Álvaro Regiani

 

“O MUNDO DE ALI”:O QUE A ARTE SEQUENCIAL PODE ENSINAR SOBRE A PANDEMIA E O NEGACIONISMO?


 

Introdução

O objetivo desta comunicação é interpretar algumas lógicas discursivas do negacionismo por meio da análise da História em Quadrinhos (HQ) “O mundo de Ali” que compõe o Graphic Novel “Até aqui tudo ia bem…” (2022) do quadrinista turco Ersin Karabulut. Procurou-se sobrepor os temas escritos e desenhados por Karabulut com as consequências da pandemia Covid-19 para refletir sobre os usos dos quadrinhos no ensino de história como meio para compreender fenômenos mundiais. Assim, interessa a essa pesquisa tornar inteligível a pandemia a partir do olhar artístico para estabelecer parâmetros políticos e, desse modo, posicionar-se criticamente para o enfrentamento do negacionismo.   

 

A pandemia da Covid-19 e o “O mundo de Ali”

Sem sombras de dúvida, o maior fenômeno mundial dos últimos anos foi a pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2. Mas, apesar da dimensão e da duração, este período, frequentemente, é retratado como uma continuidade de outras epidemias menores, particularmente, a SARS-1 e a SARS-2, e sua ocorrência é entendida como um episódio de longa duração. Dizem alguns especialistas que num futuro próximo haverá outras emergências sanitárias similares ou talvez piores.

 

Porém, um ponto que chama atenção nessas hipóteses são as percepções entre os surtos epidêmicos, um situado em um passado que “todos” querem esquecer e, outro, em um futuro iminente que “todos” querem adiar. Em ambos os anseios, a experiência política não parece indicar alternativas para o enfrentamento dessas crises ou mesmo que a política pode ser negada, tal qual escreveu o filósofo francês Alain Badiou: “a lição a ser tirada disso é clara: a epidemia em andamento não terá, como epidemia, nenhuma consequência digna de nota” (Badiou, 2020, p. 79)..

 

Contrário a negação da política, o quadrinista turco Ersin Karabulut utiliza a ironia e a sátira para roteirizar e desenhar a história sequencial “O mundo de Ali”, em que uma patologia desconhecida provoca “mudanças inexplicáveis no rosto” das pessoas, tornando-as semelhantes a um único indivíduo:

  


[Karabulut, 2020, p. 47]

 

Chamada de “Alificação”, a patologia era facilmente transmissível e, rapidamente, tornou-se pandêmica afetando homens e mulheres de idades variadas e em todos os países. Um dos criadores da “doença de Ali”, um biólogo finlandes, explicou porque a disseminou: “Quando você faz compras deixa de lado as maçãs podres e compra, as mais bonitas, não é mesmo? Do mesmo modo, é ridículo fingir que não há na população gente “podre”. Não importa o que a gente faça, sempre haverá uma maioria imbecil e não educada, essas pessoas não entendem nada, mas controlam o futuro de todos pela quantidade. O planeta está morrendo e não temos recursos suficientes para todo mundo. Pra humanidade sobreviver, essa gente tem que morrer. Podem nos tratar como criminosos se quiserem… Mas nós sabemos que seremos lembrados como salvadores do gênero humano” [Karabulut, 2020, p. 48].

 

As sentenças acima implica uma motivação e uma finalidade moralista, pois a “coisa” que “eles tinham criado liberava uma enzima no cérebro das pessoas ditas conservadoras, religiosas, extremistas e de todos aqueles que, em suas próprias palavras, eram incapazes de compreender a vida, o universo e tudo o que nos cerca” [Karabulut, 2020, p. 49]. De modo ficcional, Ersin Karabulut inverte as circunstâncias de circulação dos vírus na contemporaneidade, ao colocar as condições morais como determinantes para uma ameaça a ordem social ao invés da “interseção sociedade-natureza”, como formulou Alain Badiou sobre a provável origem do vírus Covid–19, disseminada “em mercados mal conservados que seguiram costumes mais antigos” da China e com “uma difusão planetária deste ponto de origem sustentado pelo mercado mundial capitalista e sua dependência de mobilidade rápida e incessante” [Badiu, 2020, p. 74].

 

Na história em quadrinhos, não foram as consequências intencionais e não intencionais da expansão do capitalismo e da mundialização que propiciaram a circulação do vírus, mas os efeitos morais desse modelo. O que transfere o leitor da HQ para outra tensão do período, a rivalidade político-ideológica entre grupos “conservadores” e “progressistas”. Porém, o que é ser um conservador? Ou ser um progressista? E o que os diferencia?

 

Mesmo ao sobrepor temas como os dilemas sanitários com as circularidade das ideias políticas, Ersin Karabulut deixa ambíguo os limites entre os fundamentos e as motivações das ações desses grupos. O papel desempenhado pelo criador da “doença de Ali”, por exemplo, a despeito da finalidade niilista, assemelha-se às perspectivas malthusianas, contudo, ressignificada ao contexto da história em quadrinhos. À semelhança do que defendia o filósofo britânico Thomas Malthus, o crescimento populacional é mais rápido do que a produção de alimentos e ações voltadas para o controle e a diminuição demográfica, acreditava, solucionaria a questão.

 

Esta ideia, contemporaneamente, está bem difundida e aceita entre conservadores, religiosos e extremistas, mas ressignificada e adequada às motivações de cada grupo. Servindo como um instrumento para o controle populacional, especialmente, em países em desenvolvimento. Porém, segundo os dados da Organização das Nações Unidas, “o mundo produz alimento suficiente para alimentar toda população humana” [ONU, 2021].

 

A fome ainda existe pela conservação de uma lógica econômica que enfraquece a ação política, bem como a distribuição e o acesso a renda a população mais pobre. Enquanto as transações econômicas operam em escala mundial, a política ainda está escalonada às amarras da soberania nacional e estatal. Por isso, ancorar um conjunto de ações em uma teoria do século XVIII que não mais corresponde às condições de produção hodiernas põe luz ao debate sobre a permanência das ideias malthusianas como fundamentação para certos discursos políticos, ou seja, a necropolítica.

 

Antes mesmo da pandemia, “em nosso mundo contemporâneo”, tal qual explica o filósofo camaronês Achille Mbembe, “as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar “mundos de morte”, formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condição de vida que lhes conferem o estatuto de “mortos-vivos” [Mbembe, 2018, p. 71]. O curso não interrompido pela pandemia da expansão global do capitalismo neoliberal projeta uma divisão entre ‘vivos’ e ‘mortos’ por meio de um controle para a distribuição da espécie humana em grupos e subgrupos, ideologicamente, estruturados no racismo [Mbembe, 2018, p. 16]. Satiricamente, representado por Ersin Karabulut:


[Karabulut, 2020, p. 53]

 

Tal qual na vida, a ficção indica que uns são mais iguais do que os outros e que um certo tipo identitarismo instrumentaliza violentamente a homogeneização da sociedade. O que contraria a frase “estamos todos no mesmo barco”, dito por vários intelectuais ao longo da pandemia da Covid e aqui representada nos escritos do filósofo esloveno Slavoj Zizek. Ele fez coro à uma suposta democratização do vírus, mas quando escreveu aquela frase, ele não tinha como saber sobre o prolongamento da emergência sanitária. Mesmo assim, igual a muitos, acreditou nos pressupostos básicos da ciência médica na construção de um tipo de solidariedade.

 

Entretanto, muitos não significam todos, a contraposição às restrições sanitárias impostas para conter a crise não foi um consenso nem mesmo entre intelectuais. Infelizmente, o debate desse período não se pautou somente por discussões médicas e/ou científicas porque um conjunto de discursos negacionistas, exaustivamente, circularam durante a pandemia da Covid-19. Comumente, o negacionismo caracterizava-se por falas que supostamente representavam demandas de todas as classes sociais e dos respectivos estratos ideológicos e orientações político-religiosas.

 

O filósofo italiano Giorgio Agamben, certo de suas convicções, publicou uma teoria de convergência entre o crescente uso do estado de exceção e a emergência sanitária para refutação das medidas restritivas: “Parece que, tendo esgotado o terrorismo como causa das medidas excepcionais, a invenção de uma epidemia pode oferecer o pretexto ideal para a sua extensão para além de todos os limites” [Agamben, 2020, p. 21]. Este exemplo, equidistante dos discursos conservadores e fanáticos, ilustra a capilaridade do negacionismo na atualidade.

 

As reflexões em torno dos usos do dispositivo do estado de exceção pela governança global, conhecido no Brasil pelo decreto de estado de sítio feito pelos militares em 1964, impõe restrições severas à sociedade dada às situações extremas como guerras que demandam ações que não possam ser restringidas pelas leis. A análise sobre o uso crescente deste dispositivo constitucional tornou Giorgio Agamben conhecido mundialmente, mas, infelizmente, o seu negacionismo durante a pandemia também.

 

Como exemplificado acima, o negacionismo não está relacionado apenas às classes menos instruídas ou muito menos restrita às orientações político-ideológicas. Este fenômeno deve ser entendido em camadas relacionais, um filósofo como Giorgio Agamben, por exemplo, se situa em alas ditas progressistas, mas também se encontra em tantas outras conservadoras. Isto, representa o dilema político contemporâneo que, oportunamente, foi descrito pelo narrador de “O mundo de Ali”:



   [Karabulut, 2020, p. 51]

 

Entre aceitar e recusar o negacionismo há vários caminhos, sobre o primeiro, deve-se considerar os aspectos da fabricação de uma verdade e de sua circulação nos meios de comunicação contemporâneos. Bem como, o sentido impositivo desse discurso que remonta a uma tradicional percepção sobre a política, a divisão social. De Maquiavel à Carl Schmitt, passando pelos contratualistas, liberais e até Marx, a fórmula se mantém: nós contra eles.

 

Ou seja, se estabelece um primado político no conflito entre os amigos e os inimigos para estruturar um imaginário político segregacionista. Nos piores casos e a nível individual produz ações extremistas e terroristas e em sua dimensão nacional e internacional gesta uma governança fascista ou totalitária, respectivamente, representada na sequência a seguir:

 




  [Karabulut, 2020, p. 52]

 

  [Karabulut, 2020, p. 54]

 

Mas, ações extremistas gestadas no negacionismo somente atingem grupos conservadores? A resposta é não! Segundo a historiadora brasileira Marta Rovai: “O negacionismo tem a pretensão de calar, silenciar e fazer esquecer acontecimentos que exijam o enfrentamento histórico e responsabilizações, assim como negar conhecimentos da ciência relacionados à saúde pública, como a importância das vacinas e as consequências do aquecimento global; ou ainda, a fatos que há séculos pensávamos estar incorporados ao senso comum, como a concepção científica de que a terra seja redonda” [Rovai, 2020, p. 13]. Tal qual ilustrado na HQ, o narrador da história observa a Alificação se manifestar em seu pai, depois em sua mãe e por fim nele mesmo, apesar de se considerar um progressista:

 

 

A oposição a alificação e, igualmente, ao negacionismo passa pelo constante processo de ensino-aprendizagem a partir de uma reflexão crítica acerca do mundo e das pessoas. O conjunto dessas compreensões começa com um “Estado de suspensão”, definida pelo historiador brasileiro Rafael Saddi, como um: “estado de ruptura, de revolução da consciência”. Embora essa apreensão teórica seja aplicada para a didática da história, esta também serve para a refutação do negacionismo de modo geral, dado que, “não se trata de um conhecimento que cresce a partir das ideias já estabelecidas. Não se trata de  acúmulo  de  conhecimento  e  de  sentido.  Mas,  efetivamente,  de transformação radical do modo de sentir e de pensar a si mesmo e o mundo que nos cerca” [Saddi, 2016, pp. 121-122]:

 

 [Karabulut, 2020, p. 52]

 

Nos termos da didática da história proposta pelo historiador alemão Jörn Rüsen, o pensamento crítico desempenha um papel central na modulação dos níveis de consciência histórica [Cf. Rüsen, 2015]. O desenvolvimento das competências históricas com a passagem dos níveis de consciência histórica pela modulação crítica oportuniza a aprendizagem histórica. Assim, as competências cognitivas estariam em consonância com o “Estado de suspensão” em sua tarefa crítica para suprimir a carência de orientação e evidenciaria as diferenças com o presente, bem como destacaria as proximidades e distâncias entre indivíduos culturalmente distintos:

 

 [Karabulut, 2020, p. 53]

 

Como visto até aqui o conservador e o progressista partilham de uma estrutura de pensamento em comum, o que os diferenciam é a abertura para a diferença, entendendo-a como parte que nos constitui enquanto sujeitos, não como algo estranho a nós. O problema reside nos “fazedores de história”, como bem descreveu a filósofa judia-alemã Hannah Arendt, no qual grupos de interesse objetivam impor uma ideologia que supostamente se realiza na história para que os mesmos alcancem ou permaneçam no poder. No caso, as reflexões de Arendt ainda podem trazer luz a temas recentes, uma vez que a “mentalidade imperialista” inflama e patrocina o negacionismo para projetar uma sociedade homogênea e atomista que antagoniza com “a condição humana e os limites do globo” porque “a sede de poder só podia ser saciada pela destruição” e isto “não podia parar nem estabilizar-se e que, por outro lado, só podia provocar uma série de catástrofes destruidoras, quando atingisse esses limites” [Arendt, 2009, p. 173]:

 



 [Karabulut, 2020, p. 54]

 

Assim, por mais que o negacionismo tenha causado centenas de milhares de mortes diretas e indiretas ao longo da pandemia de 2020-22 e, ainda hoje, impõe severas restrições à circulação de ideias, solidariedades e afetos. A compreensão de suas lógicas discursivas e, igualmente, a sua contraposição pode indicar novos caminhos, um desses se constitui pela imaginação. O que a arte, em particular, a arte sequencial, nos ensina é a possibilidade de criação e destruição de mundos, muito mais do que as interpretações das linguagens metafóricas, ela se conecta a concepções de conhecimento de mundos e questiona o seu próprio fundamento.

 

A relação artística entre a semelhança e a diferença permite uma experiência estética relativa às faculdades do juízo que em certos casos produz uma convergência com a política, respectivamente, juízos estéticos e juízos políticos. Neste específico aspecto, a imaginação artística e, igualmente, a política quando constituídas a partir de obstáculos assumem formas inovadoras para identificar ou resolver certos problemas. Estes dois juízos, mesmo sem ser intercalados, servem como parâmetros para uma orientação e como balizas para a consciência histórica na contraposição à “alificação”.

 

Considerações finais

Ao analisar a História em quadrinhos “O mundo de ali”, posicionando-a como fonte histórica e, principalmente, como um prisma para compreender aspectos de um fenômeno social como a pandemia de Covid-19 e a circulação de ideias negacionistas, procurou-se dar centralidade a compreensão particular de um artista turco. O objetivo era demonstrar como uma obra midiática escrita e produzida no “oriente” pode instrumentalizar, teoricamente e epistemologicamente, discussões filosóficas e historiográficas no “ocidente”, tanto sobre o passado quanto questões contemporâneas. Por fim, foi intuito apresentar meios para se propor um conjunto de discussões voltados à didática da história e demonstrar a importância da orientação histórica e de uma história posicionada.

 

Orientar-se historicamente a partir da consciência de si e do mundo que nos cerca possibilita um conjunto de reflexões críticas sobre o passado e de como atuar politicamente no presente. Tomando, novamente de empréstimo as palavras de Marta Rovai, a pretensão “foi mostrar que em democracia não se trata de desqualificar pessoas quando da ausência de argumentos, mas trabalhar para construí-los, dialogicamente, para que se possa ponderar de forma ética e responsável sobre os eventos e saberes” [Rovai, 2020, p. 14]. 

 

Referências bibliográficas

Dr. Álvaro Regiani é professor de História das Américas e das Áfricas na Universidade Estadual de Goiás - Câmpus Nordeste e agradece ao seu irmão, Átila, por sempre presenteá-lo com os contos extraordinários.

AGAMBEN, Giorgio. A invenção de uma epidemia. In. AGAMBEN G, ZIZEK S, NANCY JL, BERARDI F, PETIT SL, BUTLER J, et al. Sopa de Wuhan: pensamentos contemporâneos em tempos de pandemia. La Plata, Buenos Aires-Argentina, 2020.

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das letras, 2009b.

BADIOU, Alain. Sobre a situação epidêmica. In. AGAMBEN G, ZIZEK S, NANCY JL, BERARDI F, PETIT SL, BUTLER J, et al. Sopa de Wuhan: pensamentos contemporâneos em tempos de pandemia. La Plata, Buenos Aires-Argentina, 2020.

KARABULUT, Ersin. Até que tudo ia bem… Tradução de Fernando Paz. São Paulo: Comix Zone, 2022.

MBEMBE, Achile. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Tradução Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018.

ONU. Sistemas Alimentares são a chave para acabar com a fome no mundo. Disponível em https://brasil.un.org/pt-br/137716-sistemas-alimentares-s%C3%A3o-chave-para-acabar-com-fome-no-mundo Acesso em 16 de Nov. de 2024

ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira. Revisionismos: a universidade esclarece. São Paulo: Mentes Abertas, 2020.

RÜSEN, Jörn. Teoria da história: uma teoria da história como ciência. Tradução de Estevão C. de Resende Martins. Curitiba: Editora UFPR, 2015.

SADDI, Rafael. O parafuso da didática da história: o objeto de pesquisa e o campo de investigação de uma didática da história ampliada. In. Acta Scientiarum. Education, vol. 34, núm. 2, julio-diciembre, 2012, pp. 211-220 Universidade Estadual de Maringá Paraná, Brasil

ZIZEK, Slavoj. Coronavirus é um golpe estilo “Kill Bill”... In. AGAMBEN G, ZIZEK S, NANCY JL, BERARDI F, PETIT SL, BUTLER J, et al. Sopa de Wuhan: pensamentos contemporâneos em tempos de pandemia. La Plata, Buenos Aires-Argentina, 2020.

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