“SEJA
VOCÊ MESMO, SEJA ÚNICO, SEJA MONSTRO!”: a representação orientalista de
Jinafire Long na primeira geração de Monster High
Monster
High é uma franquia criada pela Mattel
em 2010, focada em bonecas e outros produtos inspirados em personagens
adolescentes que, no contexto da narrativa, são filhos e filhas de monstros
clássicos do cinema e da literatura, como Drácula, Frankenstein, a Múmia, entre
outros. A ideia da franquia era tentar trazer personagens que celebrassem a
diversidade e a aceitação das diferenças, abordando temas como amizade,
identidade, e confiança em si mesmo.
A linha foi criada por Garrett
Sander e lançada inicialmente como uma série de bonecas e uma websérie de
animação, acompanhada de livros escritos por Lisi Harrison, ambos com o intuito
de provocar a popularização das bonecas no seu público alvo. A proposta
original era explorar um universo onde monstros e humanos coexistem, mostrando
adolescentes em um ambiente escolar que vivem dilemas comuns a essa idade, mas
com uma estética gótica e elementos leves de terror.
Além das cinco personagens
principais, o universo inclui muitos outros personagens inspirados em diversas
mitologias e lendas, abrangendo um elenco de mais de cento e quarenta e cinco
personagens, divididos entre os pais das criaturas, tutores e alunos da escola
(SILVA, 2018, p.42).
Além das bonecas e webséries, Monster High se expandiu para filmes,
jogos, roupas, e outros produtos de merchandising. A Mattel lançou vários
filmes animados diretamente em DVD e serviços de streaming.
Em 2016, a Mattel fez um reboot da
série, reformulando o visual das personagens e ajustando o tom das histórias
para um público mais jovem. No entanto, essa mudança teve reações mistas dos
fãs, e as vendas caíram, o que levou a franquia a ficar em hiato por um tempo.
Em 2022, Monster High retornou com um
novo reboot, incluindo uma série live-action e um filme produzido pela
Nickelodeon, trazendo os personagens clássicos com novas interpretações e
mantendo o foco na diversidade.
Neste trabalho, utilizaremos a
primeira geração de bonecas e animação, entendendo que foi essa etapa do
produto cultural que construiu e apresentou o mundo e os personagens da série.
Monster
High é de extrema importância no
movimento de representação feminina dentro de desenhos voltados para crianças,
já que, segundo Juliana do Canto e Mercês Ghazzi (2016), a animação representa
uma mudança na visão da feminilidade, refletindo figuras femininas diversas,
com voz própria e igualdade em relação aos homens em temas como identidade,
profissão e relacionamentos. Suas personagens oferecem novos modelos de
identificação feminina sem perder a essência da feminilidade, acompanhando
demandas sociais por diversidade. Porém, a franquia ainda reforça outros
estereótipos como o formato do corpo, dado que, todas as personagens são muito
magras.
A representação de outras etnias e
culturas também é explorada nos produtos produzidos. Contudo, ao tentar
implementar elementos culturais não ocidentais ou culturalmente brancos, os
personagens se tornaram estereótipos ocidentais de sua cultura, como a Jinafire
Long.
Segundo o site Monster High Wiki, ela foi introduzida em 2012, sendo uma aluna
transferida para Monster High e filha
de um dragão chinês. Ela possui escamas douradas, cabelo verde com listras
pretas e olhos jade. Seu visual inclui um vestido tradicional manchú, ou
Chángshān 長衫,
roxo com padrões de escamas e saltos vermelhos com solas douradas, inspirados
no design de dragões.
Segundo sua própria descrição:
Nascida e criada em Fanghai, China,
com seus sete irmãos mais velhos, Jinafire escolheu viver por conta própria
para variar. Ela partiu sozinha depois de fazer amizade com as colegas
designers de moda Clawdeen Wolf e Skelita Calaveras em Scaris e viajou para os
Boonighted States de Scaremerica para compartilhar aulas com as duas. (Monster
High Wiki)
A personagem seria a primeira de um
mito não ocidental a ser inserida tanto na série de bonecas quanto na série
animada. Porém, como dito anteriormente, a figura tem uma representação bem
desrespeitosa em ambas.
Em “Orientalismo”, Edward Said
(2007) nos leva a refletir sobre como o “outro” oriental é representado por uma
perspectiva ocidental específica. Seu objetivo não é confrontar essas imagens,
mas entender por que enxergamos o Oriente da forma que enxergamos, utilizando
uma análise da literatura dos “cânones ocidentais” que foram historicamente
vistos como verdadeiros portadores do conhecimento humano. Essa visão constrói
o Oriente como o oposto do Ocidente, criando uma dicotomia: de um lado, o
Ocidente com valores “universais”; de outro, o Oriente, que representa tudo o
que o Ocidente não é.
Embora Said foque na representação
do Oriente Médio, sua teoria se aplica amplamente, revelando uma estrutura
institucional de saber sobre o “outro” que persiste até hoje. Essa abordagem
teve origem na exploração da França e da Grã-Bretanha no Oriente, justificando
o imperialismo nos séculos XIX e XX. Com a mudança nos fluxos de poder global,
esse “lugar de fala” passou da Europa para os Estados Unidos, que reproduzem a
lógica orientalista com novos focos, como a China (ARAÚJO, 2022, p.55).
Said (2007) identifica o
orientalismo em três níveis: como campo acadêmico que estuda o Oriente; como
pensamento que separa Oriente e Ocidente em categorias opostas, como
"bárbaro" versus "civilizado"; e como instituição que
perpetua visões estereotipadas sobre o Oriente. Esse sistema molda discursos
que apresentam o Oriente como o oposto do Ocidente.
Desta forma, o orientalismo não é
apenas uma “falsidade”, mas um sistema de poder, fundamentado em laços
políticos e socioeconômicos. Nos Estados Unidos, a China se tornou o novo foco
orientalista, especialmente com o crescimento econômico chinês, que desafia a
hegemonia americana. A "ameaça chinesa" é retratada como um agente
disruptivo para o sistema internacional, reforçando o senso de superioridade
ocidental (ARAÚJO, 2022, p.56)
Assim, Vukovich (2012) sugere que o
novo orientalismo, voltado para a China, representa um projeto imperialista
contemporâneo, em que o Ocidente espera ver a China "ocidentalizada".
Essa visão permite que o Ocidente continue utilizando a sinologia não só para
obter conhecimento, mas também para exercer controle econômico e político.
A construção da China como o
“outro”, justifica o monitoramento e policiamento que os Estados Unidos têm com
o país oriental para garantir que ela nunca os ultrapasse no cenário mundial.
Desta maneira, ao utilizar a ficção audiovisual, que tem o poder de influenciar
a percepção política dos indivíduos (ARAÚJO, 2022, p.52) os povos oriundos da
China, foram retratados como bárbaros, brutais, corruptos e pouco civilizados.
Segundo a autora (2022), os personagens eram construídos a partir dos seus
traços étnicos, os quais foram vinculados a outras populações amarelas
diaspóricas dentro dos EUA, sendo vistas como espertas, ardilosas, insensíveis
e arrogantes.
As mulheres entram nessa construção,
sendo colocadas como perigosas, sensuais, amorais e que despertam o desejo
sexual do homem branco (Idem, p.62). As dragon
ladies, como ficaram conhecidas, reforçam a noção de mulheres amarelas como
sensuais e eróticas, objetificando os seus corpos e as transformando em meros
objetos de desejo. Elas podem até ser vistas como personagens fortes, mas sua
função narrativa sempre é ancorada ao personagem ocidental branco.
O estereótipo do asiático calado é
um exemplo de como certos traços culturais são simplificados e generalizados de
maneira que distorce e limita a compreensão das identidades asiáticas. Esse
estereótipo retrata pessoas de origem asiática como passivas, introspectivas ou
excessivamente reservadas, o que reduz a personalidade complexa de um indivíduo
a uma característica única e unidimensional.
Esse estereótipo está enraizado em
uma visão ocidental que percebe a expressão emocional e a assertividade como
sinais de autenticidade, enquanto interpreta a reserva ou o silêncio como uma
ausência de expressão (ARAÚJO, 2022, p.67). Em muitas culturas asiáticas, no
entanto, o respeito, a harmonia e a autocontenção são valores importantes, o
que leva a um comportamento mais moderado ou reservado, especialmente em situações
sociais. Jinafire se encaixa nesse estereótipo, já que “ela é retratada nos
webisódios e no especial de TV Scaris: A Cidade Sem Luz, como inteligente,
paciente quando não é diretamente afetada pela situação e focada em seu
trabalho.” (WIKI MONSTER HIGH).
Na mídia ocidental, segundo a autora
(ARAÚJO, 2022),
essa representação reforça o conceito de "minoria modelo", onde
asiáticos são vistos como quietos, disciplinados e obedientes, atributos que os
tornam "invisíveis" ou "não problemáticos".
Desta forma, quando a imagem de uma
China assustadora se torna economicamente inviável, dado que o mercado chines
se torna um grande alvo dessas empresas de audiovisual, a representação passa
para um plano imaginário: misticismo, guerreiros, kung fu e tradições antigas.
Esse imaginário, moldado por valores estadunidenses, usa figuras e cenários
chineses, reforçando o orientalismo ao privar a China de autonomia para se
representar. Assim, a China é reduzida a um cenário decorativo de paisagens
exóticas e cultura milenar, servindo a histórias que sustentam valores
ocidentais.
Conseguimos ver essa representação
mística em Jinafire Long. Embora a série seja voltada para o misticismo, este é
retratado de forma errônea, cometendo erros de representação da criatura que foi
utilizada.
Os dragões asiáticos, especialmente
os das tradições chinesa, japonesa e coreana, são muito diferentes dos dragões
ocidentais. Enquanto os dragões europeus geralmente simbolizam destruição e
perigo, os dragões asiáticos são representações de força, sabedoria,
prosperidade e proteção. Eles possuem corpos longos e serpentinos, com quatro
patas, sem asas, e são uma fusão de diferentes animais: têm corpo de serpente,
escamas de peixe, garras de águia, chifres de cervo e longos bigodes.
Na tradição chinesa, os dragões
estão fortemente ligados à água e aos fenômenos naturais como tempestades, rios
e mares, sendo vistos como controladores da chuva e, portanto, associados à
fertilidade e ao crescimento agrícola. Enquanto Jinafire, como seu próprio nome
diz, é ligada ao fogo.
Em seu perfil no site Monster High Wiki, ela é descrita como
filha do dragão chines. Por sua pele ser amarela/dourada, ela poderia ser filha
do dragão amarelo, ou Huáng Lóng
Porém, o site Wiki Monster High, da uma “explicação” para a cor de sua pele:
Isso evidencia que nem mesmo uma das
figuras mais importantes do folclore chinês foi integrada na construção da
origem da personagem, o que revela uma carência de pesquisa mais aprofundada e
específica sobre o contexto cultural do local que, em teoria, seria
homenageado.
Sua cor também é alvo de críticas
pela comunidade, embora haja a explicação como vimos anteriormente, em algumas
representações audiovisuais sua pele se torna amarela. A opção por retratar uma
personagem chinesa como "amarela" pode ter conotações raciais
questionáveis, dado que é um estereótipo muito trabalho dentro do mundo
cinematográfico e propagandista, reforçando a ligação e marginalização desses
grupos por essas representações.
Nas imagens abaixo, podemos ver as
representações dentro da animação.
Fonte:
https://i.pinimg.com/564x/df/13/0d/df130de3ed5c6e2983e7f09e5e414425.jpg
Como podemos ver, os estilos de
animação mudam, a animação em 3D mostra a personagem com sua pele dourada meio
amarelada, enquanto a 2D é claramente amarela.
Poderia ser apenas um erro na coloração devido a mudança de técnicas.
Porém, em outro episódio, onde Draculaura, uma das personagens principais, vai
fazer um intercâmbio no Japão, os personagens secundários que aparecem tem uma
coloração amarela em diferentes tons, demonstrado no exemplo abaixo:
Outra crítica dos consumidores
asiáticos da série, é a música de fundo que toca quando Jinafire entra em cena,
por ser uma personagem secundária ela aparece em alguns episódios, tornando-se
bem memorável aos telespectadores. É uma música instrumental calma, que podemos
associar com a cultura Leste Asiática. Importante ressaltar, que isso não
acontece apenas com ela, todas as personagens têm suas músicas de fundo, mas
apenas a de Jinafire é característica.
Desta forma, não apenas as
personagens apresentadas na foto, quanto Jinafire sofrem de algum tipo de má
interpretação dentro da série. Personagens como Abbey Bominable, uma yeti vinda da cordilheiras do himalaia
que possui um sotaque russo em sua dublagem e Isi Dawndancer, que é um espírito
de veado vinda de Boo Hexico, sendo considerada maior polêmica de Monster High, seu intuito era
representar os povos indígenas americanos, o que de fato ela fez, assimilando
diversas representações étnicas e culturais ameríndia em apenas uma boneca,
além de distorcer símbolos religiosos e divindades dessas culturas. Essas são
apenas algumas das problematizações da primeira geração de bonecas e animação
de Monster High.
Concluímos, portanto, que Monster High, ao longo de sua primeira
geração, embora tenha se proposto a celebrar a diversidade e promover a
aceitação das diferenças, acabou por reforçar estereótipos culturais e étnicos
em várias de suas representações. Personagens como Jinafire Long e outras, que
deveriam prestar uma homenagem à riqueza cultural de diferentes tradições,
frequentemente caíram em estereótipos simplistas ou incorretos. Isso evidencia
uma abordagem orientalista, onde culturas não ocidentais são reduzidas a
elementos exóticos ou decorativos que servem mais para reforçar a narrativa
ocidental do que para explorar as complexidades culturais desses povos.
Embora a franquia tenha alcançado um
impacto positivo ao oferecer novas figuras de identificação feminina e ao
abordar a diversidade de forma inovadora, falhou ao abordar culturas de fora do
ocidente com o cuidado e respeito necessários. Esses estereótipos acabam
reforçando visões limitantes, que transformam culturas inteiras em caricaturas
e privam esses grupos de uma voz autêntica.
Vale ressaltar, que a terceira
geração de Monster High vem
reescrevendo a história de diversos personagens e trazendo novos tipos de
representações. Seja com diferentes tipos de biotipos, ou com a adição de
personagens neurodivergentes, com deficiências físicas e mentais. A própria
Jinafire, que permaneceu com o mesmo nome dado a familiaridade do público, teve
todo seu design e história refeitos, representando com precisão e respeito a
mitologia chinesa.
Sua pele ganhou um tom azulado com
escamas douradas, enquanto seu cabelo é preto com mechas roxas e azuis na parte
de trás, enquanto suas roupas apenas remetem à cultura chinesa com estampas e
cores relacionadas. Seus poderes também mudaram, agora ligados à água, aludem a
sua verdadeira inspiração.
Além disso, outros tipos de inclusão
foram feitas fora das telas. Todos os personagens são interpretados por pessoas
de suas nacionalidades ou culturas específicas, como Bunny Earickson, que é a
primeira personagem de Monster High
com Síndrome de Down, sendo interpretada pela atriz Sofia Sanchez que também
tem a síndrome.
Com essas iniciativas, a marca Monster High, vem se aproximando do seu
intuito original, trazendo personagens que celebram a diversidade e a aceitação
das diferenças.
REFERÊNCIAS
Alice
Tigrinho é Graduanda em História pela Universidade Federal do Paraná.
Bibliografia
ARAÚJO,
Mayara. ORIENTALISMO NA INDÚSTRIA CULTURAL OCIDENTAL. Contemporanea: Revista de Comunicação e Cultura, v. 20, n. 3, 2022.
BROGLIO,
Ana Júlia; ECHEVERRE, Mariana Magalhães Camacho; BAILONI, Vitória Xavier.
Solis: o design digital em defesa da representatividade nos brinquedos. 2021.
CANTO,
Juliana Speguen do; GHAZZI, Mercês Sant’Anna. Monster High e o modelo de
feminilidade na atualidade. Psicologia:
Ciência e Profissão, v. 36, n. 3, p. 625-636, 2016.
PINTO,
Samayra da Silva. “Você pode ser tudo que quiser” x “Seja você mesmo, seja
único, seja monstro!”: as diferenças simbólicas entre as bonecas Barbie e
Monster High. 2018. 90 f. Monografia (Graduação em Design-Moda) - Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza, 2018.
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do
Ocidente. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
VUKOVICH, Daniel. China and Orientalism: Western knowledge
production and R.P.C. London: Routledge,
2012.
Sites
Jinafire Long. Wiki
Monster High. Disponível em: https://monsterhigh.fandom.com/pt-br/wiki/Jinafire_Long.
Jinafire Long. Monster
High Wiki. Disponível em: https://monster-high.fandom.com/pt-br/wiki/Jinafire_Long.
Significado de Dragão oriental. Significados. Disponível em: https://www.significados.com.br/dragao-oriental/#:~:text=O%20drag%C3%A3o%20oriental%20%C3%A9%20um,os%20rios%2C%20lagos%20e%20mares.
Oi, Alice! Parabéns pelo texto!
ResponderExcluirVocê pode citar um outro exemplo dessa representatividade mencionada no texto dentro da nova geração?
Oi, Maria! Obrigada pela pergunta!!
ResponderExcluirNessa última linha lançada pela Mattel, as principais mudanças nas representações de personagens em mídias e produtos, como animações e bonecas, destacaram avanços significativos, especialmente no aspecto corporal. Corpos reais passaram a ser incorporados, oferecendo uma diversidade maior e mais representativa de formas físicas. Além disso, as mudanças narrativas permitiram explorar novas origens e representações culturais. Um exemplo marcante é o caso de Lagoona Blue, que deixou de ser retratada como um monstro da barreira de corais da Austrália e passou a representar os povos indígenas da América Central.
Essas transformações também incluíram melhorias significativas na representação racial, com personagens sendo apresentados de maneira menos estereotipada e mais fiel às suas realidades culturais. Relacionamentos LGBTQIAPN+ ganharam mais espaço, com diversas representações no elenco principal e em personagens secundários, ampliando a visibilidade e a inclusão. Além disso, houve um esforço para incluir personagens com deficiências físicas e mentais, promovendo uma visão mais ampla e acolhedora da diversidade humana.
Essas são as principais representações que acabaram marcando essa nova geração. Recebendo muitos elogios da opinião pública. Essas mudanças refletem um compromisso com a inclusão e a representatividade, proporcionando narrativas mais ricas e capazes de dialogar com públicos variados, que era o objetivo original da série.
Alice Mikos Tigrinho.