André Bueno

 

TRÊS BRASILEIROS NA MACAU COLONIAL

 

Ao longo dos séculos XVIII e XIX, o império português foi uma entidade dinâmica, por onde transitavam personagens das mais diversas localidades. Era um mundo de movimento, como Russell-Wood (1998) demonstrou, em que pessoas, mercadorias e ideias circulavam, modificando o perfil da natureza e das culturas. Nesse sentido, o Brasil era parte fundamental de uma ampla rede de trocas, conectando-se a África e Ásia pelas rotas que atravessavam o Atlântico. Era bastante comum que indivíduos, desejosos de fazer carreira no império ou de simplesmente prosperar em alguma aventura, se engajassem nas viagens que levavam para terras mais distantes. As colônias portuguesas na Ásia eram as que mais careciam de oficiais; e para lá, foram muitos brasileiros – alguns, inclusive, alcançaram destaque em suas missões (Moura, 2014). Nesse nosso breve Dossiê, queremos destacar três brasileiros que não apenas foram para o Oriente, mas que chegaram a posições de relevo em Macau, deixando contribuições indeléveis para a história dessa cidade [manteremos links vivos para as obras].

O primeiro deles foi Antônio de Albuquerque Coelho (1682 - 1745), oficial nascido no Maranhão, cujas desventuras e histórias foram narradas no livro Jornada, que António de Albuquerque Coelho, Governador e Capitão General da Cidade do Nome de Deos de Macao na China, fez de Goa até chegar à dita cidade no anno de 1718, escrito por seu auxiliar, o capitão João Guerreiro. Nascido do casamento de um Capitão-mor português e de uma nativa da pequena vila de Santa Cruz de Macuttá, Antônio ganharia mundo, e conquistaria posições de destaque na Ásia.

Nosso segundo personagem é Lucas José de Alvarenga (1768-1831), natural de Sabará, e um dos mais destacados administradores da cidade de Macau, que combateu os piratas chineses na defesa da cidade, deixou escritas suas memórias sobre o evento, comprou brigas inúmeras com a sociedade local e terminaria seus dias escrevendo e traduzindo poemas no Rio de Janeiro do Brasil independente.

Nosso terceiro personagem é José Guimarães de Aquino Freitas (1780-1835), proveniente de Minas Gerais, e autor da primeira história da cidade de Macau. Antes dele, os cronistas costumavam comentar sobre o enclave português na Ásia, mas sempre dentro de obras maiores. José Freitas foi um ativo participante na administração dessa cidade, integrando a restrita elite macaense, e auxiliando no desenvolvimento do projeto de levar especiarias asiáticas para sua terra natal.  

De fato, muitos livros sobre a China foram produzidos em português desde o século XVI, tanto por viajantes como por funcionários e missionário jesuítas. Até então, a China permanecia uma nação pouco acessível, que fascinava os pensadores europeus e americanos. A metrópole portuguesa concebeu diversos projetos para integrar mais eficientemente o império, tecendo relações profundas entre Brasil, Macau e China. Quem quiser conhecer um pouco sobre o mundo chinês entre os séculos XVI e XIX, pode encontrar excelentes obras no acervo digital da Biblioteca Nacional, mostrando como o mundo lusófono produziu um substancial conhecimento sobre a Ásia. Nesse nosso breve texto, vamos investigar uma parte peculiar dessas relações Oriente-Ocidente, que mostram como os brasileiros já participavam dessa ampla rede de integração mundial.

 

Antônio de Albuquerque Coelho (1682-1745)

As peripécias de Antônio Coelho realmente mereceram uma narrativa biográfica. João Guerreiro, seu auxiliar direto, acompanhou-o em grande parte de suas desventuras na Ásia, e nutria uma simpatia sincera pelo seu chefe, motivo pelo qual escreveu Jornada... Não era para menos. Antônio começara a vida de maneira nada fácil: seu pai, Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, servira como capitão nas forças portuguesas, ocupando cargos importantes na administração do Brasil colônia. Ele teve um breve romance com Ângela de Bairros, mulata maranhense, do qual nasceu o pequeno Antônio. Filho bastardo, igualmente mulato, sofreria os preconceitos acerbos de uma sociedade racista e discriminatória.

Mesmo assim, lutou para conquistar uma posição social; aproveitando a possibilidade de estudar em Portugal (conseguida, talvez, por influência do pai), destacou-se nos estudos e na carreira militar, alcançando o posto de cavaleiro e capitão, superando as dificuldades sociais e culturais da época. Decidiu embarcar para Macau em 1708, tentando a sorte no Oriente. Após uma viagem trágica, que por pouco não resulta em naufrágio, chega à Macau em agosto do mesmo ano.

Tão logo arriba na cidade, Antônio divide a sociedade local; ele se enamora da macaense Maria de Moura, uma criança ainda, cujo dote de órfão era grande. Uns apoiam o jovem oficial, outros o repudiam. Ele não estava sozinho na disputa, e rapidamente conquistou inimigos. Da peleja quase mortal, feita de armadilhas e traições, saiu sem um braço – mas casado com Maria.

Doravante, atuaria algum tempo no Senado, chegou a Ouvidor; contudo, os conflitos reincidentes com membros da sociedade continuaram a pôr sua vida em risco. As disputas por poder e privilégios na pequena colônia portuguesa eram constantes. Em 1715, muda-se para Goa, onde continuaria a atuar nas questões locais do império.

Até que, em 1717, ele recebeu a surpreendente incumbência de retornar a Macau para governar a cidade. Fosse por sua experiência com a região, fosse por ter conseguido construir uma rede de amizades, o cargo o recolocava no epicentro das disputas da sociedade local. As querelas pessoais eram tantas que nem mesmo um navio ele conseguiu para ir até Macau: foi necessário atravessar a Índia por terra até chegar na costa leste, onde finalmente conseguiu embarcar depois de comprar seu próprio navio. A viagem foi terrível, e ele quase falece. Mesmo assim, consegue, com ajuda chinesa, chegar à cidade e assumir o cargo.

Conjugando a recomendação de alguns amigos com tato, estratégia e a experiência adquirida in loco, Antônio evitou vinganças pessoais e altercações, conseguindo realizar um governo admiravelmente harmônico e bem sucedido. Superando os preconceitos contra sua pessoa, o brasileiro passou dois anos no comando de Macau, marcando sua presença na história do império português. Sua administração bem sucedida o levou a ser indicado para o governo de Timor, que assumiu em 1722, conseguindo restaurar a ordem local e por lá permanecendo até 1725.

As desventuras da Jornada... param por aí; depois disso, a vida de Antônio é reconstituída a partir de fragmentos. Depois disso, Antônio Coelho ainda exerceu o governo da ilha de Pate (situada na África oriental) e atuaria também em Moçambique, mas sem tanto sucesso. As disputas locais e as precariedades dos recursos portugueses gradualmente solaparam as possibilidades de sucesso nessas empreitadas.

Retornando a Goa, ele cessou suas viagens, ocupando posições de importância nesse estado até sua morte, em 1744. A vida desse personagem revela as dificuldades de construir uma carreira bem sucedida na sociedade colonial, onde a mobilidade social era marcada por restrições e preconceitos. Antônio Coelho foi prova viva de uma tremenda capacidade de superação, tanto por conta dos percalços enfrentados, quanto por sua habilidade em governar e trazer estabilidade as possessões portuguesas. Suas diversas experiências transculturais acabaram lhe proporcionando uma visão sutil e cuidadosa, e lhe granjearam uma notável reputação de liderança. Foi nas mãos desse formidável maranhense que Macau (assim como Goa e Timor) conheceram anos de ordem e segurança, administradas por alguém que vivera – e sabia reconhecer – a importância fundamental das diferenças étnicas e culturais na sociedade.

 

Lucas José de Alvarenga (1768-1831)

Quase um século depois da passagem de Antônio Coelho, a situação de Macau se encontrava periclitante. A coroa portuguesa pensara várias formas de integrar, de maneira mais efetiva, suas colônias asiáticas; mas esses planos foram malogrados pelas mais diversas circunstâncias. No início do século XIX, duas ameaças graves rondavam essa cidade em especial: a primeira, a invasão inglesa da cidade de Macau, a pretexto de ‘protegê-la’ de ataques das forças napoleônicas; a segunda, o recrudescimento das razias piratas nas costas chinesas, que prejudicavam indefinidamente o comércio marítimo macaense, fonte principal de renda da colônia.

Assim como já tinham feito os holandeses, os ingleses também cobiçavam as possessões portuguesas no Oriente. Se eram aliados na Europa, fora dela, a relação entre lusos e britânicos costumava ser de concorrência, muitas vezes tensa. As guerras contra Napoleão forneceram um pretexto para ocupar as colônias orientais de Portugal. Em 1802, partiu uma frota britânica para ocupar a cidade de Macau, que não chegou a concretizar seus propósitos; avisados do Tratado de Amiens com a França, retornam sem levar a cabo sua missão. Mesmo assim, a comunidade macaense ficou de sobreaviso. A retomada dos conflitos na Europa incitou novamente o projeto inglês, e a frota do almirante Drury chegou para sitiar Macau em 1808.

A essa altura, uma negociação grave e delicada se estabeleceu com os invasores. Os britânicos forçaram sua presença, desembarcaram e ocuparam a cidade, elevando o pico de tensão ao máximo. Embora os macaenses não dispusessem de recursos para se opor diretamente a força invasora, eles invocaram suas relações com o governo chinês para forçar uma saída. Instigando o império manchu sobre a iminência de uma agressão inglesa generalizada na região, eles conseguiram que o imperador Jiaqing (1796-1820) despachasse uma força militar de oitenta mil soldados para ameaçar os britânicos. Intimidado com essa presença, e receoso por abrir um frente de combate absolutamente desfavorável, Drury recuou, ordenou a desocupação da cidade, e acabou sendo forçado a retornar para a Inglaterra sem alcançar os objetivos da coroa.

Nesse momento, duas figuras foram cruciais para a resolução dessa questão: o ouvidor Miguel de Arriaga Brum da Silveira (1776-1824) e o brasileiro Lucas José de Alvarenga. Mas antes de contarmos sobre as ações de Lucas José em Macau, é indispensável falar da figura do Ouvidor. Miguel Arriaga era, definitivamente, o político mais influente na Macau dessa época. Era um defensor incansável da cidade, que abraçara como sua ‘pequena nação’; mas elaborava planos para renovar o domínio português na Ásia (Teixeira, 1996). Arriaga era um dos defensores da ideia de que se deveria plantar, no Brasil, as especiarias e o chá que os europeus vinham buscar na China e na Índia. Bom conhecedor das elites regionais chinesas, comunicava-se habilmente com elas no plano político, assegurando a posição de Macau perante a dinastia Qing. Tudo isso contribuíra para construir uma imagem poderosa e carismática em torno do Ouvidor, cuja palavra era respeitada no senado e em todo restante da cidade.

E foi logo com essa figura importantíssima que Lucas José de Alvarenga foi trombar ao chegar em Macau, criando uma inimizade tão séria que influenciaria até mesmo a escrita da história local. Lucas fora nomeado governador da cidade em 1807, e sua chegada já foi profundamente prejudicada, pois ele aproveitara a passagem da frota de Drury pela Índia para pegar uma carona... Sem ter uma noção clara dos propósitos ingleses, ele foi envolvido no imbróglio da invasão, e ao descer do navio, sua posição parecia incompreensível aos olhos dos habitantes locais. Com a imagem arranhada desde a primeira impressão, a passagem do novo governador seria rápida – mas muito intensa – tornando-o uma das figuras mais controversas e interessantes na história de Macau.       

Lucas José Alvarenga nascera na pequena nobreza da cidade de Sabará, no interior de Minas Gerais. Como muitos jovens de sua época que tinham alguma posse e muitos projetos, foi para Coimbra, formou-se em Direito, e voltou ao Brasil. Em Minas, associou-se ao governo regional de Bernardo José de Lorena, futuramente o quinto Conde de Sarzedas. Ele nem poderia imaginar que, mais a frente, o Conde seria nomeado vice-rei da Índia portuguesa, e o levaria junto para o Oriente. Ao chegarem em Goa, o novo vice-rei decidiu escolher alguém de confiança para o governo de Macau (nessa época, a nomeação desse cargo era incumbência sua), e designou Lucas para essa missão. A indicação, surpreendente, causou grande mal estar, pois ele ainda não havia ocupado qualquer cargo importante em sua carreira.

Mesmo assim, Lucas José não recuou da empreitada, e tentou inteirar-se de tudo que passava em Macau. Estudou livros, documentos e relatórios, preparando-se, do jeito que podia, para cumprir sua tarefa. Obviamente, ficou sabendo das relações políticas locais, e do papel de Miguel Arriaga. Suas escolhas, porém, acabariam por revelar certa falta de habilidade diplomática. A primeira delas, de embarcar com a frota inglesa, pode ter sido uma atitude mal calculada de sua parte, para impressionar a sociedade macaense. O vice-rei Bernardo de Lorena já imaginara que as relações com os ingleses poderiam desandar, e a inclusão de Lucas na frota seria, assim, um meio de contemporizar interesses e atitudes. De qualquer maneira, é difícil saber o quanto Lucas José conseguiu ou não influenciar os planos de Drury. O subsequente desembarque das forças britânicas deixou o novo governador em maus lençóis, gerando a forte impressão de que ele estaria associado aos inimigos. Sem mesmo conseguir assumir o cargo de imediato, suas primeiras ações na cidade foram, de fato, acompanhar o movimento de resistência empreendido por Miguel Arriaga, que terminou bem sucedido. A essa altura, Lucas percebera que o Ouvidor representava, de fato, o personagem político mais poderoso da sociedade local, o que poderia prejudicar o desenvolvimento de seu governo. E opor-se a Arriaga se tornaria sua segunda escolha difícil.

Isso ficou evidente quando, após a saída dos ingleses, os piratas chineses voltaram a ser o principal algoz de Macau. Lucas buscou reunir população e envidar esforços para combater a armada chinesa, liderada por Zhang Baozai (Cam pau sai, em cantonês) e Zhengshi, pirata mulher que aterrorizava os mares do sul da China. Organizando uma pequena frota, Lucas José conseguiu dar combate aos piratas na Batalha da Boca do Tigre (entre 15 de Fevereiro de 1809 a 21 de Janeiro de 1810), uma série de enfrentamentos que conseguiram, gradualmente, afastá-los da região. A guerra terminou num entendimento entre Macau, o império chinês e os chefes piratas, que deram fim a sua frota. Arriaga teria igualmente intermediado e tecido o acordo das três partes, aumentando ainda mais seu prestígio. Detalhe peculiar: Zhang Baozai viraria mandarim e a líder Zhengshi pirata acabaria se aposentando, vivendo depois, tranquilamente, como dona de um cassino em Macau.

Esse raro momento de solidariedade entre Lucas José e Miguel de Arriaga (se de fato houve) não arrefeceu o conflito entre a elite macaense e o governador. Seus enfrentamentos com o Ouvidor não contribuíram para aumentar seu poder ou fama, e ao fim de dois anos (em 1810), Lucas José seria chamado a retornar para Goa, sem cumprir inteiramente seu mandato. Por trás disso, as maquinações de Miguel Arriaga foram efetivas em pintar uma imagem bastante negativa do governador brasileiro. Lucas José saiu do cargo, mas veio direto para o Rio de Janeiro, onde a corte estava instalada. Buscava o favor de Dom João VI, e uma nova posição na administração do império.

Lucas José foi vivendo sua vida como podia. Dedicou-se as Letras, escrevendo alguns poemas, traduzindo outros, e tentava a sorte constantemente na cerimônia do beija-mão do soberano. Como Arriaga era considerado um fiel de Dom João, como qual se correspondia regularmente, é possível que a imagem de Lucas permanecesse arranhada. Em 1817 chegou a ser cogitado novamente para assumir o governo de Macau, mas nunca chegou a tomar posse do cargo. Sem perspectivas de mudança na sua situação, ele decide ficar no Brasil, e acompanha a independência em 1822. Contudo, em 1824, um livro lançado em Macau iria revoltar nosso personagem: Ignácio Andrade publicou Memória dos feitos macaenses contra os piratas da China e da entrada violenta dos ingleses na cidade de Macao, no qual afirmava que Miguel Arriaga havia sido o grande artífice da expulsão dos ingleses e da vitória sobre os piratas chineses. E Lucas José? Fora absolutamente excluído da narrativa, aparecendo somente numa breve citação como indolente e incompetente. Sua irritação chegara ao ápice, e o nobre letrado brasileiro decidiu responder na mesma moeda: correu a redigir e publicar sua própria versão dos fatos, no livro Memória sobre a expedição do governo de Macao em 1809, e 1810 em soccorro ao império da china contra os insurgentes piratas chinezes, principiada, e concluída em seiz mezes pelo governador, e capitão geral daquella cidade, Lucas José d’Alvarenga, authenticada com documentos justificativos, que viria a prensa em 1828 (1828a). Obviamente, Lucas José escrevera uma memória laudatória, mas queria que seu nome fosse lembrado, e sua fama, justificada. Sua apresentação difere bastante do livro de Andrade: enquanto o primeiro construía uma narrativa livre, ele elaborou uma memória referenciada em documentos, com o qual buscava subsidiar suas afirmações.

Notavelmente, sua obra não foi tão bem recebida, dividindo opiniões; historiadores e literatos portugueses e macaeneses simplesmente optaram por ignorar algumas das evidências de sua obra, e tornaram Ignácio Andrade sua referência fundamental sobre o episódio.[Para termos uma ideia disso, Luis Gonzaga Gomes (1907-1976), um dos grandes sinólogos de Macau, fez um resumo da história de Macau (republicado em 2015), no qual despreza absolutamente a obra de Lucas José Alvarenga (Gomes, 2015)]. Em resposta a saraivada de críticas que recebeu, ele ainda escreveria mais dois livros complementares sobre o episódio: Artigo addicional à memória. (1828b) e Observaçoens à memória de Lucas Jose d’alvarenga com as suas notas e hum resumo da sua vida (1830).

Seja qual for a verdade nos episódios da invasão inglesa e da ameaça pirata, ela provavelmente está no meio do caminho entre as versões de Andrade e Alvarenga. E qual a razão de Lucas José buscar tão avidamente, afinal, o reconhecimento? Anita Correia Almeida (2007 e 2009) analisou a questão, buscando reconstruir as ideias que iriam movê-lo a produzir essas importantes obras sobre a história de Macau, mesmo já morando em um Brasil independente. Como muitos que provinham da baixa nobreza, Lucas José alimentava a ideia de que sua cultura letrada poderia lhe proporcionar um novo posto na administração do país, resgatando seu prestígio e posição econômica. Por essa razão, ele não apenas publicou suas memórias sobre Macau, mas também, seu volume Poezias (1830), com obras autorais e traduções. Mostrar erudição era um dos caminhos possíveis para superar as barreiras de mobilidade social; mas dependia, igualmente, tanto das redes pessoais quanto do beneplácito dos monarcas. Aparentemente, Lucas José Alvarenga não tinha nenhuma das duas coisas, e terminou seus dias com o humilde salário de capitão.   

Cumpre salientar, porém, que o tempo lhe faria justiça. Não se pode mais menosprezar suas contribuições para a história de Macau, e hoje, suas obras são consideradas referências obrigatórias sobre esse período – ainda que, eventualmente, um ou outro historiador mais conservador persista na defesa da Memória... de Ignácio Andrade. Os livros de Lucas José, com seu retrato sobre a cidade, sua riqueza de detalhes e informações formam um quadro precioso sobre a ex-colônia portuguesa no início do século XIX, cujas contribuições cruciais seriam completadas por outra obra inédita e original, igualmente escrita por um brasileiro. É o que veremos a seguir. 

 

José Guimarães de Aquino Freitas (1780-1835)

Em 1815, aportava em Macau José Guimarães de Aquino Freitas, oficial de artilharia, proveniente de Minas Gerais, para servir no corpo militar da colônia. Havia corrido apenas cinco anos da malfada experiência de governo de Lucas José, e o prestígio de Miguel Arriaga estava em alta na cidade. Para o jovem oficial brasileiro, essa informação era importante: ele estava pisando em um terreno delicado, numa sociedade envolvida em disputas, recentemente ameaçada por invasões e cercada pela onipresença chinesa. Provavelmente, ele não demorou muito para se inteirar da situação local, bem como das brigas que haviam envolvido Lucas José e Arriaga.

José de Aquino também viera de Minas Gerais, assim como seu compatriota, mas de origem mais humilde. Não são muitas as informações que dispomos sobre sua vida; diferente de Lucas José, ele não se preocuparia em escrever suas próprias memórias. Também não se dedicara as Letras, mas galgara rapidamente o oficialato no exército. Serviu durante algum tempo em Angola, antes de seguir para Macau, onde iria encontrar uma nova vocação que iria mudar seu papel na história da cidade.

Provavelmente, por força do exercício da profissão, José de Aquino pôs-se cordatamente sob as ordens das forças locais. No entanto, não demorou muito, e uma admiração legítima por Miguel de Arriaga se desenvolveu no oficial. É fácil dizer que ele seria simplesmente um áulico e bajulador, mas isso seria subestimar suas capacidades. Lembremos que Arriaga era uma figura basilar na comunidade local, e tinha relações profícuas com a corte portuguesa e com os chineses. Contrariá-lo estava longe de ser uma boa ideia, como a experiência com Lucas José mostrou. Em sentido contrário, José de Aquino começou a travar interessantes diálogos com o Ouvidor, no qual ficara conhecendo seus planos para o império português. Essa foi a pedra de toque para que ele gestasse a ideia de uma nova publicação, até então nunca realizada antes.

Em geral, Macau era costumeiramente citada nas crônicas portuguesas sobre a Ásia. Contudo, até o século XIX – incrivelmente – nenhum autor havia se dedicado de forma específica a história da cidade. Foi nos diálogos com Arriaga que José de Aquino (como ele mesmo afirma) imaginou escrever, pela primeira vez, uma obra desse gênero. Seu objetivo era claro: preservar a memória da cidade, descrevê-la, e revelar sua importância crucial na continuidade do império. Foi assim que começou a nascer Memoria sobre Macau, livro que se tornaria uma referência fundamental para a história da Cidade.      

Não sabemos ao certo quando, ou quanto tempo, José de Aquino se demorou para construir o livro. Uma situação constrangedora se impôs no curso da carreira deste oficial; Arriaga teve seu prestígio abalado pelas perseguições da Revolução do Porto em 1820 (para o triunfo temporário de seus adversários), chegando a se exilar em Cantão em 1823. Ele conseguiria refutar todas as acusações, retornando a Macau e sendo aclamado pela população da cidade. Apesar de ter recuperado seus prestígio, Miguel de Arriaga estava fragilizado, e não conseguiria desfrutar por muito tempo desse período de retorno. Em 1822, a independência do Brasil solapava em definitivo muitos dos seus planos para o império. Em 1824, ele viria a falecer, deixando um vácuo no poder político em Macau e enfraquecendo as redes políticas portuguesas na Ásia. [Miguel de Arriaga segue, porém, sendo considerado uma das figuras fundamentais da história macaense, e sua memória é usualmente louvada nos textos de divulgação].

Por essa razão, o primeiro livro que conhecemos de José de Aquino é Elogio do sr. Miguel de Arriaga Brum da Silveira, publicado dois anos depois do falecimento do Ouvidor (1826). A obra é um elogio rasgado à memória de Arriaga, ressaltando sua carreira, seus feitos e planos. A admiração de Aquino por seu mentor intelectual ficava explícita. A sinceridade da obra pode ser medida pelo fato que ele nada colhera da herança política de Arriaga, que não designara sucessores; e ninguém se apresentara, até então, como possuindo as mesmas qualidades de negociação e liderança. No mais, esse sucinto texto nos orienta sobre várias ideias em curso para restaurar o domínio português na Ásia.

José de Aquino se afinava com a permanência do império, mesmo que ressaltasse sua origem brasileira. Talvez, em sua visão das coisas, o mundo luso-afro-asiático abria possibilidades amplas e enriquecedoras, ao qual seu país de origem dava as costas com a independência. Aquino não se tornara macaense, não se sentia português e não deixara de ser brasileiro: queria apenas, provavelmente, que o Brasil continuasse a ser parte do império.  

Assim, o livro que ele publicaria depois, Memoria sobre Macau, concretizaria o projeto de construir uma narrativa sobre a história da cidade e sua importância geopolítica. Publicado em 1828, a obra era pequena e sucinta, trazendo dados geográficos, econômicos e culturais, além de uma breve dissertação sobre as ideias de Miguel de Arriaga sobre as relações entre Macau, Timor e Goa. Embora seguisse um roteiro tradicional, Memoria sobre Macau era, definitivamente, o primeiro livro de história sobre a cidade, tornando-se um marco para a compreensão da história luso-oriental.

No entanto, desde aquela época – infelizmente – era comum conhecer e dar mais valor ao que era publicado em outros países do que na própria terra natal. Por alguma razão desconhecida, o trabalho original de José de Aquino passou despercebido. Não temos ideia do quanto a obra circulou, e se o fim do ‘período Arriaga’ determinou a obsolescência ou o ostracismo do livro. Seja como for, em 1836, o autor sueco Anders Ljungstedt publicou A Historical sketch of the Portuguese settlements in China and of Roman Catholic Churches and Missions in China, obra que seria considerada por anos como a ‘primeira história oficial de Macau’. José de Aquino não testemunhou essa incomensurável injustiça; em torno de 1835, ele já se mudara para Portugal e exercia a prefeitura em Coimbra, quando veio a falecer.

Ivo Carneiro de Sousa (2007) analisou a obra de José de Aquino, mostrando como o apoio do governo português na tradução e divulgação do livro de Ljungstedt contribuiu sensivelmente para eclipsar a originalidade de Memoria sobre Macau. O texto do autor sueco estabelecia uma narrativa que valorizava a autonomia portuguesa frente aos chineses; o livro de José de Aquino era objetivo, resumido, direto e não necessariamente elegante. Havia pontos sensíveis no texto; as críticas ao abandono das colônias asiáticas, a reestruturação da exploração das mesmas, o comércio de ópio como uma opção lucrativa, entre outras coisas. Nada disso chocava seus contemporâneos no século XIX, mas o livro não se circunscrevia a ser um trabalho de história, sugerindo teorias e soluções, o que pode ter diversificado e/ou limitado o interesse dos leitores pelo mesmo.

Com o tempo, como aconteceu com Lucas José Alvarenga, José de Aquino acabou recebendo o devido reconhecimento sobre o ineditismo de seu livro, angariando a simpatia do público e o interesse dos pesquisadores. E mais uma vez, um brasileiro legava uma importante contribuição para a história de Macau, mostrando que desde aquela época Brasil e China estavam bem mais próximos do que muitas vezes sabemos.    

 

Referências

Almeida, Anita Correia de Lima. Um ilustrado mineiro no governo de Macau. In: Andréa Doré; Antônio Cesar de Almeida Santos. (Org.). Temas setecentistas: governos e populações no império português. Curitiba: UFPR, 2009, p. 135-142.

Almeida, Anita Correia de Lima. Um ilustrado mineiro no governo de Macau (texto completo). In: VII Jornada Setecentista, 2007, Curitiba. Anais da VII Jornada Setecentista. Curitiba: UFPR, 2007.

Alvarenga, Lucas José de. Artigo addicional à memória. Rio de Janeiro: Typographia do diário, 1828b.

Alvarenga, Lucas José de. Memória sobre a expedição do governo de Macao em 1809, e 1810 em soccorro ao império da china contra os insurgentes piratas chinezes, principiada, e concluída em seiz mezes pelo governador, e capitão geral daquella cidade, Lucas José d’Alvarenga, authenticada com documentos justificativos. Rio de Janeiro: Typographia Imperial, e Nacional, 1828a.

Alvarenga, Lucas José de. Observaçoens à memória de Lucas Jose d’alvarenga com as suas notas e hum resumo da sua vida. Rio de Janeiro: Typographia do Diario, 1830a.

Alvarenga, Lucas José de. Poezias. Rio de Janeiro: Ogier, 1830b.

Andrade, José Ignácio. Memória dos feitos macaenses contra os piratas da China e da entrada violenta dos ingleses na cidade de Macao, Lisboa: Typographia Lisbonense, 1835 (2ª Ed.)

Antony, Philomena Sequeira. Relações intracoloniais: Goa-Bahia, 1675-1825. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2013.

Bandeira, Júlio. O Brasil na Rota da China. Rio de Janeiro: ArtePadilla, 2018.

Boxer, Charles. António de Albuquerque Coelho, esboço biográfico, 1939, Macau: Tip. da Imaculada Conceição

Freitas, José de Aquino Guimarães e. Elogio do sr. Miguel de Arriaga Brum da Silveira. Lisboa: Imp. de António Rodrigues Galhardo, 1826.

Freitas, José de Aquino Guimarães e. Memória sobre Macao. Coimbra: Real Imprensa de Coimbra, 1828.

Freyre, Gilberto. China tropical: e outros escritos sobre a influência do Oriente na cultura luso-brasileira. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003.

Gomes, Luiz Gonzaga. Algumas noções sobre a história de Macau (1976). Revista de Cultura, n.23, 1995,  p.123-131

Jornada, que Antonio de Albuquerque Coelho, Governador e Capitão General da Cidade do Nome de Deos de Macao na China, fez de Goa até chegar à dita cidade no anno de 1718: dividida em duas partes / escrita pelo Capitão João Tavares de Vellez Guerreiro... Lisboa Occidental na Officina da Musica, 1732

Leite, José Roberto Teixeira. A China no Brasil: influências, marcas, ecos e sobrevivências chinesas na sociedade e na arte brasileiras. Campinas, Editora da Unicamp, 1999.

Ljungstedt, Anders. A Historical sketch of the Portuguese settlements in China and of Roman Catholic Churches and Missions in China. Boston: James Munroe, 1836.

Martins, Paulo Miguel. Percorrendo o Oriente: a vida de António Albuquerque Coelho (1682-1745) Lisboa: Livros Horizonte, 1998.

Moura, Carlos Francisco. Brasileiros nos extremos orientais do império: séculos XVI a XIX. Lisboa / Rio de Janeiro: Instituto Internacional de Macau / Real Gabinete Português de Leitura, 2014.

Moura, Carlos Francisco. Chineses e chá no Brasil no início do século XIX. Macau/Rio de Janeiro: Instituto Internacional de Macau/Real Gabinete Português de Leitura, 2012.

Moura, Carlos Francisco. O projeto de Brum da Silveira, ouvidor de Macau, de envio de carpinteiros chineses para os arsenais reais do Brasil. Revista Navigator, v.10, n.20, 2014, p.21-28.

Moura, Carlos Francisco. Relações entre Macau e o Brasil no século XIX, Revista de Cultura, N.22 (II série) Janeiro/Março, 1995. Macau: Instituto Cultural de Macau, 1995, p.67-86.

Russell-Wood, A. J. Um mundo em movimento. Os portugueses na África, Ásia e América (1415-1808). Lisboa: Difel Editora, 1998.

Sousa, Ivo Carneiro de. “Um autor e uma obra para a memória da presença colonial portuguesa em Macau e no mundo asiático: A “Memória sobre Macao” de José de Aquino Guimarães e Freitas (1828)” in Administração n.º 76, vol. XX, 2007, p.619-645.

Teixeira, Pe. Manuel. Miguel de Arriaga. Macau: Imprensa Nacional, 1996.


5 comentários:

  1. Primeiramente bom dia, boa tarde e boa noite professor Dr. André Bueno!

    Estou encantada com a riqueza das informações históricas trazidas na produção desse texto. Tem sido graças a existência do Simpósio Oriente que tenho conhecido sobre a cultura oriental no Brasil. Pois, na sua produção, vi, que a relação do Brasil e Macau no Império Português por meio dos três brasileiros, Antônio Coelho, Lucas Alvarenga e José Freitas, é de suma importância para a ampliação do conhecimento da história Oriental em nosso país.
    Diante disso, podemos dizer que os três personagens expandiram de certa forma as riquezas da Colônia portuguesa em Macau?

    Atenciosamente,

    Maria Josilda Ferreira da Silva

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  2. Cara Maria, obrigado pela pergunta! Sim, com certeza eles atuaram no projeto de integrar as partes do império português como plataformas de exportação. Com graus de sucesso variados, eram brasileiros que ajudaram o mundo a conhecer melhor Macau e a China. =)

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    1. Muito grata pelo retorno professor Dr. André Bueno.

      Um grande e fraterno abraço,

      Maria Josilda Ferreira da Silva

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  3. Olá, professor André Bueno. Parabéns pelo seu texto! Muito interessante conhecer essas histórias!
    O caso de Antônio Coelho me leva a refletir sobre como esse “mulato” conseguiu ascender a posições tão relevantes no contexto ultramarino português. Considerando o cenário social da época, tal trajetória era incomum para alguém nascido em suas circunstâncias, algo que seu texto enfatiza. Isso me faz questionar se algum evento específico da época, talvez uma instabilidade política, teria levado Portugal a optar por não colocar um português de origem como administrador em posições estratégicas nesses importantes entrepostos comerciais.

    Já a trajetória de Lucas José suscita reflexões sobre as fontes que utilizamos como historiadores. Percebe-se claramente uma tentativa de construção de narrativas de ambos os lados envolvidos. Isso nos desafia a compreender como essas construções moldam nosso entendimento histórico. Afinal, os interesses por trás dos registros escritos podem distorcer significativamente os sentidos atribuídos aos acontecimentos. Por isso, entendo como essencial que nosso trabalho seja crítico, fundamentado em metodologias, conceitos, cruzamento de fontes, análise de cultura material e outros recursos que ampliem e aprofundem a interpretação.

    Por fim, um elemento marcante destacado por essas histórias é a mobilidade geográfica desses personagens. O senso comum frequentemente pressupõe que essas figuras possuíssem pouca liberdade ou capacidade de transitar entre diferentes territórios globais. No entanto, essas trajetórias trazidas em seu texto demonstram o contrário, evidenciando uma complexidade muito grande e ampliando a compreensão sobre o mundo do período.

    Mais uma vez, parabéns! Excelente trabalho.
    Abraços!
    Ricardo Russo Carvalho

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    Respostas
    1. Caro Ricardo, obrigado pelo comentário!
      Pois... apesar do racismo e do preconceito vigentes, o império português tinha que conceder espaço para mestiçagem, para hibridização, para que fosse possível enraizar o processo de domínio. Mesmo assim, isso era uma via de mão dupla; que em muito contribuiu para elevar as tradições locais e criar culturas mistas e ricas. A questão sempre, claro, era da percepção que o individuo tinha do seu status: até 1822, se sabiam brasileiros de nascença, mas portugueses de pertença? creio que só José de Aquino conseguiu escolher por isso... =)
      Saudações!

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