A UTOPIA
PERVERSA DE MALINI: UMA BREVE ANÁLISE SOBRE A OBRA YOU TOO CAN TOUCH THE MOON:
YASHODA AND KRISHNA, DE TEJAL SHAH
O seguinte texto tem como objetivo discorrer
brevemente acerca da obra “You Too Can Touch The Moon: Yashoda with Krishna”
(Você também pode alcançar a Lua: Yashoda com Krishna, em tradução livre), de
Tejal Shah, de forma a elencar pontos referentes à representação de hijras na
cultura visual indiana e seu papel na pós-colonialidade, bem como a construção
subjetiva do dito “terceiro gênero” na fotografia e seus aparatos biopolíticos.
Ao passo em que traçamos elementos históricos contidos na concepção da hijra
dentro da tessitura social da Índia, buscamos também compreender sua relação
com as formas e narrativas recorrentes do cosmos imagético indiano.
Questionamo-nos como a figura da hijra rompe com uma
cultura binária e com o passado de rígidas segmentações sociais que permeia o
Estado indiano, ao mesmo tempo em que com estas dialoga. Qual é o espaço
ocupado pelos corpos entendidos como hijras na sociedade indiana, e ademais,
qual é sua relação com outros corpos vistos como transgressores em outras culturas
ao redor do globo? Estas questões estão presentes no trabalho de Tejal Shah,
artista cuja obra se volta ao estado da arte queer e da estruturação das
categorias de gênero e seus papéis.
A obra sobre a qual este texto se pauta é fundada
sobre este escopo, na medida em que se configura como integrante de uma série
expográfica híbrida realizada em 2006 – ela foi provida de registros de
fotografia, obras audiovisuais, instalações e performances, exclusivamente
voltados à imagem da hijra como ponto de reflexão política e estética.
Intitulada de “What are you?” (“O que você é?”, em tradução livre), para
cria-la, Shah seguiu a vida de três hijras, que obtinham meios de subsistência
a partir de trabalho sexual, e incorporou suas vivências e trajetórias na exposição,
a fim de encontrar pontos compartilhados entre suas experiências e a de outras
hijras – e consequentemente, de outros
indivíduos queer (PADGAONKAR, 2015). Dentro desta série, Shah coletou relatos
fornecidos acerca dos sonhos, desejos e objetivos pessoais das entrevistadas, e
os trouxe ao plano da fotografia, através de recriações encenadas – ato que
Shah definiu como o fazer de uma “utopia perversa” (VARGHESE). Os desejos
expressos pelas hijras se pautaram desde o anseio por parceiros românticos, à identificação
com figuras carimbadas da cultura popular, como
a de Cleópatra.
You Too Can Touch The Moon: Yashoda and Krishna. Disponível em: https://tinyurl.com/3ztcpmbs
Para “You too can touch the Moon”, o desejo expresso
por Malini, uma das hijras contatadas por Shah,
foi o da maternidade. Este desejo toma forma através do diálogo com a
obra “Yashoda com Krishna”, de Raja Ravi Varma, pintor privilegiado pela
história da arte da Índia. Na obra de Shah, referencia-se uma interação entre
Krishna e sua madrasta, em que a jovem deidade pede para que Yashoda traga a
ele a Lua. Yashoda contorna o pedido do infante – ao mesmo tempo em que o acata
–, refletindo sobre um espelho circular
a imagem da Lua, dando-lhe a impressão de que ela está contida em suas palmas.
A escolha de associar à fotografia a pintura de Verma se dá, nas palavras de
Shah:
“ [...] pois é um fato incontestável, e uma ironia da
História, que a problemática visão utópica infusa nestas pinturas se tornou um
emblema da modernidade pós-colonial angustiante da Índia. Esta
fotografia-fantasia de Malani é claramente feita para funcionar como uma
perversão ‘queer’ das imagens mitológicas de Ravi Verma e da história colonial
que as produziu.” (Brooklyn Museum, 2010).
É certo pontuar que o escopo de trabalho de Verma ecoa
e reforça a imposição da metrópole acerca dos corpos dos residentes de sua
colônia, e isso inclui a percepção acerca da ideia de maternidade – aqui
refletida por meio do cânone artístico incorporado pelo pintor. Motivos,
materiais e formas caros à tradição da pintura a óleo europeia, bem como
composições que prezam pela ideia de harmonia e organização dos planos em
perspectiva, dentre outros elementos, fazem destas imagens um produto inglês
com roupagem indiana – pode-se pontuar que, neste quadro, a cultura da colônia
é um mero acessório em uma composição “higienizada” de seus colonizadores. A
imagem produzida por Varma e os dispositivos por ele utilizados operam em um
espaço saneado, em que a maternidade se estabelece como um feitio sem manchas,
tal qual ditado pela tradição cristã e europeia.
Yashoda e Krishna. Raja Ravi Verma 1890. Disponível
em: https://tinyurl.com/5y3zf6p
A contaminação do sonho de Malini neste ambiente
configura uma subversão, bem como uma “remontagem” da herança colonial e de sua
história através do reposicionamento das peças que compõem a narrativa visual
referida (DIDI-HUBERMAN, 2016). A figura central desta fantasia, oriunda dos
espaços tipicamente oprimidos e escamoteados pelas políticas da metrópole, assalta
a narrativa e a coloca sobre suas palmas, tal qual o pequeno Krishna observando
a Lua pelas mãos de Yashoda. O intangível, o inalcançável, e a sua paradoxal
materialidade no escopo da fotografia, é a perversão irônica almejada por Shah
– e neste caso, definimos a perversão tal qual em seu uso clínico e
historicamente patológico, associado a comportamentos sexuais “anormais”.
Aquilo que é perverso, realoca símbolos de seus locais usuais, e a visão de uma
hijra no local materno sacro, idealizado pela cultura europeia, destrincha a
imagem materna conjurada por Verma e rompe com sua unicidade. Esta percepção é
ainda fomentada ao levar-se em conta o passado colonial e a caracterização da
figura da hijra como uma espécie de “terceiro gênero”. Neste tocante, Anisha
Varghese afere:
“Um aspecto [da ingovernabilidade da população Hijra
por parte dos britânicos] é que sua expressão de gênero não se enquadra nas
categorias de gênero binárias. Ela minava a classificação e, em decorrência
disto, a legibilidade nos termos da população indiana. Enquanto os oficiais da
colônia encaravam as hijras como homens, elas se auto-intitulavam pelo
feminino, e por este motivo, tanto hijras ‘masculinas’ quanto ‘femininas’ foram
registradas. Antigos textos religiosos do hinduísmo possuem várias referências
à ambiguidade sexual, androginia e papéis de gênero fluidos. A exemplo, a forma
andrógina composta do Ardhanarishvara incorpora as divindades Shiva e sua
consorte Parvati ou Shakti, simbolizando a união dos princípios masculino e
feminino de Purusha e Prakriti.”
É necessário notar que, para além da dimensão
histórica e coletiva, há uma dimensão íntima na fotografia em questão. O sonho
de Malini conjurado ante as lentes de Shah não deixa de ser um desejo pessoal,
o que também se amalgama entre os fatores que compõem a subjetividade das
hijras retratadas nesta série.
Levando este fator em consideração, devemos notar a
relação de disparidade entre o escopo geral da fotografia jornalística,
expressão de forte presença na Índia, normalmente relegada ao retrato das
classes periféricas da sociedade indiana, e o trabalho de Shah. Marcado pela
presença da dita “fotografia de rua”, a tradição fotojornalística da Índia
privilegia situações e planos de imagens não direcionados ou fabricados, em
pretensão de encapsular momentos de espontaneidade sociocultural. Em contramão,
este caráter do fotojornalismo se traduz na prática do contexto indiano como um
catalisador ao exotismo e ao hiper-pitoresco – não é raro que o fotojornalismo
corrompa à caracterização de grupos marginalizados, tais quais as hijras, a
serviço de projetos eurocêntricos e coloniais. (PADGAONKAR, 2015)
Cita-se, no que diz respeito a este agrupamento de
tradições fotojornalísticas, o trabalho de Raghubir Singh pelo seu uso e integração
de planos, que indica preocupações composicionais e poéticas, aflorando o
aspecto estético da fotografia, e entrelaçando estilos distintos ao compor
elementos próprios a sua subjetividade – mostrando, assim, consciência do
caráter subjetivo do fazer fotográfico, impresso no próprio fazer. Isto se
conecta com a obra de Shah, ao mesmo tempo que dela difere: ao passo em que a
fantasia retratada, com claro caráter artístico, visa se concretizar no espaço
orquestrado da fotografia – munida da indumentária, do cenário, do
enquadramento, etc. –, Malini, sujeito cuja figura é historicamente atrelado à
rua, é agora envolta sobre a intimidade do estúdio. O que a fotografia
eventualmente faz é dissolver o cenário pitoresco que circunda esta figura,
imbuindo Malini em um ambiente calculado, artificial, mas sobretudo, em
conformidade com o seu desejo íntimo de maternidade.
Levando-se em conta o “não-lugar” da utopia que Shah
visa atingir, o espaço fotográfico é de primazia para os anseios das hijras. O
olhar do pequeno infante que representa Krishna, lançado e percorrido através
do braço de Malini, levantado e apontado à parte superior da composição,
direciona o espectador em torno da figura da Lua, remetendo-nos ao percurso
entre o sonho da hijra e a sua realidade tangível. O desejo de Malini nos
parece inatingível por inúmeros motivos, tais quais as condições marginalizadas
da população hijra na Índia, bem como as heranças coloniais anteriormente
mencionadas, mas ao menos na fotografia de Shah, por um momento, a hijra pôde
viver este sonho – tal qual Krishna pôde obter a Lua, nas mãos de sua madrasta.
Este sonho, embora aparentemente inatingível, ao ser
exercitado no fazer fotográfico, tem a capacidade de modificar o tecido daquilo
que se entende como real, tal qual uma utopia queer, almejada pela série de
fotografias. Ao reconstruir a cena de Yashoda com Krishna, Tejal Shah reconta
uma história mitológica que, assim como em outros mitos ao redor do globo,
ganha nova vida e é cada vez mais clara ao passo em que é reestruturada e
reformatada para novos públicos e contextos. A fim de que se dissolvam heranças
coloniais, estigmas e máculas do passado, é necessário que um novo vocabulário
visual seja exercitado. Através da subversão imagética, símbolos distintos, postos
à margem, tal como a população hijra indiana, ocuparão espaços anteriormente de
domínio cultural de seus algozes e colonizadores, e irão os ressignificar, ao
mesmo passo em que serão ressignificados: este é o sonho que as lentes de Tejal
Shah efetivamente capturam, e o que, certamente, persiste no âmago de
Malini.
Referências:
Matheus Dal Bem Busetto é graduando em artes pela
UFRJ.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Montagem e remontagem do
tempo. Belo Horizonte: Caderno de Leitura, n. 47, 2016.
PADMANABHAN, Lakshmi. A gasp of air: posthuman intimacies in Tejal Shah’s Between the
Waves. In: New Review of Film and Television Studies. vol 16, n. 2 144-161.
2018
PADGAONKAR, Pooja. Shining
a spot on the marginalized: Tejal Shah’s photographic representation of the
hijra community in India. TCNJ Journal of Student Scholarship. 2015
RAMANUJAN, A. Where
Mirrors Are Windows: Toward an Anthology of Reflections. Historia
Religionum. 1989
VERGHESE, Anisha. Colonisation,
Heteronormativity and Ironic Subversions: Tejal Shah and Yuki Kihara. Drain
Magazine. Disponível em: https://tinyurl.com/5y3zf6p
BROOKLYN MUSEUM. Global
Feminisms: Tejal Shah. Youtube, 2010. Disponível em:
https://tinyurl.com/2jpdu9p2
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