TRÊS BRASILEIROS NA
MACAU COLONIAL
Ao
longo dos séculos XVIII e XIX, o império português foi uma entidade dinâmica,
por onde transitavam personagens das mais diversas localidades. Era um mundo de
movimento, como Russell-Wood (1998) demonstrou, em que pessoas, mercadorias e
ideias circulavam, modificando o perfil da natureza e das culturas. Nesse
sentido, o Brasil era parte fundamental de uma ampla rede de trocas,
conectando-se a África e Ásia pelas rotas que atravessavam o Atlântico. Era
bastante comum que indivíduos, desejosos de fazer carreira no império ou de
simplesmente prosperar em alguma aventura, se engajassem nas viagens que
levavam para terras mais distantes. As colônias portuguesas na Ásia eram as que
mais careciam de oficiais; e para lá, foram muitos brasileiros – alguns,
inclusive, alcançaram destaque em suas missões (Moura, 2014). Nesse nosso breve
Dossiê, queremos destacar três brasileiros que não apenas foram para o Oriente,
mas que chegaram a posições de relevo em Macau, deixando contribuições
indeléveis para a história dessa cidade [manteremos links vivos para as obras].
O
primeiro deles foi Antônio de Albuquerque Coelho (1682 - 1745), oficial nascido
no Maranhão, cujas desventuras e histórias foram narradas no livro Jornada, que António de Albuquerque Coelho,
Governador e Capitão General da Cidade do Nome de Deos de Macao na China, fez
de Goa até chegar à dita cidade no anno de 1718, escrito por seu
auxiliar, o capitão João Guerreiro. Nascido do casamento de um Capitão-mor
português e de uma nativa da pequena vila de Santa Cruz de Macuttá, Antônio
ganharia mundo, e conquistaria posições de destaque na Ásia.
Nosso
segundo personagem é Lucas José de Alvarenga (1768-1831), natural de Sabará, e
um dos mais destacados administradores da cidade de Macau, que combateu os piratas
chineses na defesa da cidade, deixou escritas suas memórias sobre o evento,
comprou brigas inúmeras com a sociedade local e terminaria seus dias escrevendo
e traduzindo poemas no Rio de Janeiro do Brasil independente.
Nosso
terceiro personagem é José Guimarães de Aquino Freitas (1780-1835), proveniente
de Minas Gerais, e autor da primeira história da cidade de Macau. Antes dele,
os cronistas costumavam comentar sobre o enclave português na Ásia, mas sempre
dentro de obras maiores. José Freitas foi um ativo participante na
administração dessa cidade, integrando a restrita elite macaense, e auxiliando
no desenvolvimento do projeto de levar especiarias asiáticas para sua terra
natal.
De
fato, muitos livros sobre a China foram produzidos em português desde o século
XVI, tanto por viajantes como por funcionários e missionário jesuítas. Até
então, a China permanecia uma nação pouco acessível, que fascinava os
pensadores europeus e americanos. A metrópole portuguesa concebeu diversos
projetos para integrar mais eficientemente o império, tecendo relações
profundas entre Brasil, Macau e China. Quem quiser conhecer um pouco sobre o mundo
chinês entre os séculos XVI e XIX, pode encontrar excelentes obras no acervo digital da Biblioteca
Nacional, mostrando como o mundo lusófono produziu um substancial
conhecimento sobre a Ásia. Nesse nosso breve texto, vamos investigar uma parte
peculiar dessas relações Oriente-Ocidente, que mostram como os brasileiros já
participavam dessa ampla rede de integração mundial.
Antônio de
Albuquerque Coelho (1682-1745)
As
peripécias de Antônio Coelho realmente mereceram uma narrativa biográfica. João
Guerreiro, seu auxiliar direto, acompanhou-o em grande parte de suas
desventuras na Ásia, e nutria uma simpatia sincera pelo seu chefe, motivo pelo
qual escreveu Jornada... Não era para
menos. Antônio começara a vida de maneira nada fácil: seu pai, Antônio de
Albuquerque Coelho de Carvalho, servira como capitão nas forças portuguesas,
ocupando cargos importantes na administração do Brasil colônia. Ele teve um
breve romance com Ângela de Bairros, mulata maranhense, do qual nasceu o
pequeno Antônio. Filho bastardo, igualmente mulato, sofreria os preconceitos
acerbos de uma sociedade racista e discriminatória.
Mesmo
assim, lutou para conquistar uma posição social; aproveitando a possibilidade
de estudar em Portugal (conseguida, talvez, por influência do pai), destacou-se
nos estudos e na carreira militar, alcançando o posto de cavaleiro e capitão,
superando as dificuldades sociais e culturais da época. Decidiu embarcar para
Macau em 1708, tentando a sorte no Oriente. Após uma viagem trágica, que por
pouco não resulta em naufrágio, chega à Macau em agosto do mesmo ano.
Tão
logo arriba na cidade, Antônio divide a sociedade local; ele se enamora da
macaense Maria de Moura, uma criança ainda, cujo dote de órfão era grande. Uns
apoiam o jovem oficial, outros o repudiam. Ele não estava sozinho na disputa, e
rapidamente conquistou inimigos. Da peleja quase mortal, feita de armadilhas e
traições, saiu sem um braço – mas casado com Maria.
Doravante,
atuaria algum tempo no Senado, chegou a Ouvidor; contudo, os conflitos
reincidentes com membros da sociedade continuaram a pôr sua vida em risco. As
disputas por poder e privilégios na pequena colônia portuguesa eram constantes.
Em 1715, muda-se para Goa, onde continuaria a atuar nas questões locais do
império.
Até
que, em 1717, ele recebeu a surpreendente incumbência de retornar a Macau para
governar a cidade. Fosse por sua experiência com a região, fosse por ter
conseguido construir uma rede de amizades, o cargo o recolocava no epicentro
das disputas da sociedade local. As querelas pessoais eram tantas que nem mesmo
um navio ele conseguiu para ir até Macau: foi necessário atravessar a Índia por
terra até chegar na costa leste, onde finalmente conseguiu embarcar depois de
comprar seu próprio navio. A viagem foi terrível, e ele quase falece. Mesmo
assim, consegue, com ajuda chinesa, chegar à cidade e assumir o cargo.
Conjugando
a recomendação de alguns amigos com tato, estratégia e a experiência adquirida
in loco, Antônio evitou vinganças pessoais e altercações, conseguindo realizar
um governo admiravelmente harmônico e bem sucedido. Superando os preconceitos
contra sua pessoa, o brasileiro passou dois anos no comando de Macau, marcando
sua presença na história do império português. Sua administração bem sucedida o
levou a ser indicado para o governo de Timor, que assumiu em 1722, conseguindo
restaurar a ordem local e por lá permanecendo até 1725.
As
desventuras da Jornada... param por
aí; depois disso, a vida de Antônio é reconstituída a partir de fragmentos. Depois
disso, Antônio Coelho ainda exerceu o governo da ilha de Pate (situada na
África oriental) e atuaria também em Moçambique, mas sem tanto sucesso. As
disputas locais e as precariedades dos recursos portugueses gradualmente
solaparam as possibilidades de sucesso nessas empreitadas.
Retornando
a Goa, ele cessou suas viagens, ocupando posições de importância nesse estado
até sua morte, em 1744. A vida desse personagem revela as dificuldades de
construir uma carreira bem sucedida na sociedade colonial, onde a mobilidade
social era marcada por restrições e preconceitos. Antônio Coelho foi prova viva
de uma tremenda capacidade de superação, tanto por conta dos percalços
enfrentados, quanto por sua habilidade em governar e trazer estabilidade as
possessões portuguesas. Suas diversas experiências transculturais acabaram lhe
proporcionando uma visão sutil e cuidadosa, e lhe granjearam uma notável
reputação de liderança. Foi nas mãos desse formidável maranhense que Macau (assim
como Goa e Timor) conheceram anos de ordem e segurança, administradas por
alguém que vivera – e sabia reconhecer – a importância fundamental das
diferenças étnicas e culturais na sociedade.
Lucas José de
Alvarenga (1768-1831)
Quase
um século depois da passagem de Antônio Coelho, a situação de Macau se
encontrava periclitante. A coroa portuguesa pensara várias formas de integrar,
de maneira mais efetiva, suas colônias asiáticas; mas esses planos foram
malogrados pelas mais diversas circunstâncias. No início do século XIX, duas
ameaças graves rondavam essa cidade em especial: a primeira, a invasão inglesa
da cidade de Macau, a pretexto de ‘protegê-la’ de ataques das forças
napoleônicas; a segunda, o recrudescimento das razias piratas nas costas chinesas,
que prejudicavam indefinidamente o comércio marítimo macaense, fonte principal
de renda da colônia.
Assim
como já tinham feito os holandeses, os ingleses também cobiçavam as possessões
portuguesas no Oriente. Se eram aliados na Europa, fora dela, a relação entre
lusos e britânicos costumava ser de concorrência, muitas vezes tensa. As
guerras contra Napoleão forneceram um pretexto para ocupar as colônias
orientais de Portugal. Em 1802, partiu uma frota britânica para ocupar a cidade
de Macau, que não chegou a concretizar seus propósitos; avisados do Tratado de
Amiens com a França, retornam sem levar a cabo sua missão. Mesmo assim, a
comunidade macaense ficou de sobreaviso. A retomada dos conflitos na Europa
incitou novamente o projeto inglês, e a frota do almirante Drury chegou para
sitiar Macau em 1808.
A
essa altura, uma negociação grave e delicada se estabeleceu com os invasores.
Os britânicos forçaram sua presença, desembarcaram e ocuparam a cidade,
elevando o pico de tensão ao máximo. Embora os macaenses não dispusessem de
recursos para se opor diretamente a força invasora, eles invocaram suas
relações com o governo chinês para forçar uma saída. Instigando o império
manchu sobre a iminência de uma agressão inglesa generalizada na região, eles
conseguiram que o imperador Jiaqing (1796-1820) despachasse uma força militar
de oitenta mil soldados para ameaçar os britânicos. Intimidado com essa
presença, e receoso por abrir um frente de combate absolutamente desfavorável,
Drury recuou, ordenou a desocupação da cidade, e acabou sendo forçado a
retornar para a Inglaterra sem alcançar os objetivos da coroa.
Nesse
momento, duas figuras foram cruciais para a resolução dessa questão: o ouvidor
Miguel de Arriaga Brum da Silveira (1776-1824) e o brasileiro Lucas José de
Alvarenga. Mas antes de contarmos sobre as ações de Lucas José em Macau, é
indispensável falar da figura do Ouvidor. Miguel Arriaga era, definitivamente,
o político mais influente na Macau dessa época. Era um defensor incansável da
cidade, que abraçara como sua ‘pequena nação’; mas elaborava planos para
renovar o domínio português na Ásia (Teixeira, 1996). Arriaga era um dos
defensores da ideia de que se deveria plantar, no Brasil, as especiarias e o
chá que os europeus vinham buscar na China e na Índia. Bom conhecedor das
elites regionais chinesas, comunicava-se habilmente com elas no plano político,
assegurando a posição de Macau perante a dinastia Qing. Tudo isso contribuíra
para construir uma imagem poderosa e carismática em torno do Ouvidor, cuja
palavra era respeitada no senado e em todo restante da cidade.
E
foi logo com essa figura importantíssima que Lucas José de Alvarenga foi
trombar ao chegar em Macau, criando uma inimizade tão séria que influenciaria
até mesmo a escrita da história local. Lucas fora nomeado governador da cidade
em 1807, e sua chegada já foi profundamente prejudicada, pois ele aproveitara a
passagem da frota de Drury pela Índia para pegar uma carona... Sem ter uma
noção clara dos propósitos ingleses, ele foi envolvido no imbróglio da invasão,
e ao descer do navio, sua posição parecia incompreensível aos olhos dos
habitantes locais. Com a imagem arranhada desde a primeira impressão, a
passagem do novo governador seria rápida – mas muito intensa – tornando-o uma das
figuras mais controversas e interessantes na história de Macau.
Lucas
José Alvarenga nascera na pequena nobreza da cidade de Sabará, no interior de
Minas Gerais. Como muitos jovens de sua época que tinham alguma posse e muitos
projetos, foi para Coimbra, formou-se em Direito, e voltou ao Brasil. Em Minas,
associou-se ao governo regional de Bernardo José de Lorena, futuramente o
quinto Conde de Sarzedas. Ele nem poderia imaginar que, mais a frente, o Conde
seria nomeado vice-rei da Índia portuguesa, e o levaria junto para o Oriente. Ao
chegarem em Goa, o novo vice-rei decidiu escolher alguém de confiança para o
governo de Macau (nessa época, a nomeação desse cargo era incumbência sua), e
designou Lucas para essa missão. A indicação, surpreendente, causou grande mal
estar, pois ele ainda não havia ocupado qualquer cargo importante em sua
carreira.
Mesmo
assim, Lucas José não recuou da empreitada, e tentou inteirar-se de tudo que
passava em Macau. Estudou livros, documentos e relatórios, preparando-se, do
jeito que podia, para cumprir sua tarefa. Obviamente, ficou sabendo das
relações políticas locais, e do papel de Miguel Arriaga. Suas escolhas, porém,
acabariam por revelar certa falta de habilidade diplomática. A primeira delas,
de embarcar com a frota inglesa, pode ter sido uma atitude mal calculada de sua
parte, para impressionar a sociedade macaense. O vice-rei Bernardo de Lorena já
imaginara que as relações com os ingleses poderiam desandar, e a inclusão de
Lucas na frota seria, assim, um meio de contemporizar interesses e atitudes. De
qualquer maneira, é difícil saber o quanto Lucas José conseguiu ou não
influenciar os planos de Drury. O subsequente desembarque das forças britânicas
deixou o novo governador em maus lençóis, gerando a forte impressão de que ele
estaria associado aos inimigos. Sem mesmo conseguir assumir o cargo de
imediato, suas primeiras ações na cidade foram, de fato, acompanhar o movimento
de resistência empreendido por Miguel Arriaga, que terminou bem sucedido. A
essa altura, Lucas percebera que o Ouvidor representava, de fato, o personagem
político mais poderoso da sociedade local, o que poderia prejudicar o
desenvolvimento de seu governo. E opor-se a Arriaga se tornaria sua segunda
escolha difícil.
Isso
ficou evidente quando, após a saída dos ingleses, os piratas chineses voltaram
a ser o principal algoz de Macau. Lucas buscou reunir população e envidar
esforços para combater a armada chinesa, liderada por Zhang Baozai (Cam pau sai,
em cantonês) e Zhengshi, pirata mulher que aterrorizava os mares do sul da
China. Organizando uma pequena frota, Lucas José conseguiu dar combate aos
piratas na Batalha da Boca do Tigre
(entre 15 de Fevereiro de 1809 a 21 de Janeiro de 1810), uma série de
enfrentamentos que conseguiram, gradualmente, afastá-los da região. A guerra
terminou num entendimento entre Macau, o império chinês e os chefes piratas,
que deram fim a sua frota. Arriaga teria igualmente intermediado e tecido o
acordo das três partes, aumentando ainda mais seu prestígio. Detalhe peculiar: Zhang
Baozai viraria mandarim e a líder Zhengshi pirata acabaria se aposentando,
vivendo depois, tranquilamente, como dona de um cassino em Macau.
Esse
raro momento de solidariedade entre Lucas José e Miguel de Arriaga (se de fato
houve) não arrefeceu o conflito entre a elite macaense e o governador. Seus
enfrentamentos com o Ouvidor não contribuíram para aumentar seu poder ou fama,
e ao fim de dois anos (em 1810), Lucas José seria chamado a retornar para Goa,
sem cumprir inteiramente seu mandato. Por trás disso, as maquinações de Miguel
Arriaga foram efetivas em pintar uma imagem bastante negativa do governador brasileiro.
Lucas José saiu do cargo, mas veio direto para o Rio de Janeiro, onde a corte
estava instalada. Buscava o favor de Dom João VI, e uma nova posição na
administração do império.
Lucas
José foi vivendo sua vida como podia. Dedicou-se as Letras, escrevendo alguns
poemas, traduzindo outros, e tentava a sorte constantemente na cerimônia do
beija-mão do soberano. Como Arriaga era considerado um fiel de Dom João, como
qual se correspondia regularmente, é possível que a imagem de Lucas
permanecesse arranhada. Em 1817 chegou a ser cogitado novamente para assumir o
governo de Macau, mas nunca chegou a tomar posse do cargo. Sem perspectivas de
mudança na sua situação, ele decide ficar no Brasil, e acompanha a
independência em 1822. Contudo, em 1824, um livro lançado em Macau iria revoltar
nosso personagem: Ignácio Andrade publicou Memória dos feitos macaenses contra os
piratas da China e da entrada violenta dos ingleses na cidade de Macao, no qual afirmava que Miguel Arriaga havia
sido o grande artífice da expulsão dos ingleses e da vitória sobre os piratas
chineses. E Lucas José? Fora absolutamente excluído da narrativa, aparecendo
somente numa breve citação como indolente e incompetente. Sua irritação chegara
ao ápice, e o nobre letrado brasileiro decidiu responder na mesma moeda: correu
a redigir e publicar sua própria versão dos fatos, no livro Memória sobre a expedição do governo de
Macao em 1809, e 1810 em soccorro ao império da china contra os insurgentes
piratas chinezes, principiada, e concluída em seiz mezes pelo governador, e
capitão geral daquella cidade, Lucas José d’Alvarenga, authenticada com
documentos justificativos, que viria a prensa em 1828 (1828a). Obviamente,
Lucas José escrevera uma memória laudatória, mas queria que seu nome fosse
lembrado, e sua fama, justificada. Sua apresentação difere bastante do livro de
Andrade: enquanto o primeiro construía uma narrativa livre, ele elaborou uma
memória referenciada em documentos, com o qual buscava subsidiar suas
afirmações.
Notavelmente, sua obra não foi tão bem recebida, dividindo opiniões; historiadores e literatos portugueses e macaeneses simplesmente optaram por ignorar algumas das evidências de sua obra, e tornaram Ignácio Andrade sua referência fundamental sobre o episódio.[Para termos uma ideia disso, Luis Gonzaga Gomes (1907-1976), um dos grandes sinólogos de Macau, fez um resumo da história de Macau (republicado em 2015), no qual despreza absolutamente a obra de Lucas José Alvarenga (Gomes, 2015)]. Em resposta a saraivada de críticas que recebeu, ele ainda escreveria mais dois livros complementares sobre o episódio: Artigo addicional à memória. (1828b) e Observaçoens à memória de Lucas Jose d’alvarenga com as suas notas e hum resumo da sua vida (1830).
Seja
qual for a verdade nos episódios da invasão inglesa e da ameaça pirata, ela
provavelmente está no meio do caminho entre as versões de Andrade e Alvarenga.
E qual a razão de Lucas José buscar tão avidamente, afinal, o reconhecimento? Anita
Correia Almeida (2007 e 2009) analisou a questão, buscando reconstruir as
ideias que iriam movê-lo a produzir essas importantes obras sobre a história de
Macau, mesmo já morando em um Brasil independente. Como muitos que provinham da
baixa nobreza, Lucas José alimentava a ideia de que sua cultura letrada poderia
lhe proporcionar um novo posto na administração do país, resgatando seu
prestígio e posição econômica. Por essa razão, ele não apenas publicou suas
memórias sobre Macau, mas também, seu volume Poezias (1830), com obras autorais e traduções. Mostrar erudição
era um dos caminhos possíveis para superar as barreiras de mobilidade social;
mas dependia, igualmente, tanto das redes pessoais quanto do beneplácito dos
monarcas. Aparentemente, Lucas José Alvarenga não tinha nenhuma das duas
coisas, e terminou seus dias com o humilde salário de capitão.
Cumpre
salientar, porém, que o tempo lhe faria justiça. Não se pode mais menosprezar
suas contribuições para a história de Macau, e hoje, suas obras são
consideradas referências obrigatórias sobre esse período – ainda que,
eventualmente, um ou outro historiador mais conservador persista na defesa da Memória... de Ignácio Andrade. Os livros
de Lucas José, com seu retrato sobre a cidade, sua riqueza de detalhes e
informações formam um quadro precioso sobre a ex-colônia portuguesa no início
do século XIX, cujas contribuições cruciais seriam completadas por outra obra
inédita e original, igualmente escrita por um brasileiro. É o que veremos a
seguir.
José Guimarães de
Aquino Freitas (1780-1835)
Em
1815, aportava em Macau José Guimarães de Aquino Freitas, oficial de
artilharia, proveniente de Minas Gerais, para servir no corpo militar da
colônia. Havia corrido apenas cinco anos da malfada experiência de governo de
Lucas José, e o prestígio de Miguel Arriaga estava em alta na cidade. Para o
jovem oficial brasileiro, essa informação era importante: ele estava pisando em
um terreno delicado, numa sociedade envolvida em disputas, recentemente
ameaçada por invasões e cercada pela onipresença chinesa. Provavelmente, ele
não demorou muito para se inteirar da situação local, bem como das brigas que
haviam envolvido Lucas José e Arriaga.
José
de Aquino também viera de Minas Gerais, assim como seu compatriota, mas de
origem mais humilde. Não são muitas as informações que dispomos sobre sua vida;
diferente de Lucas José, ele não se preocuparia em escrever suas próprias
memórias. Também não se dedicara as Letras, mas galgara rapidamente o
oficialato no exército. Serviu durante algum tempo em Angola, antes de seguir
para Macau, onde iria encontrar uma nova vocação que iria mudar seu papel na
história da cidade.
Provavelmente,
por força do exercício da profissão, José de Aquino pôs-se cordatamente sob as
ordens das forças locais. No entanto, não demorou muito, e uma admiração
legítima por Miguel de Arriaga se desenvolveu no oficial. É fácil dizer que ele
seria simplesmente um áulico e bajulador, mas isso seria subestimar suas
capacidades. Lembremos que Arriaga era uma figura basilar na comunidade local,
e tinha relações profícuas com a corte portuguesa e com os chineses.
Contrariá-lo estava longe de ser uma boa ideia, como a experiência com Lucas
José mostrou. Em sentido contrário, José de Aquino começou a travar
interessantes diálogos com o Ouvidor, no qual ficara conhecendo seus planos
para o império português. Essa foi a pedra de toque para que ele gestasse a
ideia de uma nova publicação, até então nunca realizada antes.
Em
geral, Macau era costumeiramente citada nas crônicas portuguesas sobre a Ásia.
Contudo, até o século XIX – incrivelmente – nenhum autor havia se dedicado de
forma específica a história da cidade. Foi nos diálogos com Arriaga que José de
Aquino (como ele mesmo afirma) imaginou escrever, pela primeira vez, uma obra
desse gênero. Seu objetivo era claro: preservar a memória da cidade,
descrevê-la, e revelar sua importância crucial na continuidade do império. Foi
assim que começou a nascer Memoria sobre Macau, livro que se
tornaria uma referência fundamental para a história da Cidade.
Não sabemos ao certo quando, ou quanto tempo, José de Aquino se demorou para construir o livro. Uma situação constrangedora se impôs no curso da carreira deste oficial; Arriaga teve seu prestígio abalado pelas perseguições da Revolução do Porto em 1820 (para o triunfo temporário de seus adversários), chegando a se exilar em Cantão em 1823. Ele conseguiria refutar todas as acusações, retornando a Macau e sendo aclamado pela população da cidade. Apesar de ter recuperado seus prestígio, Miguel de Arriaga estava fragilizado, e não conseguiria desfrutar por muito tempo desse período de retorno. Em 1822, a independência do Brasil solapava em definitivo muitos dos seus planos para o império. Em 1824, ele viria a falecer, deixando um vácuo no poder político em Macau e enfraquecendo as redes políticas portuguesas na Ásia. [Miguel de Arriaga segue, porém, sendo considerado uma das figuras fundamentais da história macaense, e sua memória é usualmente louvada nos textos de divulgação].
Por
essa razão, o primeiro livro que conhecemos de José de Aquino é Elogio do sr. Miguel de Arriaga Brum da
Silveira, publicado dois anos depois do falecimento do Ouvidor (1826). A
obra é um elogio rasgado à memória de Arriaga, ressaltando sua carreira, seus
feitos e planos. A admiração de Aquino por seu mentor intelectual ficava
explícita. A sinceridade da obra pode ser medida pelo fato que ele nada colhera
da herança política de Arriaga, que não designara sucessores; e ninguém se
apresentara, até então, como possuindo as mesmas qualidades de negociação e
liderança. No mais, esse sucinto texto nos orienta sobre várias ideias em curso
para restaurar o domínio português na Ásia.
José
de Aquino se afinava com a permanência do império, mesmo que ressaltasse sua
origem brasileira. Talvez, em sua visão das coisas, o mundo luso-afro-asiático
abria possibilidades amplas e enriquecedoras, ao qual seu país de origem dava
as costas com a independência. Aquino não se tornara macaense, não se sentia
português e não deixara de ser brasileiro: queria apenas, provavelmente, que o
Brasil continuasse a ser parte do império.
Assim,
o livro que ele publicaria depois, Memoria
sobre Macau, concretizaria o projeto de construir uma narrativa sobre a
história da cidade e sua importância geopolítica. Publicado em 1828, a obra era
pequena e sucinta, trazendo dados geográficos, econômicos e culturais, além de
uma breve dissertação sobre as ideias de Miguel de Arriaga sobre as relações
entre Macau, Timor e Goa. Embora seguisse um roteiro tradicional, Memoria sobre Macau era,
definitivamente, o primeiro livro de história sobre a cidade, tornando-se um
marco para a compreensão da história luso-oriental.
No
entanto, desde aquela época – infelizmente – era comum conhecer e dar mais
valor ao que era publicado em outros países do que na própria terra natal. Por
alguma razão desconhecida, o trabalho original de José de Aquino passou
despercebido. Não temos ideia do quanto a obra circulou, e se o fim do ‘período
Arriaga’ determinou a obsolescência ou o ostracismo do livro. Seja como for, em
1836, o autor sueco Anders Ljungstedt publicou A Historical sketch of the Portuguese settlements in China and of Roman
Catholic Churches and Missions in China, obra que seria considerada por
anos como a ‘primeira história oficial de Macau’. José de Aquino não
testemunhou essa incomensurável injustiça; em torno de 1835, ele já se mudara
para Portugal e exercia a prefeitura em Coimbra, quando veio a falecer.
Ivo
Carneiro de Sousa (2007) analisou a obra de José de Aquino, mostrando como o
apoio do governo português na tradução e divulgação do livro de Ljungstedt
contribuiu sensivelmente para eclipsar a originalidade de Memoria sobre Macau. O texto do autor sueco estabelecia uma
narrativa que valorizava a autonomia portuguesa frente aos chineses; o livro de
José de Aquino era objetivo, resumido, direto e não necessariamente elegante.
Havia pontos sensíveis no texto; as críticas ao abandono das colônias
asiáticas, a reestruturação da exploração das mesmas, o comércio de ópio como
uma opção lucrativa, entre outras coisas. Nada disso chocava seus
contemporâneos no século XIX, mas o livro não se circunscrevia a ser um
trabalho de história, sugerindo teorias e soluções, o que pode ter
diversificado e/ou limitado o interesse dos leitores pelo mesmo.
Com
o tempo, como aconteceu com Lucas José Alvarenga, José de Aquino acabou
recebendo o devido reconhecimento sobre o ineditismo de seu livro, angariando a
simpatia do público e o interesse dos pesquisadores. E mais uma vez, um
brasileiro legava uma importante contribuição para a história de Macau,
mostrando que desde aquela época Brasil e China estavam bem mais próximos do
que muitas vezes sabemos.
Referências
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Doré; Antônio Cesar de Almeida Santos. (Org.). Temas setecentistas: governos e populações no império português. Curitiba:
UFPR, 2009, p. 135-142.
Almeida,
Anita Correia de Lima. Um ilustrado mineiro no governo de Macau (texto
completo). In: VII Jornada Setecentista,
2007, Curitiba. Anais da VII Jornada Setecentista. Curitiba: UFPR, 2007.
Alvarenga,
Lucas José de. Artigo addicional à
memória. Rio de Janeiro: Typographia do diário, 1828b.
Alvarenga,
Lucas José de. Memória sobre a expedição
do governo de Macao em 1809, e 1810 em soccorro ao império da china contra os
insurgentes piratas chinezes, principiada, e concluída em seiz mezes pelo
governador, e capitão geral daquella cidade, Lucas José d’Alvarenga,
authenticada com documentos justificativos. Rio de Janeiro: Typographia
Imperial, e Nacional, 1828a.
Alvarenga,
Lucas José de. Observaçoens à memória de
Lucas Jose d’alvarenga com as suas notas e hum resumo da sua vida. Rio de
Janeiro: Typographia do Diario, 1830a.
Alvarenga,
Lucas José de. Poezias. Rio de Janeiro: Ogier, 1830b.
Andrade,
José Ignácio. Memória dos feitos
macaenses contra os piratas da China e da entrada violenta dos ingleses na
cidade de Macao, Lisboa: Typographia Lisbonense, 1835 (2ª Ed.)
Antony,
Philomena Sequeira. Relações intracoloniais: Goa-Bahia, 1675-1825. Brasília:
Fundação Alexandre de Gusmão, 2013.
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Charles. António de Albuquerque Coelho, esboço biográfico, 1939, Macau: Tip. da
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Freitas,
José de Aquino Guimarães e. Elogio do sr.
Miguel de Arriaga Brum da Silveira. Lisboa: Imp. de António Rodrigues
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Freyre, Gilberto. China
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luso-brasileira. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2003.
Gomes,
Luiz Gonzaga. Algumas noções sobre a história de Macau (1976). Revista de Cultura, n.23, 1995, p.123-131
Jornada, que Antonio de Albuquerque Coelho,
Governador e Capitão General da Cidade do Nome de Deos de Macao na China, fez
de Goa até chegar à dita cidade no anno de 1718: dividida em duas partes /
escrita pelo Capitão João Tavares de Vellez Guerreiro... Lisboa Occidental
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Leite, José Roberto Teixeira. A China no Brasil: influências,
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Campinas, Editora da Unicamp, 1999.
Ljungstedt, Anders. A Historical sketch of the Portuguese settlements in China and of Roman
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Moura,
Carlos Francisco. Relações entre Macau e o Brasil no século XIX, Revista de Cultura, N.22 (II série)
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Teixeira, Pe. Manuel. Miguel de Arriaga. Macau: Imprensa Nacional, 1996.
Primeiramente bom dia, boa tarde e boa noite professor Dr. André Bueno!
ResponderExcluirEstou encantada com a riqueza das informações históricas trazidas na produção desse texto. Tem sido graças a existência do Simpósio Oriente que tenho conhecido sobre a cultura oriental no Brasil. Pois, na sua produção, vi, que a relação do Brasil e Macau no Império Português por meio dos três brasileiros, Antônio Coelho, Lucas Alvarenga e José Freitas, é de suma importância para a ampliação do conhecimento da história Oriental em nosso país.
Diante disso, podemos dizer que os três personagens expandiram de certa forma as riquezas da Colônia portuguesa em Macau?
Atenciosamente,
Maria Josilda Ferreira da Silva
Cara Maria, obrigado pela pergunta! Sim, com certeza eles atuaram no projeto de integrar as partes do império português como plataformas de exportação. Com graus de sucesso variados, eram brasileiros que ajudaram o mundo a conhecer melhor Macau e a China. =)
ResponderExcluirMuito grata pelo retorno professor Dr. André Bueno.
ExcluirUm grande e fraterno abraço,
Maria Josilda Ferreira da Silva
Olá, professor André Bueno. Parabéns pelo seu texto! Muito interessante conhecer essas histórias!
ResponderExcluirO caso de Antônio Coelho me leva a refletir sobre como esse “mulato” conseguiu ascender a posições tão relevantes no contexto ultramarino português. Considerando o cenário social da época, tal trajetória era incomum para alguém nascido em suas circunstâncias, algo que seu texto enfatiza. Isso me faz questionar se algum evento específico da época, talvez uma instabilidade política, teria levado Portugal a optar por não colocar um português de origem como administrador em posições estratégicas nesses importantes entrepostos comerciais.
Já a trajetória de Lucas José suscita reflexões sobre as fontes que utilizamos como historiadores. Percebe-se claramente uma tentativa de construção de narrativas de ambos os lados envolvidos. Isso nos desafia a compreender como essas construções moldam nosso entendimento histórico. Afinal, os interesses por trás dos registros escritos podem distorcer significativamente os sentidos atribuídos aos acontecimentos. Por isso, entendo como essencial que nosso trabalho seja crítico, fundamentado em metodologias, conceitos, cruzamento de fontes, análise de cultura material e outros recursos que ampliem e aprofundem a interpretação.
Por fim, um elemento marcante destacado por essas histórias é a mobilidade geográfica desses personagens. O senso comum frequentemente pressupõe que essas figuras possuíssem pouca liberdade ou capacidade de transitar entre diferentes territórios globais. No entanto, essas trajetórias trazidas em seu texto demonstram o contrário, evidenciando uma complexidade muito grande e ampliando a compreensão sobre o mundo do período.
Mais uma vez, parabéns! Excelente trabalho.
Abraços!
Ricardo Russo Carvalho
Caro Ricardo, obrigado pelo comentário!
ExcluirPois... apesar do racismo e do preconceito vigentes, o império português tinha que conceder espaço para mestiçagem, para hibridização, para que fosse possível enraizar o processo de domínio. Mesmo assim, isso era uma via de mão dupla; que em muito contribuiu para elevar as tradições locais e criar culturas mistas e ricas. A questão sempre, claro, era da percepção que o individuo tinha do seu status: até 1822, se sabiam brasileiros de nascença, mas portugueses de pertença? creio que só José de Aquino conseguiu escolher por isso... =)
Saudações!