O QUE É O COMEÇO?
Num
texto intitulado Huainanzi (“Mestres de Huainan”), o qual se trata, na verdade,
de um compilado de tratados filosóficos sob a orientação de Liu An (179-122
A.C), há uma investigação acerca do início da existência (HUAINANZI, 2023). O
peculiar desse escrito, conforme será exposto mais a frente, é o seu regresso
rumo ao que seria anterior até mesmo do dito “começo”. Contudo, o presente
texto objetiva problematizar a noção de começo ou início a partir de um diálogo
entre aspectos dessa obra oriunda da China antiga com Hegel e Merleau Ponty.
Em
segundo lugar, deve-se aqui dizer que os textos escolhidos desses autores
ocidentais são, respectivamente: Ciência da lógica e fenomenologia da percepção.
O lugar comum entre esses dois pensadores de que se irá partir é o modo como
entendem o “início” da ciência.
“Houve
um começo. Foi o começo desse começo. Foi antes do início deste pré-início do
início. Havia ser, havia não-ser. Foi o começo da existência e não existência.
Foi antes do início desse pré-início do ser e não ser. (HUAINANZI, pág.757,
2023)”. A passagem acima é apenas um pequeno trecho inicial do Huainanzi.
Entretanto, algumas coisas merecem aqui atenção: fala-se de um começo que é o
começo do começo. Ora, o que diabos seria esse segundo começo? Trata-se do
mundo existente tal como conhecemos hoje, das coisas com as quais os seres
humanos se deparam na vida cotidiana. É um momento anterior até mesmo ao ser e
não-ser enquanto díade relacional.
Certamente
em Huainanzi não há um relato do espaço, mundo e tempo “vividos” como quer a
fenomenologia. Vivência, conforme se fala na tradição fenomenológica, é a
unidade sintética entre ato e correlato, não sendo também instituída pelo
juízo. Ou seja, remete a uma experiência por meio da qual algo apareceu a “mim”
enquanto algo. Pense-se no medo. É na verdade o temor à experiência do temido,
através do qual adentram estruturas próprias da experiência do temor. É um tipo
de experiência do mundo (PONTY, 1999). A descrição ofertada por esse antigo
tratado chinês é já pressupondo a não-identidade entre sujeito e objeto na
medida em que se fala de algo existente que é anterior até mesmo ao que se
entende por sujeito e objeto. O núcleo é a explicitação do início da
existência.
Mas...por
que ênfase no sujeito e objeto? Porque para a fenomenologia e, em particular a
de Merleau Ponty, o ser humano não é resultado de múltiplas causalidades que
determinam o corpo e o psiquismo, e sim o que se sabe é devido á própria
experiência que se tem do mundo. Toda a ciência, seguindo aqui esse paradigma,
é construída a partir da relação dos indivíduos com o mundo, do mundo vivido. A
visão científica comum, a qual é rechaçada por essa abordagem fenomenológica,
subentende a visão da consciência, pela qual o mundo se dispõe em torno do
sujeito e começa a existir antes dele (PONTY, 1999).
Do
ponto de vista fenomenológico, falar desse começo conforme preconiza,
Huainanzi, é já um problema na medida em que escapa ao mundo vivido originalmente
na consciência e, consequentemente, às coisas mesmas. O ser humano está no
mundo e é no mundo que ele se reconhece. A descrição do início da existência em
Huainanzi é uma forma de atitude natural por se voltar imediatamente aos
objetos como se fossem independentes da consciência. Na verdade, para Ponty
(1999), o mundo vai corresponder àquilo que é percebido (entre humanos) e
vivido.
O
leitor poderia agora estar se perguntando se tudo isso que foi exposto até
então tinha como objetivo criticar o intento de Huainanzi. Na verdade, não é
aqui o caso. A exposição dos argumentos presentes em Ponty servem para
demonstrar a contradição entre essas duas formas de pensamento, visto que a
própria noção de ciência ou filosofia pode ser tomada como distinta considerando
o que está em jogo quando se fala do início da existência.
Por
conseguinte, pode-se agora prosseguir com a argumentação presente em Huainanzi
(pág.757, 2023): “O chamado começo. A corrente geral de excitação ainda não se
rompeu. Como a promessa de um botão, como brotos crescendo após o corte. Ainda
não há formas e limites. Apenas o farfalhar do nada absoluto. Tudo está cheio
de desejo de vida, mas os tipos de coisas ainda não foram determinados.”
Este
segundo parágrafo consegue explicitar melhor a ideia do que é colocado no
primeiro a respeito do começo. Ora, esse tal começo do começo, da existência e
não existência, seria o nada absoluto. É o que se coloca nesse segundo momento
ao se afirmar: “Apenas o farfalhar do nada absoluto”. É um momento em que as
coisas ainda estão ausentes de determinações. O que isso lembra? O próprio
prefácio da ciência da lógica de Hegel. O filósofo alemão visa responder à
pergunta “Com o que precisa ser feito o início da ciência?”.
Em
Hegel, parte-se de algo que é tanto imediato quanto mediado, carente de
conteúdo, de definições, e determinações. Trata-se do ser puro (HEGEL, 2016).
Note-se aqui uma semelhança com o argumento do escrito chinês, com a diferença
que para a tradição chinesa o vazio ou nada recebe um papel de maior destaque.
Especificamente em Huainanzi, o começo do começo seria o nada absoluto. Tanto o
ser puro hegeliano quanto o nada absoluto são ausentes de determinações e vão
se relacionar com o seu diferente. No caso de Hegel, o ser puro vai entrar em
relação com o nada e em Huainanzi o nada ou vazio vai unir-se ao qi (energia
primordial) ou matéria. Esse “qi” pode ser interpretado como matéria por
possuir força material, algo que será melhor exposto mais adiante.
Esse
puro ser hegeliano vai equivaler ao nada indeterminado e faz de sua própria
indeterminação uma qualidade (HEGEL, 2016). Mas a determinação é algo que
depende da relação para ocorrer e isso está presente também no texto chinês
descrito. Para Hegel, esse puro ser é apenas um ponto de partida imediato para
a mediação do movimento que ele mesmo aciona (HEGEL, 2016). É a certeza
imediata que constitui ao mesmo tempo a primeira verdade na série do saber. Não
há aqui separação entre sujeito e objeto tal como na fenomenologia, mas ainda
assim não se recusa a uma objetividade. Porque a objetividade é esse movimento
imanente que se inicia com o ser puro que ao mesmo tempo é o movimento
especulativo (HEGEL, 2016).
A
fenomenologia de Ponty, seguindo uma tradição que tem suas origens com Husserl,
objetiva chegar às coisas mesmas através de uma “redução fenomenológica” cuja
pedra de toque é o “ver” as coisas tal como são; purificadas de todo
preconceito advindo da atitude natural ou daquilo que preconiza a tradição
(PONTY, 1999). Note-se aqui uma distinção para com o intento do antigo escrito
chinês e com a filosofia hegeliana, visto que visa um retorno a uma “essência”
do fenômeno mediante um ato de purificação através da consciência para chegar
àquilo que se dá na existência. Se de um lado temos duas perspectivas nas quais
o movimento se inicia do abstrato e do carente de determinações rumo a uma
maior concretude, por outro há uma visão que quer justamente o retorno à
consciência pura, colocando a realidade entre parênteses.
A
fenomenologia é o estudo dos fenômenos, do que aparece à consciência, daquilo
que é dado. A pureza da qual se fala antes obtida via redução fenomenológica é
frente aos aspectos factuais, mundanos, da tradição (HUSSERL, 1996). Não se
trata de uma pureza marcada pela completa ausência de conteúdo como é o caso do
puro ser hegeliano ou o nada absoluto em Huainanzi, contudo, ainda assim
representa um afastamento do movimento imanente do objeto na medida em que
suspende determinações tidas como mundanas. Em Hegel, ao menos, o processo se inicia
com o absoluto enquanto em si, indeterminado, mas que ao se negar em suas
determinações acaba por se efetivar na ideia absoluta (HEGEL, 2016).
Mais
adiante no escrito Huainanzi (pág.757, 2023) é dito que “Foi o começo do
começo. O qi celestial começou a descer, o qi terrestre começou a subir. Yin e
yang unidos. Entrelaçados, nadados, girando, no espaço sideral. Abraçado pela
bênção, esparramando a harmonia interior. Torcendo-se e entrelaçando-se,
esforçando-se para entrar em contato com as coisas, mas nunca percebendo o
prenúncio.”
Nesta
passagem é possível mais semelhanças com o raciocínio hegeliano na medida em
que se coloca a relação de oposição entre Yin e Yang. Note-se que essas duas
figuras tão importantes para o pensamento chinês clássico são consideradas como
entrelaçadas e numa relação de mútua influência. Antes de explicitar o
argumento hegeliano que é semelhante á perspectiva chinesa, é preciso ver em
seguida o que Huainanzi (pág.757-758, 2023) tem a dizer.
“Foi
antes do começo do começo. O céu escondeu seu qi harmônico e ainda não desceu.
A terra manteve seu qi e ainda não ressuscitou. Vazio, nada, silêncio. Céus
silenciosos; inexistência, como um sonho. O qi flutuava, constituindo uma
grande unidade com profunda escuridão.
Havia
vida. A escuridão das coisas na multidão produziu rizomas e raízes, galhos e
folhas, cebolinhas e cogumelos subterrâneos foram formados. A grama exuberante
brilhava intensamente, os insetos se agitavam, os vermes se agitavam, tudo se
movia e respirava. E já era possível segurar na mão e medir.
(...)
Não
havia inexistência. Você olha, mas não vê sua forma; você ouve, mas não ouve a
voz; toca, mas não pode agarrá-lo; olha, mas não vê seu limite. Ele flui
livremente e transborda, como em um caldeirão. Sem limites, sem fim. Não pode
ser medido ou calculado. Tudo está imerso na Luz.”
Esses
trechos já são suficientes para o cumprimento do objetivo do presente trabalho.
Primeiramente é necessário entender que o absoluto hegeliano do qual se falou
antes é o próprio pensamento pensando o pensamento. A exposição de Hegel (2016)
não remete a alguém que relata o movimento do objeto que existe
independentemente da consciência, mas se trata do movimento da própria
consciência que é ao mesmo tempo o da própria realidade ou ser.
Desde
o começo, a lógica, seguindo aqui a filosofia de Hegel (2016), já traz em si a
ideia absoluta. A questão é que inicialmente o ser era ausente de
determinações, conteúdos e com seu desenrolar haveria a culminância na ideia
absoluta ou conceito. O ser contém em si o conceito. Do ser que antes era puro,
indeterminado, imediato agora se revelaria determinado, mediado e rico de
conteúdo. Esse movimentar-se demonstra que desde o começo ser já tinha consigo
seu ápice como conceito. Neste sentido, o que resulta é um movimento circular
sem início e fim, no qual o fim é começo.
Acerca
das passagens colocadas acima referentes ao tratado Huainanzi, destaca-se a
presença de duas figuras: escuridão (ou vazio) e ser/existência (luz). O que é
apresentado é a passagem de um “bolo” primordial onde havia o vazio junto de qi
que culmina na vida. Em Hegel (2016) é desenvolvido um raciocínio bem similar
quando, na “Ciência da Lógica”, é demonstrada o surgimento do devir através da
dialética do ser e nada. O puro ser e o puro nada são inseparáveis, cada um
desaparecendo em seu oposto. O puro ser ao ser ausente de determinações e
conteúdo carrega consigo o próprio nada. Da mesma forma o nada transita ao ser.
Esse raciocínio envolvendo ser e nada pode ser aplicado ao Yin e Yang, visto
que um se acolhe no outro e vice versa. Da síntese de ambos surge o devir ou
movimento que é marcado por: constante nascer e morrer que acarreta no contínuo
desaparecer e reaparecer do ser no nada e do nada no ser.
Todo
esse movimento, dentro da perspectiva fenomenológica, não seria possível na
medida em que o intuito da fenomenologia é descrever o mundo a partir da
“epoché” ou redução. Em Ponty (1999), ela se daria por meio do corpo. É através
da corporeidade que se tem o acesso ao mundo cuja base é a percepção (aqui tida
como fenômeno corporal). Corpo se revela como veículo do ser no mundo, é
intencionalidade motora. Mundo aqui não é algo dado ou consolidade em
definições.
O
leitor desse texto pode estar se interrogando: “Se Hegel e Ponty partem da inseparabilidade
entre sujeito e objeto, como podem discordar a respeito de uma objetividade?”.
O ponto aqui está na diferença metodológica de ambos. Enquanto para o
fenomenólogo o principal é o acesso ao mundo por meio do corpo abstraindo de
toda determinação prévia, em Hegel o ponto é a exposição do movimento imanente
real que é ao mesmo tempo o movimento da consciência. No pensamento hegeliano
esse processo se daria do mais simples, carente de determinações, para o mais
complexo e já determinado. A fenomenologia dá um passo para trás, neste
sentido. Interroga-se acerca das condições de possibilidade de que algo apareça
como algo.
CONCLUSÃO
Importante
notar, ao contrário da maior parte da tradição ocidental, que os chineses não
estão preocupados em buscar uma causa inicial ou um causa primeira para a
existência. Ainda assim é notável a semelhança para com o pensamento hegeliano
e o distanciamento, devido ao realismo dos chineses, da tradição
fenomenológica. Quando se fala em “Começo do começo”, entende-se que esse
primeiro começo é ao mesmo tempo o próprio fim que gera um novo começo. É uma
ciclicidade que é ao mesmo tempo eterna e mutável. Portanto, cabe agora
perguntar: “O que é o começo?”.
Referências:
Bueno,
André. Textos da China Antiga. Huainanzi. Rio de Janeiro: Projeto
Orientalismo/UERJ, 2023.
HEGEL,
G.W.F. Ciência da Lógica: 1. Doutrina do ser. Traduzido por Cristian G. Iber,
Marloren L. Miranda e Frederico Orsini. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança
Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2016.
HUSSERL,
Edmund. A crise da humanidade europeia e a filosofia. Tradução de Urbano Zilles
Porto Alegre: Edipucrs, 1996.
PONTY,
MERLEAU. Fenomenologia da percepção. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura.
São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Primeiramente gostaria de lhe parabenizar pelo excelentíssimo tema abordado. Gostaria de saber: Dentro da perspectiva chinesa o começo do começo seria uma existência sem consciência, certo? O fim desse começo aconteceria com a junção de Yin e Yang?
ResponderExcluirSobre a primeira pergunta, sim. É isso mesmo. E o fim desse começo marcaria o início dessa integração entre Yin e Yang. Antes dessa integração havia apenas uma relação entre vazio e matéria (QI)
ExcluirEntendi! Muito obrigada!!
ExcluirEu quem agradeço. Muito obrigado pelo elogio e pergunta!!
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirParabéns pelo texto.
ResponderExcluirMuito interessante a abordagem da filosofia atrelada ao oriente.
Nunca tinha lido nada nessa dimensão.
Cleberson Vieira de Araújo
Muito obrigado pelo elogio, hahahahah! Fico feliz que tenha gostado.
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