DE MESQUITA A CATEDRAL: MEMÓRIA
DA CONQUISTA E AMBIENTE CONSTRUÍDO NA MESQUITA-CATEDRAL DE CÓRDOBA
Introdução
Córdoba, localizada no sul da Espanha e banhada
pelo rio Guadalquivir, teve seu espaço moldado por diversas culturas ao longo
do tempo. A cidade apresenta ocupações pré-históricas, romanas, islâmicas e
cristãs. Foi sob domínio islâmico que Córdoba emergiu como uma das principais
cidades globais, tornando-se a capital do Califado Omíada na Península Ibérica,
um estado central no início da expansão islâmica. Apesar do domínio político
islâmico, Córdoba era multicultural, abrigando pessoas de diversas religiões.
Em 1236, a cidade foi conquistada pelos
cristãos liderados por Fernando III de Castela. Ao contrário de destruir a
mesquita, os novos governantes a converteram em catedral. Nesse processo,
estruturas associadas à prática religiosa islâmica perderam seu significado
original, embora grande parte da edificação tenha sido preservada. A adaptação
do espaço envolveu ações complexas, que mesclaram memória e ambiente
construído. À luz desses conceitos, o objetivo deste texto é analisar como essa
transformação ocorreu, com foco em quatro elementos principais: o miḥrāb, a fonte de ablução, o minarete e
a pátio aberto. Cada um deles, originalmente central para a fé islâmica, foram
encaixados em um contexto de memória da conquista para comunicar uma identidade
cristã a partir do domínio material e imaterial sobre os muçulmanos.
Memória da conquista e ambiente construído
Em primeiro lugar, se faz importante ressaltar
que monumento e arquitetura são essenciais para pensar a cidade de Córdoba, e
simbolizam a disputa de agentes coletivos pela memória da cidade. Assim, a
Mesquita-Catedral e sua preservação com elementos islâmicos e cristãos
representa a manipulação da arquitetura para a percepção de interesses próprios
de agentes históricos e suas leituras da realidade em suas diferentes
interpretações e períodos.
Nesse sentido, ganham destaque as discussões
de Pierre Nora [1981] sobre memória. Para o autor, os monumentos são expressões
testemunhais de uma era passada, e são resultados de lugares de memória, que
mesclam o simbólico e o material. Ao pensar o caso da antiga mesquita, o
simbólico, como os momentos e chamado de oração, e o material, como o minarete
e o miḥrāb, formam a expressão de uma
era de domínio islâmico sobre a região. Quando esta passa a estar sob o domínio
cristão, os elementos simbólicos e materiais islâmicos são substituídos por
elementos que façam sentido para a realidade cristã, como missas, no simbólico,
e altares e estátuas, no material. O lugar de memória, como proposto por Nora,
são signos de representação, e caracterizam acontecimentos, experiências e
fixam um estado de coisas [Nora, 1981, p.22]. Assim, é importante ressaltar
que, o simbólico que perpassa a nova Catedral também representa a conquista, ou
melhor, a Reconquista de um império religioso.
Tratava-se, portanto, não de reformas isoladas
que representam a simples coexistência de elementos cristãos e muçulmanos. Tal
sincretismo de fato ocorreu, e muitos elementos arquitetônicos característicos
do islã foram incorporados à cultura ibérica. Entretanto, para além de uma
simples explicação do sincretismo que envolve a construção do corpus da
Mesquita-Catedral, as contribuições de Nora se fazem importante para pensá-la
como construção de uma memória da conquista, que reflete e faz alusão a
elementos dos vencidos, muçulmanos, a todo tempo, exaltando e sobrepondo
elementos dos vencedores, cristãos.
Ao pensar em ambientes, é imprescindível
relacionar com a cultura e com as suas intencionalidades e comunicações. Foi a
partir disso que o conceito de ambiente construído foi proposto por Amos
Rapoport, o qual oferece uma chave teórica importante para interpretar a
transformação da mesquita de Córdoba em catedral. O autor propõe um modelo para
compreender o ambiente construído a partir da perspectiva da comunicação não
verbal. Ele argumenta que os espaços construídos possuem funções que vão além
do uso instrumental e funcional, sendo elementos essenciais na organização
social, na transmissão de normas culturais e no estabelecimento de hierarquias.
Ou seja, os ambientes comunicam além das suas funções mais práticas e
evidentes. A partir de seus detalhes, é possível perceber elementos culturais
que ensinam os ocupantes desses locais.
Rapoport argumenta que o ambiente construído
desempenha uma função mnemônica e comunicativa ao operar como um instrumento
cultural que estabelece hierarquias, normas de comportamento e induz ações
sociais. Ou seja, lembra o ocupante desse espaço como agir. A noção de
configurações de papeis e a analogia dramática do comportamento humano podem
ser facilmente estendidas à função comunicativa e mnemônica de configurações e
ambientes, que abrigam comportamentos apropriados e também lembram as pessoas
de como se comportar. [Rapoport, 1990, p. 78]. No caso da mesquita de Córdoba,
a organização espacial e os componentes arquitetônicos comunicavam regras e
significados específicos à comunidade islâmica. Alguns desses elementos serão
trabalhados a seguir. Entretanto, com a transformação dela em catedral, tais
elementos islâmicos perderam o seu significado original, mas passaram a
comunicar uma hierarquia estabelecida pelos cristãos
Do Islã ao Cristianismo
O miḥrāb,
nas mesquitas, é uma estrutura
semelhante a um nicho e geralmente é encontrado no centro da parede da qiblah [direção de Meca]. Então, os
fieis costumavam realizar as suas orações em direção a ele. O miḥrāb
pode ter derivado da abside de igrejas bizantinas ou palácios romanos, e
veio a ser um ponto focal de adorno luxuoso na mesquita. [Turnbull, 2006]. Para
os muçulmanos, o miḥrāb e a qiblah são simbólicos, por apontar o
local em que fieis devem direcionar as suas orações, além de conectar uma
comunidade de fieis [ummah] em torno
de Meca. Ou seja, o direcionamento de uma mesquita não é aleatório e sim
conecta um edifício espacialmente ao Oriente Médio. Não se pode perder de vista
as características mnemônicas disso, já que ele ressalta a conexão espacial do
Islã com tal cidade.
No caso da mesquita de Córdoba, com as suas
diversas reformas, não foi diferente com o miḥrāb,
afinal, ele, mesmo sem uma exatidão,
direcionava os fieis daquela cidade para a cidade no qual Muḥammad
nasceu. A questão é que quando a mesquita tornou-se catedral, esse
direcionamento não tinha sentido para os cristãos. Por mais que Jerusalém seja
um local importante de peregrinação, não havia no Cristianismo um
direcionamento das orações dessa maneira. Nesse sentido, com o uso do espaço
como catedral, a posição espacial original foi mantida, mas seu novo centro era
um altar central. [Ver imagem a seguir] Os cristãos utilizaram o espaço do miḥrāb para guardar hóstias [Ecker 2003]
e para um altar lateral apenas descoberto completamente em 1816 por Furriel, o
qual restaurou os mosaicos islâmicos.
Outro importante símbolo islâmico também foi
reinterpretado. É o caso do minarete, a
torre da mesquita, que serve ao propósito de chamado para oração, o adhān. No momento da oração, o
responsável por isso, o mu'adhin
[muezim] , subia na torre e chamava os fieis para orar, ritual importante
realizado antes das orações diárias. Ao
pensar no início do Islã, é possível que os primeiros minaretes tenham sido
concebidos como símbolos altamente visíveis de uma fé jovem e que eles foram
feitos para marcar a ascensão e a monumentalidade dela. [Turnbull, 2006]. Além
de se projetar como locais mais altos de uma cidade, eles eram também um símbolo de divisão do tempo,
já que cinco vezes ao dia, a partir da posição do sol, o adhān era realizado.
Após 1236, a função temporal permaneceu, já
que essa estrutura tornou-se a torre do sino. Entretanto, muitos elementos
arquitetônicos anteriores presentes foram removidos, o que por conseguinte,
comunicou uma identidade mais cristianizada. Ecker [2003], aponta que é uma
ilusão que a Grande Mesquita pode ser facilmente desacoplada para revelar sua
construção por adição e subtração frente a catedral. Um dos exemplos disso é a
torre do sino/minarete. Por mais que saiba que uma nova construção foi feita,
uma subtração completa é impossível. Esse mesmo argumento foi levantado por
Hillenbrand [1994, p. 143] ao analisar outro minarete na Espanha que foi
transformado em torre do sino, a Torre da Giralda, em Sevilha.
Entretanto, é imprescindível perceber o
esforço que foi feito em descaracterizar alguns elementos típicos da
arquitetura andalusí. Os típicos arcos em ferradura foram eliminados e a
identidade predominante dessa estrutura foi cristã, ao contrário do interior da
mesquita-catedral. No interior da torre do sino ainda é possível ver que há um
resquício dos antigos arcos encoberto por blocos pelos cristãos. [Imagem a
seguir]
Fonte: Acervo pessoal dos
autores
Por fim, outro elemento importante para o
exercício da fé islâmica que teve um significado esvaziado foi o pátio aberto [ṣaḥn] e as suas fontes para as abluções,
como visto na imagem. Apesar de não ser obrigatório, esse modelo arquitetônico
foi muito utilizado, principalmente pelos omíadas. Essa configuração procura
conectar-se com a oração [ṣalāh],
mais especificamente na questão de purificação. Afinal, em Córdoba e em
diversas mesquitas, o ṣaḥn possui fontes de água para que os fieis façam as
suas abluções [wuḍū’] antes de realizarem
suas rezas. Um elemento facilitador e que faz sentido em um ambiente voltado
para a oração, afinal, estabelece normas de comportamento e induz o
comportamento social em direção a um dos pilares do Islã.
Por mais que o Cristianismo tenha os seus
rituais de purificação, inclusive as
primeiras basílicas cristãs tivessem uma fonte para abluções, conhecida como cantharus ou phiala, na cristandade ocidental, a fonte para abluções deu lugar a
uma pia ou tigela de água mais modesta [Bradley, 2012, p. 39-40]. Ou seja, não
tinha sentido para a arquitetura cristã como para a islâmica o sistema de
pátios e as suas fontes. Isso, portanto, não impediu o uso desses espaços em
uma adaptação, já que o bispo Francisco Reinoso [1597-1601] sugeriu que o
espaço fosse usado como um jardim. Atualmente a água ainda é utilizada na
chamada Fonte de Santa Maria.
A partir desses elementos arquitetônicos, é
possível perceber como o ambiente expressa as formas de comportamento social
que se relaciona diretamente com o Islã.
Elementos como o miḥrāb, por
exemplo, refletiam a centralidade
espiritual de Meca e a dinâmica das orações comunitárias e guiavam
comportamentos ao comunicar não verbalmente formas de uso e interação com o
espaço. O mesmo vale para o minarete, ao mesmo tempo que projeta-se
verticalmente, relembra os fieis da divisão temporal do dia e das orações.
Essas estruturas expressam as formas de comportamento social e as hierarquias
presentes no Islã. Enfim, é evidente que todos os elementos de uma mesquita se
comunicam a partir dos preceitos dogmáticos ou históricos da religião, isto é,
a partir do corão, tradição profética, da sunna ou da própria história.
Em 1236, os cristãos capturaram a antiga
capital do Emirado e Califado de Córdoba, o primeiro estado islâmico a governar
a Península Ibérica. Embora Córdoba não tenha sido a capital das dinastias amāzīgh [berbere], sua conquista
representou um marco simbólico na Reconquista cristã. A antiga capital dos
primeiros invasores muçulmanos e antigo centro do Islã ocidental passava agora
ao controle cristão. Esse momento histórico foi fundamental para a construção
da identidade cristã ibérica, moldada em oposição ao Islã. Um exemplo
emblemático disso é Santiago, o Apóstolo. Inicialmente associado à Igreja
asturiana, que reivindicou suas relíquias e estabeleceu Santiago de Compostela
como um dos principais destinos de peregrinação, ele se tornou um símbolo de
resistência cristã. A partir da lendária batalha de Clavijo, o Apóstolo ganhou
o título de "Matamoros", consolidando sua imagem como ícone da luta
contra os muçulmanos durante a reconquista.
Essa questão identitária é central na análise
de edifícios como a Catedral de Córdoba. Seus elementos arquitetônicos, mesmo
despojados do significado original, comunicaram no contexto da lógica cristã a
nova hierarquia estabelecida e a memória da reconquista. A decisão de preservar
parte da antiga mesquita não foi acidental; ao contrário, seguia uma estratégia
simbólica de demonstrar a conquista do espaço outrora pertencente ao inimigo. Essa
lógica remetia à memória recorrente da reconquista cristã e à construção de uma
nova identidade espanhola, fundamentada na narrativa de recuperação de uma
terra supostamente perdida para os muçulmanos. Nesse sentido, a transformação
da mesquita em catedral não apenas reconfigurou o espaço físico, mas inscreveu
nele um discurso de poder e de sucesso no plano cristão de domínio territorial.
Não é à toa que no altar principal, foi colocada a figura de Santiago Matamoros
[imagem a seguir]. A escultura está lá com o objetivos mnemônicos de lembrar a
vitória cristã.
Fonte: Acervo pessoal dos
autores
Dessa forma, e considerando que a memória é
uma representação construída com pretensão de objetividade, o monumento,
enquanto mesquita, era a representação da força do emirado de Córdoba e da
grandiosidade do islamismo em al Andalus, ainda que isso não anule a
coexistência de cristãos na região. Na última grande expansão da mesquita, cabe
ressaltar que, como um ato simbólico de sua força, o vizir de Hishām II, al Manṣūr,
ordenou que os sinos da igreja de Santiago de Compostela fossem removidos para
Córdoba nos ombros de prisioneiros cristãos, para serem pendurados como
lâmpadas no teto da Grande Mesquita [Bloom, 2020]. Segundo Ecker [2003], também
em 1236 que os sinos furtados por al Manṣūr teriam sido devolvidos para seu
lugar original por Fernando III. A disputa envolvendo os sinos da mesquita de
Santiago, nesse caso, se faz relevante por revelarem as disputas simbólicas
envolvidas no processo de conquista que estão inscritas na transformação da
mesquita a catedral. Roubar os sinos de Santiago Matamouros e levá-los à
mesquita pode representar a falência da empreitada cristã contra os muçulmanos,
que, naquele momento, se representavam como vitoriosos frente a seu inimigo. Da
mesma forma, o ato de Fernando III de devolver os sinos representaria o retorno
da ordem e o domínio cristão sobre os muçulmanos.
Sob essa lógica, é interessante notar que até
o século 16 poucas mudanças estruturais são significativas, alterando-se
majoritariamente locais rituais, como a sala de orações para o local de missa,
e inutilizando elementos como a pia de abluções e o minarete em sua função
original. Entretanto, a partir do século 16, os acontecimentos do Renascimento
e das primeiras décadas da Era Moderna, bem como a Conquista da América e a
Reforma, foram essenciais para a articulação de um período mobilizado para
fortalecer a posição de poder da Igreja Católica e sua centralidade religiosa.
Nesse sentido, houve um empreendimento de reformas na estrutura da catedral,
que não somente manteve grande parte da decoração muçulmana, mas também
complementou-a com a criação de uma capela para Santiago de Compostela, o
Matamoros.
Conclusão
Conectando-se à ideia de espaço construído,
essa adaptação reflete o conceito de ambiente como comunicação, proposto por
Amos Rapoport. A mesquita-catedral de Córdoba não é apenas um lugar de culto
transformado, mas também um espaço que transmite mensagens culturais e sociais.
Ao manter e ressignificar elementos como o miḥrāb,
o minarete e o ṣaḥn, o edifício se
torna um veículo de memória e identidade, lembrando à população cristã o
triunfo da reconquista e reafirmando as hierarquias impostas pela nova ordem.
Assim, o espaço construído não apenas abriga práticas religiosas, mas também
comunica poder, legitima transformações e perpetua narrativas históricas.
Ao analisar o conceito de memória, juntamente
com o de ambiente construído, ambos aplicados na análise da Mesquita Catedral
de Córdoba, é possível destacar que, apesar de algumas análises apontarem para
um diálogo e coexistência pacífica de ambas as religiões, se torna evidente que
a utilização do espaço da mesquita por cristãos, bem como a descontextualização
de alguns elementos tradicionalmente islâmicos, representam a construção de uma
memória da conquista na arquitetura local. Nesse sentido, é importante pontuar
que o sincretismo presente na Mesquita Catedral, bem como suas transformações
arquitetônicas são frequentemente associadas ao poder exercido pela conquista
cristã e ao esquecimento produzido pelo apagamento de determinadas estruturas.
Assim, conclui-se que quem controla o discurso sobre o passado, os cristãos,
detém influência sobre as narrativas.
Dessa forma, conclui-se que a
Mesquita-Catedral de Córdoba materializou a memória da conquista cristã ao
incorporar e ressignificar elementos islâmicos como os arcos bicolores em
ferradura, o miḥrāb, o minarete, o ṣaḥn e a fonte de ablução,
transformando-os em símbolos do domínio cristão ao passado islâmico. O miḥrāb, antes orientado para Meca,
tornou-se um espaço para a liturgia cristã, enquanto o minarete foi convertido
em torre de sinos, simbolizando a nova hierarquia religiosa. O ṣaḥn, antes utilizado para o wuḍū’, foi adaptado como um jardim
contemplativo, perdendo sua conexão original com os rituais de purificação
islâmicos. Esses elementos, desprovidos de seus significados originais, foram
mantidos e ressignificados, criando um espaço que reflete uma apropriação
simbólica que reafirma o triunfo cristão. A Mesquita-Catedral se tornou, assim,
um monumento de poder que comunicou o controle cristão sobre o território e
sobre a narrativa histórica, utilizando traços islâmicos como lembretes de um
passado vencido e consolidando a hierarquia imposta pelos conquistadores em sua
identidade de Reconquista.
Referências Bibliográficas
Luiza Santana Locatel Araújo é graduada em
História pela Universidade Federal do Espírito Santo, membro do Lethis,
bolsista Fapes.
Pietro Enrico Menegatti de Chiara é mestrando
em História pela Universidade Federal do Espírito Santo, membro do Letamis,
bolsista Fapes.
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NORA, Pierre. Entre a história e a memória: a
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TURNBULL, Richard. “Mosques” In. MERI, Josef
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