Ricardo Russo Carvalho

 

A VIDA DE MARINA/MARINO: A GÊNESE DE UM PROJETO DE PESQUISA SOBRE VIRIARCADO, PODER PASTORAL E GÊNERO A PARTIR DE HAGIOGRAFIAS DO ORIENTE PRÓXIMO DURANTE A PRIMEIRA IDADE MÉDIA


Introdução

Esta comunicação tem como objetivo apresentar o meu projeto de iniciação científica, iniciado recentemente, cujo objetivo inicial é analisar a hagiografia Vida de Marina/Marino sob a perspectiva de gênero. Essa pesquisa está vinculada a um projeto coletivo denominado Viriarcado e Poder Pastoral a partir de hagiografias de santas durante o contexto de ascensão do Episcopado Monárquico na Primeira Idade Média Oriental (séc. IV-VI). Esse projeto pretende examinar oito hagiografias escritas entre os séculos IV e VI, no Império Bizantino. Essas obras narram vidas de santas e foram redigidas por homens ligados à hierarquia eclesiástica. Utilizaremos diferentes conceitos, como o de poder pastoral e o de viriarcado, com o intuito de investigar a relação dessas vidas de santas com o fortalecimento do episcopado e a formação de uma inteligibilidade de gênero do período. A proposta é analisar como esses textos refletem e ajudam a consolidar tanto o conceito de gênero quanto o poder dos bispos, dentro de uma perspectiva marcada pela teoria de gênero. Além disso, faremos uma breve apresentação da Vida de Marina.

 

O que são hagiografias?

De acordo com Andréia Frazão, o vocábulo hagiografia vem do grego, hagio, que significa santo, e grafia que significa escrita. Ou seja, o termo é utilizado desde o século XVII para se referir não apenas ao estudo crítico dos diferentes aspectos ligados ao culto aos santos, mas também aos textos que têm como temática central os próprios cultuados. Quanto à tipologia desses escritos as possibilidades são plurais, pois a narrativa hagiográfica pode, por exemplo, ser apresentada como uma paixão; um tratado de milagres; relatos de viagens espirituais; ou uma vita, narrativa sobre a vida do hagiografado em que são narradas suas virtudes a servirem de exempla (SILVA, 2008, p. 7).

 

Ronaldo Amaral (2013) argumenta que as hagiografias cristãs são um gênero literário que, por seus atributos imanentes, caracteriza-se pelos estereótipos, modelos e arquétipos de santidade em detrimento do laico, do secular e da exatidão do que entendemos hodiernamente como tempo e espaço. As hagiografias, para Amaral, sublinham os aspectos heróicos, relativos à fé cristã, das personagens ao passo que às demais ações são minoradas e escamoteadas.

 

Conceitos

Viriarcado: Por que não “patriarcado”?

Que a sociedade medieval dos séculos IV, V e VI é patriarcal, nós já sabemos, afinal, se organiza em torno do poder do pater, porém, assim como Olívia Gazalé, entendemos que a ideia de virilidade é importante nesse contexto. É necessário ser homem para ser um pater, mas ainda assim, é possível um pater ser considerado destituído de virilidade em algum momento. Enquanto mulheres nunca puderam ser um pater, algumas delas puderam acessar a virilidade de algum modo. Sendo assim, entendemos que a proposta de Gazalé, em sua obra O Mito da Virilidade: uma Armadilha para Ambos os Sexos, nos permite entender o exercício da virilidade como uma tecnologia do dispositivo de gênero na Primeira Idade Média.

Gazalé sublinha que: “A dificuldade vem do fato de que a virilidade é dada como um fato da natureza a-histórico, embora tenha tudo de mito, isto é, de uma construção cultural imaginária” (GAZALÉ, 2017, p. 20). Sendo assim, cabem os seguintes questionamentos: “Como se constituiu a “masculinidade hegemônica” através dos tempos? Que papel as religiões, os poderes públicos e as ciências desempenharam na construção do sistema viriarcal? Dado o estreito entrelaçamento de todos os seus componentes, é um pouco artificial isolá-los para analisar separadamente. Mas o corte é essencial quando se procura apreender um fenômeno tão vasto quanto as fontes históricas da dominância masculina” (GAZALÉ, 2017, p. 61).

 

Abordaremos a ideia de viriarcado como um sistema, ou seja, um dispositivo complexo que pressupõe diversos elementos entrelaçados e interdependentes, mas que forma uma outra coisa independente de suas partes (GAZALÉ, 2017, p. 59). E de que forma se dá essa complexidade: “O sistema viriarcal pretende ser, como o sistema solar, o reflexo da ordem natural, mas ele é inteiramente construido. Ele é baseado em um conjunto de postulados, de crenças e de princípios, é construido sob esquemas de elaborações conceituais aprendidas, de normas, de leis, de mitos e de símbolos e se perpetua através de práticas sociais, de histórias, de tradições, de costumes, de ritos, de mentalidades e de obras. Ele, portanto, não tem nada de natural. Se a palavra não fosse horrivel, seria um sistema teológico político-cultural. Um dispositivo perfeitamente artificial, inteiramente ordenado a uma hipótese indiscutível: a superioridade do princípio masculino sobre o princípio feminino” (GAZALÉ, 2017, p. 59).

 

Episcopado Monárquico e Poder Pastoral

Segundo José Fernández Ubina, nós não sabemos exatamente como se conduziu a organização do Episcopado Monárquico (UBINA, 2016, p. 40-41). Contudo, sabemos que o papel dos bispos era, inicialmente, majoritariamente administrativo, ligado, sobretudo, ao gerenciamento dos fundos destinados à manutenção da comunidade. Tal atividade muito provavelmente recebia o apoio de outros integrantes da elite eclesiástica, tais como, diáconos e presbíteros. (RAPP, 2000, p. 380; SILVA, 2019, p. 122). É somente com o desenvolvimento do que a historiografia chama de episcopado monárquico que o bispo passa a ocupar um espaço de destaque. Entretanto, o estabelecimento desse monoepiscopado é algo muito complexo e nebuloso na documentação. José Ubina defende que o movimento de consolidação de poder dos bispos foi essencial para o fortalecimento tanto das igrejas locais como para o conjunto delas, numa lógica universalista. (UBINA, 2016, p.46)

 

Já o poder pastoral, é definido por Michel Foucault como:

“A existência dentro da sociedade de uma categoria de indivíduos totalmente específicos e singulares, que não se definiam inteiramente por seu status, sua profissão nem por sua qualificação individual, intelectual ou moral, mas indivíduos que desempenhavam, na sociedade cristã, o papel de condutores, de pastores, em relação aos outros indivíduos que são como suas ovelhas ou o seu rebanho. Creio que a introdução deste tipo de poder, desse tipo de dependência, desse tipo de dominação no interior da sociedade romana, da sociedade antiga, foi um fenômeno muito importante” (FOUCAULT, 2014f, p. 64).

 

Objetivos Gerais e Específicos do Projeto

Nossos objetivos gerais são:

Compreender o processo histórico da santidade feminina na Primeira Idade Média Oriental à partir das contribuições dos Estudos de Gênero e entender o processo histórico de afirmação do poder público dos bispos na Primeira Idade Média.

 

Nossos objetivos específicos são:

Analisar a vida de Marina/Marino e investigar aspectos de inteligibilidade de gênero e associações a virilidade; Verificar e salientar as referências ao exercício de poder das personagens pertencentes à elite eclesiástica, especialmente dos bispos, nas narrativas hagiográficas analisadas e relacionar as referências ao exercício de poder formal dos homens à inteligibilidade de gênero proposta para as personagens hagiografadas nos textos analisados.

 

Vida de Marina/Marino:

Com isso, vamos para a primeira vida de santa que abordaremos. Uma datada entre o início do século VI e meados do VII, que, embora suas origens geográficas sejam envoltas em lenda, acredita-se que ela tenha vivido onde hoje chamamos de Síria (TALBOT, 1996, p. 1).

Essa santa é classificada como uma das monjas travestidas, ou seja, aquelas que se vestem de monges para esconderem sua real identidade, algo muito popular nas hagiografias bizantinas entre os séculos V e IX (TALBOT, 1996, p. 1). Nos próximos passos de nossa pesquisa, iremos refletir sobre a nomenclatura mais adequada para nos referirmos a esse fenômeno histórico das santas que Talbot descreve como “travestidas”.

 

Sua popularidade não se limitou de forma alguma ao mundo de língua grega, como nos conta Alice-Mary Talbot: “A história de Marina/Marino apareceu em versões latinas, siríacas, cópticas, etíopes, armênias, árabes e, muito mais tarde, em alemão medieval e francês. Assim, em contraste com muitas outras santas que tinham apenas cultos localizados, Marina, foi venerada em grande parte do mundo medieval, tanto no Oriente quanto no Ocidente” (TALBOT, 1996, p. 1, tradução nossa).

 

Após a morte de sua mãe enquanto ainda era muito jovem, Marina é criada por seu pai, sob muita devoção e ensinamentos cristãos. Ao crescer, seu pai resolve abandonar tudo e adotar a vida monástica. Decidida em acompanhar seu pai, Marina tenta convencê-lo a levá-la consigo ao mosteiro. Em resposta a esse pedido, o pai diz “Filha, o que devo fazer com você? Você é uma mulher, e eu desejo entrar em um mosteiro. Como, então, você poderá permanecer comigo? Pois é através dos membros do seu sexo que o diabo trava guerra contra os servos de Deus.” (TALBOT, 1996, p. 7, tradução nossa). Em resposta, a filha profere “Não é assim, meu senhor, pois não entrarei <no mosteiro> como você diz, mas primeiro cortarei o cabelo da minha cabeça, vestirei-me como um homem e então entrarei no mosteiro com você.” (TALBOT, 1996, p. 7, tradução nossa). Assim, Marina corta seus cabelos bem curtos e, vestida como homem e renomeada Marino, seguiu seu pai ao mosteiro, no qual viveu muitos anos como monge sem ser descoberta, sendo inclusive elogiada por sua devoção e ascese. (TALBOT, 1996, p. 8)

 

Permanecendo no mosteiro após a morte de seu pai, Marino foi eventualmente acusado de estuprar uma menina, filha do dono de uma estalagem, na qual os monges se hospedavam ao saírem em missões. Na verdade, a menina em questão teria sido estuprada por um soldado, e o mesmo teria dito para essa menina que ela deveria acusar o “jovem monge” caso fosse descoberto que ela havia sido “deflorada”. (TALBOT, 1996, p. 8)

 

Acusado de ser o pai de uma criança, Marino não nega o “crime”, aceita voluntariamente o castigo e é expulso do mosteiro. O monge assume o bebê, e o cria do lado de fora do mosteiro, vivendo na rua, passando frio e calor (TALBOT, 1996, p. 9). As pessoas que passavam por Marino perguntavam o motivo dele estar sentado do lado de fora, ele respondia “Porque eu forniquei e fui expulso do mosteiro” (TALBOT, 1996, p. 9).

 

Até que três anos depois, é readmitido ao mosteiro após inúmeros pedidos de seus colegas monges ao abade. Esses argumentavam que Marino já havia sofrido o suficiente, além de ter confessado seus pecados. Ao retornar ao mosteiro, os castigos não cessam, Marino foi designado as funções mais baixas como forma de castigo. É descrito que ele as cumpriu com louvor, enquanto a criança o seguia chorando e pedindo alimento.

 

A criança então cresceu e também se tornou monge. Após um longo período de tempo, Marino não foi visto por três dias cantando no coro e o abade decide mandar olharem seus aposentos e, para a surpresa de seus colegas, encontram-no morto. Ao limparem seu corpo em preparação para o enterro, verificam seu sexo, e com ele sua inocência das acusações de paternidade. Os monges teriam pedido perdão à Deus e naquele momento, tanto o abade quanto os colegas reconheceram sua santidade ao ter suportado tanto sofrimento sem revelar sua verdadeira identidade.

 

Após seu enterro em um caixão abençoado, em meio a cantos e hinos, aparece a filha do dono da estalagem, mãe da criança criada por Marino. Ela é descrita como “possuída por um demônio” (TALBOT, 1996, p. 12, tradução nossa), mas confessa que foi seduzida por um soldado. Porém a mulher é prontamente curada pela tumba sagrada de Marina, e todos glorificam.

A vida de Marina termina com a seguinte passagem “Vamos então, amados, zelosamente emular a abençoada Marina e sua paciente perseverança, para que no dia do julgamento possamos encontrar misericórdia diante de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem pertencem a glória e o domínio pelos tempos dos tempos. Amém.” (TALBOT, 1996, p. 12, tradução nossa). Essa passagem final reforça o caráter prescritivo das hagiografias.

 

Em nossa pesquisa, utilizamos uma versão da Vida de Marina/Marino traduzida do grego para o inglês, presente no livro Holy Women of Byzantium: Ten Saints’ Lives in English Translation, editado por Mary-Alice Talbot e lançado no ano de 1996. Talbot defende que a versão aqui apresentada é mais próxima da hagiografia original do século VI ou VII, já que a mesma sofreu consideráveis mudanças ao longo do tempo devido a transmissão oral. A que nós utilizamos, chamada também de vita antiqua, está preservada em três manuscritos do Monte Athos, datados do século X (TALBOT, 1996, p. 2)

 

Durante a Idade Média, escritores monásticos estariam fascinados por histórias de travestismo sagrado, e, apesar da proibição (TALBOT, 1996, p. 2), mais de uma dúzia de diferentes vitae foram compostas sobre esse tema, que parece ter se originado nos Atos de Santa Tecla, do século II.

 

 

Referências 

Ricardo Russo Carvalho é graduando em História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde integra o Programa de Estudos Medievais (PEM/UERJ). É bolsista de Iniciação Científica (PIBIC/UERJ) sob orientação do Prof. Dr. Wendell dos Reis Veloso. Ricardo também é membro do Grupo de Estudos Sobre Hagiografia e Santidade (AGIOS/UFF).

Documentação:

TALBOT, Alice-Mary (Ed.). Holy Women of Byzantium: Ten Saints’ Lives in English Translation. Washington, DC: Dumbarton Oaks, Trustees for Harvard University, 1996.

 

Bibliografia:

AMARAL, Ronaldo. Santos Imaginários, santos reais: a literatura hagiográfica como

fonte histórica. São Paulo: Intermeios, 2013.

FOUCAULT, Michel. Do Governo dos Vivos: Curso no Collège de France. (1979-

1980). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.

GAZALÉ, Olivia. Le Mythe de la Virilité: um Piège pour les Deux Sexes. Paris: Éditions Robert Laffont, 2017.

RAPP, Claudia. The elite status of bishops in Late Antiquity in ecclesiastical, spiritual, and social contexts. Arethusa. The Johns Hopkins University Press, v. 33, n. 3, p. 379-399, 2000.

SILVA, Andreia, C. L. F. Introdução. In:____. Hagiografia e História. Rio de Janeiro: HP Comunicação Editora, 2008. p. 7-15.

SILVA, Paulo Duarte. Bispos em Ação: A Ascenção do Episcopado no Cristianismo Tardo Antigo (Séculos III-VI). In: e, Wendell dos Reis; BOENAVIDES, D. M. (Orgs.). Religiosidade, Poder e Sociedade no Medievo: Discussões Historiográficas. 1. ed. Porto Alegre: Polifonia, 2019, p. 111-128.

UBINA, José Fernández. Origen y Consolidación del Episcopado Monárquico. In: ACERBI, Silvia; MARCOS, Mar; TORRES, Juana. El Obispo en la Antiguidad Tardía: Homenaje A Ramón Teja. Madrid: Editorial Trotta, 2016, p. 37-51.

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