A VIDA DE MARINA/MARINO: A GÊNESE DE UM PROJETO DE PESQUISA
SOBRE VIRIARCADO, PODER PASTORAL E GÊNERO A PARTIR DE HAGIOGRAFIAS DO ORIENTE
PRÓXIMO DURANTE A PRIMEIRA IDADE MÉDIA
Introdução
Esta
comunicação tem como objetivo apresentar o meu projeto de iniciação científica,
iniciado recentemente, cujo objetivo inicial é analisar a hagiografia Vida de
Marina/Marino sob a perspectiva de gênero. Essa pesquisa está vinculada a um
projeto coletivo denominado Viriarcado e
Poder Pastoral a partir de hagiografias de santas durante o contexto de
ascensão do Episcopado Monárquico na Primeira Idade Média Oriental (séc.
IV-VI). Esse projeto pretende examinar oito hagiografias escritas entre os
séculos IV e VI, no Império
Bizantino. Essas obras narram vidas de santas e foram redigidas por homens ligados
à hierarquia eclesiástica. Utilizaremos diferentes conceitos, como o de poder
pastoral e o de viriarcado, com o intuito de investigar a relação dessas vidas
de santas com o fortalecimento do episcopado e a formação de uma
inteligibilidade de gênero do período. A proposta é analisar como esses textos
refletem e ajudam a consolidar tanto o conceito de gênero quanto o poder dos
bispos, dentro de uma perspectiva marcada pela teoria de gênero. Além disso,
faremos uma breve apresentação da Vida de Marina.
O que são hagiografias?
De acordo
com Andréia Frazão, o vocábulo hagiografia vem do grego, hagio, que significa santo, e grafia
que significa escrita. Ou seja, o termo é utilizado desde o século XVII para se
referir não apenas ao estudo crítico dos diferentes aspectos ligados ao culto
aos santos, mas também aos textos que têm como temática central os próprios
cultuados. Quanto à tipologia desses escritos as possibilidades são plurais,
pois a narrativa hagiográfica pode, por exemplo, ser apresentada como uma
paixão; um tratado de milagres; relatos de viagens espirituais; ou uma vita,
narrativa sobre a vida do hagiografado em que são narradas suas virtudes a
servirem de exempla (SILVA, 2008, p. 7).
Ronaldo
Amaral (2013) argumenta que as hagiografias cristãs são um gênero literário
que, por seus atributos imanentes, caracteriza-se pelos estereótipos, modelos e
arquétipos de santidade em detrimento do laico, do secular e da exatidão do que
entendemos hodiernamente como tempo e espaço. As hagiografias, para Amaral,
sublinham os aspectos heróicos, relativos à fé cristã, das personagens ao passo
que às demais ações são minoradas e escamoteadas.
Conceitos
Viriarcado: Por que não “patriarcado”?
Que a
sociedade medieval dos séculos IV, V e VI é patriarcal, nós já sabemos, afinal,
se organiza em torno do poder do pater,
porém, assim como Olívia Gazalé, entendemos que a ideia de virilidade é
importante nesse contexto. É necessário ser homem para ser um pater, mas ainda
assim, é possível um pater ser considerado destituído de virilidade em algum
momento. Enquanto mulheres nunca puderam ser um pater, algumas delas puderam
acessar a virilidade de algum modo. Sendo assim, entendemos que a proposta de Gazalé,
em sua obra O Mito da Virilidade: uma
Armadilha para Ambos os Sexos, nos permite entender o exercício da
virilidade como uma tecnologia do dispositivo de gênero na Primeira Idade
Média.
Gazalé
sublinha que: “A dificuldade vem do fato de que a virilidade é dada como um
fato da natureza a-histórico, embora tenha tudo de mito, isto é, de uma
construção cultural imaginária” (GAZALÉ, 2017, p. 20). Sendo assim, cabem os
seguintes questionamentos: “Como se constituiu a “masculinidade hegemônica” através
dos tempos? Que papel as religiões, os poderes públicos e as ciências
desempenharam na construção do sistema viriarcal? Dado o estreito
entrelaçamento de todos os seus componentes, é um pouco artificial isolá-los
para analisar separadamente. Mas o corte é essencial quando se procura
apreender um fenômeno tão vasto quanto as fontes históricas da dominância
masculina” (GAZALÉ, 2017, p. 61).
Abordaremos
a ideia de viriarcado como um sistema, ou seja, um dispositivo complexo que
pressupõe diversos elementos entrelaçados e interdependentes, mas que forma uma
outra coisa independente de suas partes (GAZALÉ, 2017, p. 59). E de que forma
se dá essa complexidade: “O sistema viriarcal pretende ser, como o sistema
solar, o reflexo da ordem natural, mas ele é inteiramente construido. Ele é
baseado em um conjunto de postulados, de crenças e de princípios, é construido
sob esquemas de elaborações conceituais aprendidas, de normas, de leis, de
mitos e de símbolos e se perpetua através de práticas sociais, de histórias, de
tradições, de costumes, de ritos, de mentalidades e de obras. Ele, portanto,
não tem nada de natural. Se a palavra não fosse horrivel, seria um sistema
teológico político-cultural. Um dispositivo perfeitamente artificial,
inteiramente ordenado a uma hipótese indiscutível: a superioridade do princípio
masculino sobre o princípio feminino” (GAZALÉ, 2017, p. 59).
Episcopado Monárquico e Poder Pastoral
Segundo José
Fernández Ubina, nós não sabemos exatamente como se conduziu a organização do
Episcopado Monárquico (UBINA, 2016, p. 40-41). Contudo, sabemos que o papel dos
bispos era, inicialmente, majoritariamente administrativo, ligado, sobretudo,
ao gerenciamento dos fundos destinados à manutenção da comunidade. Tal
atividade muito provavelmente recebia o apoio de outros integrantes da elite
eclesiástica, tais como, diáconos e presbíteros. (RAPP, 2000, p. 380; SILVA,
2019, p. 122). É somente com o desenvolvimento do que a historiografia chama de
episcopado monárquico que o bispo passa a ocupar um espaço de destaque.
Entretanto, o estabelecimento desse monoepiscopado é algo muito complexo e
nebuloso na documentação. José Ubina defende que o movimento de consolidação de
poder dos bispos foi essencial para o fortalecimento tanto das igrejas locais
como para o conjunto delas, numa lógica universalista. (UBINA, 2016, p.46)
Já o poder
pastoral, é definido por Michel Foucault como:
“A
existência dentro da sociedade de uma categoria de indivíduos totalmente
específicos e singulares, que não se definiam inteiramente por seu status, sua
profissão nem por sua qualificação individual, intelectual ou moral, mas
indivíduos que desempenhavam, na sociedade cristã, o papel de condutores, de
pastores, em relação aos outros indivíduos que são como suas ovelhas ou o seu
rebanho. Creio que a introdução deste tipo de poder, desse tipo de dependência,
desse tipo de dominação no interior da sociedade romana, da sociedade antiga,
foi um fenômeno muito importante” (FOUCAULT, 2014f, p. 64).
Objetivos Gerais e Específicos do Projeto
Nossos objetivos gerais são:
Compreender
o processo histórico da santidade feminina na Primeira Idade Média Oriental à
partir das contribuições dos Estudos de Gênero e entender o processo histórico
de afirmação do poder público dos bispos na Primeira Idade Média.
Nossos objetivos específicos são:
Analisar a
vida de Marina/Marino e investigar aspectos de inteligibilidade de gênero e
associações a virilidade; Verificar e salientar as referências ao exercício de
poder das personagens pertencentes à elite eclesiástica, especialmente dos
bispos, nas narrativas hagiográficas analisadas e relacionar as referências ao
exercício de poder formal dos homens à inteligibilidade de gênero proposta para
as personagens hagiografadas nos textos analisados.
Vida de Marina/Marino:
Com isso,
vamos para a primeira vida de santa que abordaremos. Uma datada entre o início
do século VI e meados do VII, que, embora suas origens geográficas sejam
envoltas em lenda, acredita-se que ela tenha vivido onde hoje chamamos de Síria
(TALBOT, 1996, p. 1).
Essa santa é
classificada como uma das monjas
travestidas, ou seja, aquelas que se vestem de monges para esconderem sua
real identidade, algo muito popular nas hagiografias bizantinas entre os
séculos V e IX (TALBOT, 1996, p. 1). Nos próximos passos de nossa pesquisa,
iremos refletir sobre a nomenclatura mais adequada para nos referirmos a esse
fenômeno histórico das santas que Talbot descreve como “travestidas”.
Sua
popularidade não se limitou de forma alguma ao mundo de língua grega, como nos
conta Alice-Mary Talbot: “A história de Marina/Marino apareceu em versões
latinas, siríacas, cópticas, etíopes, armênias, árabes e, muito mais tarde, em
alemão medieval e francês. Assim, em contraste com muitas outras santas que
tinham apenas cultos localizados, Marina, foi venerada em grande parte do mundo
medieval, tanto no Oriente quanto no Ocidente” (TALBOT, 1996, p. 1, tradução
nossa).
Após a morte
de sua mãe enquanto ainda era muito jovem, Marina é criada por seu pai, sob
muita devoção e ensinamentos cristãos. Ao crescer, seu pai resolve abandonar
tudo e adotar a vida monástica. Decidida em acompanhar seu pai, Marina tenta
convencê-lo a levá-la consigo ao mosteiro. Em resposta a esse pedido, o pai diz
“Filha, o que devo fazer com você? Você é uma mulher, e eu desejo entrar em um
mosteiro. Como, então, você poderá permanecer comigo? Pois é através dos
membros do seu sexo que o diabo trava guerra contra os servos de Deus.”
(TALBOT, 1996, p. 7, tradução nossa). Em resposta, a filha profere “Não é
assim, meu senhor, pois não entrarei <no mosteiro> como você diz, mas
primeiro cortarei o cabelo da minha cabeça, vestirei-me como um homem e então
entrarei no mosteiro com você.” (TALBOT, 1996, p. 7, tradução nossa). Assim,
Marina corta seus cabelos bem curtos e, vestida como homem e renomeada Marino,
seguiu seu pai ao mosteiro, no qual viveu muitos anos como monge sem ser
descoberta, sendo inclusive elogiada por sua devoção e ascese. (TALBOT, 1996,
p. 8)
Permanecendo
no mosteiro após a morte de seu pai, Marino foi eventualmente acusado de
estuprar uma menina, filha do dono de uma estalagem, na qual os monges se
hospedavam ao saírem em missões. Na verdade, a menina em questão teria sido
estuprada por um soldado, e o mesmo teria dito para essa menina que ela deveria
acusar o “jovem monge” caso fosse descoberto que ela havia sido “deflorada”.
(TALBOT, 1996, p. 8)
Acusado de
ser o pai de uma criança, Marino não nega o “crime”, aceita voluntariamente o
castigo e é expulso do mosteiro. O monge assume o bebê, e o cria do lado de
fora do mosteiro, vivendo na rua, passando frio e calor (TALBOT, 1996, p. 9).
As pessoas que passavam por Marino perguntavam o motivo dele estar sentado do
lado de fora, ele respondia “Porque eu forniquei e fui expulso do mosteiro”
(TALBOT, 1996, p. 9).
Até que três
anos depois, é readmitido ao mosteiro após inúmeros pedidos de seus colegas
monges ao abade. Esses argumentavam que Marino já havia sofrido o suficiente,
além de ter confessado seus pecados. Ao retornar ao mosteiro, os castigos não
cessam, Marino foi designado as funções mais baixas como forma de castigo. É
descrito que ele as cumpriu com louvor, enquanto a criança o seguia chorando e
pedindo alimento.
A criança
então cresceu e também se tornou monge. Após um longo período de tempo, Marino
não foi visto por três dias cantando no coro e o abade decide mandar olharem
seus aposentos e, para a surpresa de seus colegas, encontram-no morto. Ao
limparem seu corpo em preparação para o enterro, verificam seu sexo, e com ele
sua inocência das acusações de paternidade. Os monges teriam pedido perdão à
Deus e naquele momento, tanto o abade quanto os colegas reconheceram sua
santidade ao ter suportado tanto sofrimento sem revelar sua verdadeira
identidade.
Após seu
enterro em um caixão abençoado, em meio a cantos e hinos, aparece a filha do
dono da estalagem, mãe da criança criada por Marino. Ela é descrita como
“possuída por um demônio” (TALBOT, 1996, p. 12, tradução nossa), mas confessa
que foi seduzida por um soldado. Porém a mulher é prontamente curada pela tumba
sagrada de Marina, e todos glorificam.
A vida de
Marina termina com a seguinte passagem “Vamos então, amados, zelosamente emular
a abençoada Marina e sua paciente perseverança, para que no dia do julgamento
possamos encontrar misericórdia diante de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem
pertencem a glória e o domínio pelos tempos dos tempos. Amém.” (TALBOT, 1996,
p. 12, tradução nossa). Essa passagem final reforça o caráter prescritivo das
hagiografias.
Em nossa
pesquisa, utilizamos uma versão da Vida de Marina/Marino traduzida do grego
para o inglês, presente no livro Holy
Women of Byzantium: Ten Saints’ Lives in English Translation, editado por
Mary-Alice Talbot e lançado no ano de 1996. Talbot defende que a versão aqui
apresentada é mais próxima da hagiografia original do século VI ou VII, já que
a mesma sofreu consideráveis mudanças ao longo do tempo devido a transmissão
oral. A que nós utilizamos, chamada também de vita antiqua, está preservada em três manuscritos do Monte Athos,
datados do século X (TALBOT, 1996, p. 2)
Durante a
Idade Média, escritores monásticos estariam fascinados por histórias de
travestismo sagrado, e, apesar da proibição (TALBOT, 1996, p. 2), mais de uma
dúzia de diferentes vitae foram
compostas sobre esse tema, que parece ter se originado nos Atos de Santa Tecla, do século II.
Referências
Ricardo
Russo Carvalho é graduando em História na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, onde integra o Programa de Estudos Medievais (PEM/UERJ). É bolsista de
Iniciação Científica (PIBIC/UERJ) sob orientação do Prof. Dr. Wendell dos Reis
Veloso. Ricardo também é membro do Grupo de Estudos Sobre Hagiografia e
Santidade (AGIOS/UFF).
Documentação:
TALBOT,
Alice-Mary (Ed.). Holy Women of Byzantium:
Ten Saints’ Lives in English Translation. Washington, DC: Dumbarton Oaks,
Trustees for Harvard University, 1996.
Bibliografia:
AMARAL,
Ronaldo. Santos Imaginários, santos
reais: a literatura hagiográfica como
fonte histórica. São Paulo: Intermeios, 2013.
FOUCAULT,
Michel. Do Governo dos Vivos: Curso
no Collège de France. (1979-
1980). São
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.
GAZALÉ,
Olivia. Le Mythe de la Virilité: um Piège
pour les Deux Sexes. Paris: Éditions Robert Laffont, 2017.
RAPP, Claudia.
The elite status of bishops in Late
Antiquity in ecclesiastical, spiritual, and social contexts. Arethusa. The
Johns Hopkins University Press, v. 33, n. 3, p. 379-399, 2000.
SILVA,
Andreia, C. L. F. Introdução. In:____. Hagiografia e História. Rio de Janeiro:
HP Comunicação Editora, 2008. p. 7-15.
SILVA, Paulo
Duarte. Bispos em Ação: A Ascenção do Episcopado no Cristianismo Tardo Antigo
(Séculos III-VI). In: e, Wendell dos Reis; BOENAVIDES, D. M. (Orgs.). Religiosidade, Poder e Sociedade no Medievo:
Discussões Historiográficas. 1. ed. Porto Alegre: Polifonia, 2019, p.
111-128.
UBINA, José
Fernández. Origen y Consolidación del Episcopado Monárquico. In: ACERBI,
Silvia; MARCOS, Mar; TORRES, Juana. El
Obispo en la Antiguidad Tardía: Homenaje A Ramón Teja. Madrid: Editorial
Trotta, 2016, p. 37-51.
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