através da reflexão política da “razão de Estado”.
Retomando a repartição geográfica do mundo de
Bodin entre regiões meridionais e setentrionais, ocidentais e orientais, as
descrições passam a possuir um caráter mais “crítico”. É o que podemos auferir,
ao considerar que os povos de regiões mais meridionais são “astutos” mas sem
“ousadia”, são “delgados” e “magros”, mais aptos a “fugir” do que “lutar”, são
de costumes “dissimulados” e “maliciosos”, “impetuosos” e “levianos”,
“melancólicos” e sujeitos a Vênus. São mais dedicados à “especulação” e
governam-se pela “religião” e pela “superstição”, sendo esses, e outros
elementos, característicos dos povos asiáticos e da Índia, explícito quando o
autor cita como exemplo desse modo de vida a veneração da “Magia” e de
sacerdotes, como os “Brâmanes” [Botero, 1992, p. 41 – 42].
Refletindo sobre a “razão de Estado” enquanto
um pragmatismo político ancorado na teologia e na filosofia moral, Botero não
apenas define a “natureza” dos povos conforme a posição geográfica, como retoma
as representações críticas e moralistas da Índia. Ao tratar sobre a virtude da
“Temperança”, destaca logo de início que “as delicadezas e as excessivas
comodidades geram efeminação”, processo que, como visto anteriormente, é
frequentemente associado à corrupção causada pelo contato com as riquezas e
“delícias” asiáticas [Ibidem, p. 73].
É na esteira dessa reflexão que Botero retoma
a clássica representação, considerando que o que causou a “ruína” do Império
Romano foram as “delicadezas e as pompas”, depois de “os luxos terem chegado da
Ásia e da Grécia a Roma e terem começado a deleitar o povo”. A “virtude” dos
romanos tinha “desaparecido” e “apodrecido”, enquanto os homens haviam se
“enfraquecido no ócio e nos prazeres”. O que é interessante, afirma ser o maior
exemplo de seus preceitos no tempo presente o reino de Portugal, “arruinado não
pelos Mouros e sim pelos requintes da Índia” [Ibidem, p. 74]. Daí em diante,
com a difusão dos escritos desses e de outros autores, popularizou-se cada vez
mais em Portugal as ideias baseadas nas teorias do determinismo geográfico e da
corrupção asiática, ligadas à reflexão política sobre o Estado e o império
português.
A título de exemplo, o historiador Pedro de
Mariz, leitor de Conestaggio e Botero, em sua obra Dialogo de Varia Historia [1594], considera que o declínio do reino
de Portugal, entendido enquanto o envelhecimento de seu corpo político,
iniciou-se em tempos de D. João III [1521-1557] e culminou no desastre e morte
de D. Sebastião em Alcácer Quibir [1578]. Baseando-se em Conestaggio e
aprofundando sua reflexão, Mariz considera que foi no período joanino em que o
reino passou a usufruir das riquezas e delícias asiáticas, dedicando-se ao ócio
e à paz, afastando-se do fervor bélico e exercício militar de tempos passados,
decorrendo daí a corrupção e o enfraquecimento gradual das forças do reino [Mariz,
1594].
Percebemos também na reflexão de Luís Mendes
Vasconcelos que, em sua obra Do sítio de
Lisboa: dialogo [1608], mesmo argumentando ser a corrupção causada pelas
riquezas um problema moral mas não “intrínseco” à Índia, contornável com uma
política dedicada ao “comércio” ultramarino, ainda reproduz algumas noções
deterministas. Em suas palavras, através do “comércio” é que seria possível
“pacificar” os povos naturais da terra, considerando uma “natural” inclinação
viciosa dos povos orientais. Além da segurança da Índia por espalharem-se
“nossos navios por toda ela”, “o interesse do comércio terá os Índios quietos,
que são naturalmente mais cobiçosos que outras nações” [1990, p. 78 – 79].
A “geografia moral” evidencia-se em Diogo do
Couto que reproduz a noção de que muitos dos problemas morais da Índia estão
atrelados à influência dos astros e à sua localização geográfica. Em diversos
momentos de seu Soldado Prático
[1612] comenta que todo homem zeloso e virtuoso, após cruzar o Cabo da Boa
Esperança em direção à Índia, muda radicalmente seus costumes, porque a “má
natureza da terra e infernal inclinação dos homens” muda a feição dos que lá
chegam [Couto, 2009, p. 84]. Em outro momento, afirma não saber “que tem a
Índia, e debaixo de que planeta está, que assim muda os pensamentos e desejos
bons que é pasmar”, [Ibidem, p. 154] atestando a difusão mais ampla das teorias
clássicas do determinismo geográfico.
Podemos perceber o enraizamento da teoria do
determinismo geográfico, pautado numa diferença “natural” dos povos conforme a
influência dos climas e dos astros em cada região, bem como a sua importância
para o bom governo, na reflexão política de polemistas como João Pinto Ribeiro.
Inserido no contexto da União Ibérica, em que Portugal era um dos vários reinos
que compunham a Monarquia Hispânica, o autor escreve seu Discurso [1632] considerando que, tal como os grandes rios
incorporam vários outros menores e diferentes, as “Monarquias” são compostas
por diversos e diferentes “reinos”. Preocupado com o governo dos reinos,
discorda que eles sejam governados “com iguais procedimentos”; afinal, a
“natureza” diversificada dos vassalos de cada reino exige o conhecimento
pormenorizado de suas respectivas especificidades para que sejam “diversas as
ações do Príncipe em seu governo” [1632, f. 1v].
Dessa passagem se mostra explícito a
influência das teorias políticas de Jean Bodin e Giovanni Botero, especialmente
sobre a influência do clima e da geografia na constituição dos povos,
acarretando na necessidade da adequação dos preceitos políticos à “natureza”
local. A influência desses autores se faz nítida, inclusive, à respeito da
analogia que relaciona o Príncipe a um “Piloto”, que, para pilotar bem, deve
saber “da carreira, dos climas, dos baixos”, assim como o Governante deve
“conhecer povos, e condições de vassalos”, devendo-se “acomodar, & variar o
tratamento”. [Ibidem, f. 1v]
Como pudemos perceber, em meados do século
XVII as teorias do determinismo climático e geográfico já estavam bem
enraizadas na reflexão política portuguesa, sem necessariamente acompanhar as
representações moralistas e “viciosas” da Índia e dos povos asiáticos. Isso
pode, possivelmente, ser explicado por uma relativa “laicização” do debate
político, em que os preceitos pragmáticos da “razão de Estado” ganham maior
espaço, sem, contudo, abrir mão de sua vinculação à teologia e filosofia moral.
[Cardoso, 2024] No entanto, a “geografia moral” e o determinismo geográfico,
qualificando os diferentes povos e suas respectivas instituições como
superiores e inferiores, considerando os efeitos nocivos e perniciosos para a
moral e a natureza humana de uma dada região, permanecerão por muito tempo na
mentalidade europeia, passando a considerar os “males” não apenas da parte
“Oriental” do globo, mas também das Américas e seus efeitos “corruptores” nos
povos americanos [Gerbi, 2010; Romeiro, 2024].
Referências
Me. Arthur Feller Rigaud Cardoso é doutorando
em História pela UFPE e professor efetivo de História na rede pública estadual
de Pernambuco, desenvolvendo pesquisa sobre os discursos da presença portuguesa
na Ásia e no Marrocos entre os séculos XVI e XVII.
BODIN, Jean. Os seis livros da República:
livro quinto. São Paulo: Ícone, 2011.
BOTERO, Giovanni. Da razão de Estado. Coimbra:
INIC, 1992.
BOXER, Charles R. O império marítimo português
(1415-1825). São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
CARDOSO, Arthur Feller Rigaud. O doce do
açúcar e o perfume das especiarias: discursos políticos sobre os Estados do
Brasil e da Índia na Monarquia Hispânica. Dissertação (Mestrado em História) -
Programa de Pós-Graduação em História (PPGHistoria), Centro de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, 2024.
CONESTAGGIO,
Girolamo Franchi di. Historia de la union del Reyno de Portugal a la Corona de
Castilla. Barcelona: por Sebastian de Cormellas, 1610.
COUTO, Diogo do. O Soldado Prático. Coimbra:
Angelus Novus, 2009.
CRUZ, Maria Leonor García da. As Controvérsias
ao Tempo de D. João III sobre a Política Portuguesa no Norte de África. Compilação
de documentos. In: Mare Liberum, n. 14, p. 117 – 198, 1997.
CRUZ, Maria Leonor García da. Luzes e sombras
na expansão portuguesa – um equacionar de motivações, perdas e ganhos, em
fontes literárias do século XVI. Mare Liberum. n. 10, dezembro, p. 157 – 171,
1995.
CRUZ, Maria Leonor García da. Os «fumos da
Índia»: uma leitura crítica da Expansão Portuguesa. Lisboa: Edições Cosmos,
1998.
CRUZ, Maria Leonor García da. Reavaliações até
ao século XVIII do discurso crítico sobre a expansão portuguesa ultramarina e
as directrizes da governação. Clio – Nova Série. vol. 5, p. 167 – 201, 2000.
GERBI, Antonello. The Dispute of the New
World: The History of a Polemic, 1750-1900. Pittsburgh: University of
Pittsburgh Press, 2010.
GIACOMONI, Marcello Paniz. Ecos de uma
tradição: a ideia de decadência na obra Epitoma Rei Militaris,
de Flavius Vegetius Renatus. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2011.
GODINHO, Vitorino Magalhães. Estrutura da
Antiga Sociedade Portuguesa. Lisboa: Edições 70, 2019.
GODINHO, Vitorino Magalhães. Os Descobrimentos
e a Economia Mundial. Volume IV. 2. ed. Lisboa: Editorial Presença, 1983.
MANUPPELLA, Giacinto. Jeronimo de Franchi
Conestaggio, Gentilhuomo Genovese «a Dios spiacente ed a’nemici sui» In:
Miscelânea de Estudos em Honra do Prof. Hernâni Cidade, Revista da Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, vol. 1, 1957.
MARIZ, Pedro de. Dialogos de Varia Historia.
Coimbra: Na Officina de Antonio de Mariz, 1594.
MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo:
Martins Fontes, 1996.
RIBEIRO, João Pinto. Discurso sobre os
fidalgos, e soldados portugueses não militarem em conquistas alheas desta
Coroa. Lisboa: por Pedro Craesbeecks, 1632.
ROMEIRO, Adriana. Corrupção e poder no Brasil.
Uma história, séculos XVI a XVIII. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
ROMEIRO, Adriana. Ladrões da república:
corrupção, moral e cobiça no Brasil, séculos XVI a XVIII. Belo Horizonte: Fino
Traço, 2023.
THOMAZ, Luís Filipe. De Ceuta a Timor. Lisboa:
DIFEL, 1994.
VASCONCELOS, Luís Mendes de. Do sítio de
Lisboa: diálogos. Lisboa: Livros Horizonte, 1990
XAVIER, Ângela Barreto. “El Rei aonde póde
& não aonde quer”. Razões da Política no Portugal Seiscentista. Lisboa:
Edições Colibri – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de
Lisboa, 1998.
Parabéns pelo excelente trabalho, Arthur. Acredito que seu esforço em associar diferentes discursos em prol de um projeto semelhante é muito útil para identificarmos os padrões na retórica e avançarmos no reconhecimento de outros escritos semelhantes. Você acredita que esses escritos contribuem para sustentar projetos coloniais a nível intelectual? Ou, talvez: de que forma esses discursos impactaram os projetos coloniais? É possível pensar nessa direção? Eles funcionaram como um instrumento de convencimento das classes dominantes, como pontuou James Blaut (1993), por exemplo?
ResponderExcluirKerolayne Correia de Oliveira
Olá, Kerolayne, obrigado pelos comentários e pela pergunta. Acredito que, definitivamente, esses discursos estão na base do que culminará no eugenismo, racismo científico e darwinismo social – pilares do imperialismo. É possível considerar, creio eu, que esses autores apresentam justamente uma certa "transição" entre os preconceitos de cunho moral para o racismo travestido de "ciência", uma vez que a influência dos astros e do clima, para além de corromper moralmente os habitantes de diferentes regiões do planeta, passam a explicar a suposta "inferioridade" e "inaptidão" "evolutiva" deles. Nesse sentido, concordo inteiramente com James Blaut, adicionando o fato de que esse arcabouço teórico e pseudocientífico, antes de ser aplicado aos povos das américas, valeu-se dos contatos seculares dos Europeus com os povos "orientais", sendo o "estudo" dos asiáticos e seus costumes o primeiro laboratório em que foi possível surgir essas teorias, antes de serem transplantadas para as Américas.
ExcluirAtenciosamente, Arthur Feller Rigaud Cardoso.
Olá, Arthur. Muito obrigada pela excelente reflexão. Concordo muito com você, principalmente sobre o laboratório de práticas desse fenômeno em longa construção histórica. Penso muito no livro 'Racismos', do Francisco Bethencourt, que aponta para esse tipo de movimento, sobretudo a partir das Cruzadas. Acredito que a História Moderna pode ser muito mais politizada nessa direção, situando inclusive a ascensão do capitalismo no bojo desses usos dos discursos. Mais uma vez, parabéns pelo excelente trabalho! Abraços,
ExcluirKerolayne Correia de Oliveira
Olá! Gostaria de parabenizá-lo pelo excelente texto, que aborda de forma tão rica e detalhada as implicações históricas e políticas do determinismo geográfico, conectando diferentes autores e perspectivas da época moderna. Sua análise sobre as influências morais e culturais no contexto da expansão ultramarina portuguesa é extremamente instigante e bem fundamentada.
ResponderExcluirDiante da profundidade das informações apresentadas, gostaria de saber: como o pensamento de Montesquieu e sua teoria da separação dos Poderes dialoga com essas representações moralistas e geográficas dos povos não europeus, especialmente no que diz respeito à justificativa de dominação ou às críticas internas às políticas imperiais? Agradeço desde já pela reflexão proporcionada!
Olá, Fabiana. Fico feliz que tenhas apreciado o texto! A obra clássica de Montesquieu, O espírito das leis, é um exemplo fantástico da persistência e reapropriação desses discursos orientalistas e racistas ao longo dos séculos na tradição intelectual europeia. Apesar de escrever em 1748, quase dois séculos depois de Jean Bodin, Montesquieu permanece considerando a influência dos astros, clima e geografia para considerar a "natureza" e as "instituições" dos demais povos do mundo. Tão comum na produção intelectual e discursiva europeia da época, a afirmação do "europeu" se dá na definição do "não-europeu"; do que é "superior" a partir do que seria "inferior". A partir disso, em toda a obra de Montesquieu o autor vale-se do recurso retórico da descrição e comparação das instituições europeias e asiáticas/africanas/americanas, reafirmando sempre o quão superior seriam as instituições políticas e jurídicas europeias (incluindo a separação dos três Poderes) em comparação aos demais, principalmente devido à geografia e clima da Europa, que "permitiria" um suposto melhor "desenvolvimento" natural, político, intelectual, etc. É como quando afirma que, na Índia, são "preguiçosos" por causa do clima, enfim, que o clima e geografia é o que fazem a Ásia ser o lar de "espíritos servis", favorece os "vícios" e torna-os preguiçosos, assim como afirmara Botero, 159 anos antes (podemos voltar ainda mais, até Maquiavel, Aristóteles e aos autores gregos, ao falar sobre como esses povos possuem uma "servidão natural" e governos "despóticos" e "tiranos").
ExcluirEspero ter respondido! Qualquer dúvida, estou à disposição.
Atenciosamente, Arthur Feller Rigaud Cardoso.